Estudo apresentado no Institutum Sapientiae, Mosteiro da Santa Cruz, Anápolis – GO no dia 23.06.08 por ocasião do Simpósio “40 anos da Humanae Vitae”. Como seguidores de Cristo temos no âmbito da vida e da família grandes desafios: princípios que foram tidos como inabaláveis por séculos, se tornam hoje motivo de escândalo e discussões. Mas o que a Igreja, como Mãe, tem a nos ensinar sobre a vida humana? Qual é a verdade que ela, como Mestra, proclama sobre a família? E qual é o modelo de amor conjugal que como Esposa, ela nos mostra? Com a intenção de responder estas perguntas- e tendo presente a “continuidade da doutrina e da tradição da Igreja”1– vamos meditar sobre três pontos, priorizando pelo tema proposto, a Encíclica Humanae Vitae (HV) e os pronunciamentos do Papa Bento XVI referente a estes temas: 1º – O plano divino para o amor humano 2º – Consequência do relativismo no campo da moral sexual 3º – Urgência da necessidade da formação da consciência baseada na lei moral natural 1. O plano divino para o amor humano A partir do estudo da HV podemos dizer que os princípios da doutrina moral do matrimônio podem ser aprofundados mas não modificados, já que, como irá dizer Paulo VI, ela “está fundada sobre a lei natural, iluminada e enriquecida pela Revelação divina”.4O mesmo afirma o atual Pontífice ao dizer que “o matrimônio e a família estão arraigados no âmago mais íntimo da verdade sobre o homem e sobre o seu destino. A Sagrada Escritura revela que a vocação ao amor faz parte da autêntica imagem de Deus, que o Criador quis imprimir na sua criatura, chamando-a a tornar-se semelhante a Ele, na medida em que permanecer aberta ao amor”.5Desta forma Bento XVI resume de maneira magistral a verdade que está no centro da HV (n. 8): “O matrimônio não é (…) fruto do acaso, ou produto de forças naturais inconscientes: é uma instituição sapiente do Criador, para realizar na humanidade o seu desígnio de amor”6e por isso é necessário voltar ao Criador e seu plano para compreender a vocação do homem. Este plano implica a visão “integral” do homem, que sempre será falsa se não levamos em conta que a vocação do homem é “sobrenatural e eterna”7(n.7). Também precisamos desta visão para entender todas as exigências do amor específico dos esposos – o amor conjugal- reconhecendo que ele somente “exprime a sua verdadeira natureza e nobreza, quando se considera na sua fonte suprema, Deus que é Amor”8(n.8). Por isso, querer amar sem ter como referência a comunhão perfeita da Santíssima Trindade9sempre será uma caricatura do amor autêntico. Esta caricatura pode acontecer quando se busca dissociar o eros do ágape ao invés de uni-los como ‘dimensões’ da mesma realidade chamada ‘amor’, ou também quando se busca separar no homem, a alma do seu corpo. Como afirma o Papa Bento na sua primeira Encíclica “nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o (…) o eros pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.”10 Este critério está também presente no número nove da HV quando o seu autor afirma que o amor conjugal é “um amor plenamente humano, isto é, espiritual e sensível ao mesmo tempo. Não é, portanto, um simples ímpeto do instinto ou do sentimento; mas é também, e principalmente, ato da vontade livre, destinado a manter-se e a crescer, mediante as alegrias e as dores da vida cotidiana, de tal modo que os esposos se tornem um só coração e uma só alma e alcancem juntos a sua perfeição humana.” Sabemos que esta perfeição humana, que para nós cristãos é um chamado que surge no Batismo, requer que a sexualidade esteja integrada na totalidade da pessoa, dando um sentido a si mesma11, como disse Bento XVI, e completando seu pensamento fundamenta a existência do “vínculo indissolúvel entre espírito e corpo: de fato – diz ele- o homem é alma que se exprime no corpo e corpo que é vivificado por um espírito imortal. Também o corpo do homem e da mulher tem, por conseguinte, por assim dizer, um caráter teológico, não é simplesmente corpo, e o que é biológico no homem não é só biológico, mas expressão e cumprimento da nossa humanidade. De igual modo, a sexualidade humana não está ao lado do nosso ser pessoa, mas pertence-lhe”. 12 A verdade destas palavras reflete um significado da sexualidade humana que fica ofuscado quando a criatura humana cede à tentação de querer decidir, por si mesma, o que é ‘ser homem’ e o que é ‘ser mulher’ e como consequencia, o que seria, ou não, o matrimônio. Já Pio XI afirmava que o matrimônio foi instituído e restaurado por leis do mesmo Deus, autor da natureza e que portanto tais leis não podem estar sujeitas ao arbítrio de nenhum homem, nem sequer ao acordo contrário dos mesmos conjugues”.13Bento XVI projeta uma nova luz nesta mesma direção, ao alertar-nos que a “vontade de ‘libertar’ a natureza de Deus leva a perder de vista a própria realidade da natureza, inclusive da natureza do homem, reduzindo-a a um conjunto de funções, das quais [espera] dispor a seu bel-prazer para construir mundo supostamente melhor e uma humanidade supostamente mais feliz; [mas] ao contrário, destrói-se o desígnio do Criador e também a verdade da nossa natureza”.14Para meditar sobre os efeitos desta mentalidade passaremos ao segundo ponto. 2) Consequência do relativismo no campo da moral sexual Segundo o Santo Padre Bento XVI “um obstáculo particularmente insidioso à obra educativa é constituído pela presença maciça, na nossa sociedade e cultura, daquele relativismo que, nada reconhecendo como definitivo, deixa sozinho, como última medida, o próprio eu com as suas decisões, e sob a aparência da liberdade torna-se para cada um uma prisão, porque separa uns dos outros, reduzindo cada um a permanecer fechado dentro do seu ‘Eu’”.15 “Hoje – continua ele – as várias formas hodiernas de dissolução do matrimônio, como as uniões livres e o “matrimônio de prova”, até ao pseudomatrimônio entre pessoas do mesmo sexo, são (…) expressões de uma liberdade anárquica, que se faz passar indevidamente por verdadeira libertação do homem. Uma tal pseudoliberdade funda-se sobre uma banalização do corpo, que inevitavelmente inclui a banalização do homem. O seu pressuposto é que o homem pode fazer de si o que quer: o seu corpo torna-se assim uma coisa secundária, manipulável sob o ponto de vista humano, a ser utilizado como se deseja. O libertinismo, que se faz passar por descoberta do corpo e do seu valor, é na realidade um dualismo que torna o corpo desprezível, colocando-o por assim dizer fora do ser autêntico e da dignidade da pessoa”.16 A Doutrina da Igreja na voz do atual Pontífice alerta para os perigos desta mentalidade e não cansa de afirmar (em suas palavras) que “a família fundamentada no matrimônio constitui um ‘patrimônio da humanidade’, uma instituição social fundamental; é a célula vital e o pilar da sociedade (…) e que somente a rocha do amor total e irrevocável entre o homem e a mulher é capaz de dar um fundamento para a construção de uma sociedade que se torne casa para todos os homens”.17 Esta é a mesma razão pela qual Paulo VI afirmou a ilicitude moral do uso dos meios anticoncepcionais, que equivaleria ir contra ao plano e a lei divina para o amor conjugal: “a Igreja- ensina ele- não foi a autora [da lei moral, tanto a natural como a evangélica], e não pode portanto ser árbitra da mesma; mas, somente depositária e intérprete, sem nunca poder declarar lícito aquilo que o não é, pela sua íntima e imutável oposição ao verdadeiro bem comum do homem”.18 Mas como descobrir esta lei que busca o verdadeiro bem do homem? Reconhecendo, como diz Bento XVI, que “a voz dos grandes valores está inscrita no nosso ser e a grandeza do homem consiste precisamente em que não está fechado em si mesmo, não se reduz às coisas materiais, quantificáveis, mas tem uma abertura interior às coisas essenciais, e também a possibilidade de escuta (…) conhecendo assim que é o bem e o que é o mal”19, e a partir disso conhecendo quem é o homem, a mulher, o matrimônio e a família no plano divino. Parafraseando o Papa Ratzinger podemos dizer que uma concepção limitada – e por tanto incorreta – da razão humana, que deixa as matérias de religião e moral à parte, por não serem falsificáveis com experimentos, fazem do sujeito e da consciência subjetiva o critério último da moralidade e também da religião20. Como sair deste círculo venenoso? Voltando-nos para a lei natural, “único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica”.21A lei moral entra no tema do nosso terceiro e último ponto. 3) Urgência da necessidade de formação da consciência baseada na lei moral natural. A urgência formativa que o Papa Bento tanto menciona nos seus pronunciamentos “se refere de maneira muito especial ao tema da vida. Desejo verdadeiramente – fala ele – que se preste uma atenção muito particular sobre tudo aos jovens, para que aprendam o autêntico sentido do amor e se preparem para ele com uma adequada educação no que se alude à sexualidade, sem deixar-se enganar por mensagens efímeras que impedem chegar à essência da verdade que está em jogo”.22 “Chegar à essência da verdade”: eis todo um programa de aprendizagem para se alcançar a maturidade cristã. Para que isso seja realizável, devemos escutar o que expõe o Papa ao assegurar que a “nossa fé se opõe decididamente à resignação que considera o homem incapaz da verdade, como se esta fosse demasiado grande para ele”. “Esta resignação ante a verdade –continua ele- é a origem da crise do Ocidente. Se para o homem não existe uma verdade, no fundo, não pode nem sequer distinguir entre o bem e o mal”.23Mas “o principio primordial e generalíssimo de ‘fazer o bem e evitar o mal’ trata-se de uma verdade cuja evidência se impõe imediatamente a cada um. Trata-se também do dever de buscar a verdade, pressuposto necessário de todo verdadeiro amadurecimento da pessoa”.24 O amadurecimento na esfera da moral sexual é fruto de uma formação que deve saber ler a natureza humana e mostrar a lógica do desenho divino, começando pela explicação da diferença sexual, que muitas vezes é tida como um simples acidente ou capricho que se pode desfazer a qualquer momento. Ensinando sobre ela, Bento XVI diz que “a diferença sexual que conota o corpo do homem e da mulher não é um simples dado biológico, mas reveste um significado muito mais profundo: exprime a forma de amor com que o homem e a mulher, tornando-se como diz a Sagrada Escritura uma só carne, podem realizar uma autêntica comunhão de pessoas, aberta à transmissão da vida e desta forma cooperam com Deus para a geração de novos seres humanos”.25 Seguindo seu raciocínio afirma que “no homem e na mulher a paternidade e a maternidade, como o corpo e como o amor, não se deixam circunscrever no biológico: a vida só é dada totalmente quando, com o nascimento, são dados também o amor e o sentido que fazem com que seja possível dizer sim a esta vida. Precisamente disto se torna totalmente evidente como é contrário ao amor humano, à vocação profunda do homem e da mulher, fechar sistematicamente a própria união à doação da vida, e ainda mais suprimir ou violar a vida que nasce”.26 Assim, com autoridade papal, ele nos mostra a malícia intrínseca do ato esterilizado pelos anticonceptivos, verdade dita também por seus predecessores e analisada profundamente nas primeiras catequeses de João Paulo II. Em uma delas o servo de Deus diz que o ato conjugal, privado da sua verdade interior, ao ser privado artificialmente de sua capacidade procriadora, deixa também de ser ato de amor”.“Neste ato conjugal se realiza uma real união corpórea, mas não corresponde à verdade interior nem à dignidade da comunhão pessoal”.27 Esta dignidade da comunhão pessoal nasce da dignidade pessoal de cada homem e de cada mulher, que por sua vez é o fundamento da cultura da familia e da vida que a Igreja proclama e nos convida a proclamar unidos a ela. Enquanto muitos duvidam da capacidade do homem de se elevar e ser fiel à graça divina, nós temos a conviccão, oferecida pela Redenção, de que o homem é capaz de corresponder ao chamado divino e realizar assim o plano divino, que dá sentido à sua existência terrena e lhe abre as portas do céu. E a Igreja nos mostra o caminho: Como Mãe, nos ensina que a vida humana é sagrada porque “desde o seu alvorecer compromete diretamente a ação criadora de Deus”.28 Como Mestra ela proclama que a família é o futuro da humanidade29, e que seu valor é único e insubstituível!30 E como Esposa… nos pede para olhar para o Seu Esposo, Jesus Cristo, e aprender com Ele como amar até a consumação final. Que na Vigília de São João Batista ele nos guie no nosso apostolado. ___________________________________________ 1 Bento XVI, discurso no Congresso Internacional na Faculdade Lateranense no 40º aniversário da HV, 10 de maio de 2008. 2 Paulo VI, carta Encíclica Humanae vitae, n. 3 3 Paulo VI, carta Encíclica Humanae vitae, n. 4 4 Paulo VI, carta Encíclica Humanae vitae, n. 4 5 Bento XVI, discurso no Congresso Internacional sobre Matrimônio e família, 11 maio 2006. 6 Paulo VI, Carta Encíclica Humanae vitae, n. 8. 7 Paulo VI, Carta Encíclica Humanae vitae, n. 7: “O problema da natalidade, como de qualquer outro problema que diga respeito à vida humana(grifo meu), deve ser considerado numa perspectiva que transcenda as vistas parciais – sejam elas de ordem biológica, psicológica, demográfica ou sociológica – à luz da visão integral do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna.” 8 Paulo VI, Carta Encíclica Humanae vitae, n. 8 9 Joseph Ratzinger, Carta aos bispos sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo, n. 6, 31 de maio de 2004. Meditando sobre o livro de Gênesis, o então cardeal Ratzinger afirma que a criação da mulher “exprime um aspecto fundamental da semelhança com a Santíssima Trindade, cujas Pessoas, com a vinda de Cristo, revelam estar em comunhão de amor, umas para as outras. E cita ao Papa João Paulo II: «Na “unidade dos dois”, o homem e a mulher são chamados, desde o início, não só a existir “um ao lado do outro” ou “juntos”, mas também a existir reciprocamente “um para o outro”. 10 Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est, n.5 11 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 12 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 13 Pio XI, Carta Encíclica Casti Connubii, n. 3 14 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 15 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 16 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 17 Bento XVI, discurso no Congresso Internacional sobre matrimônio e família, 11 maio 2006. 18 Paulo VI, Carta Encíclica Humanae vitae, n. 18 19 Bento XVI, diálogo espontâneo com sacerdotes na Igreja Santa Justina mártir de Auronzo di Cadore, 24 de julho de 2007. 20 Bento XVI, diálogo espontâneo com sacerdotes na Igreja Santa Justina mártir de Auronzo di Cadore, 24 de julho de 2007. 21 Bento XVI, discurso no Congresso sobre lei moral natural na Pontifícia Universidade Lateranense, 12 de fevereiro de 2007. 22 Bento XVI, discurso no Congresso Internacional na Faculdade Lateranense no 40º aniversário da HV, 10 de maio de 2008. 23 Bento XVI, homilia aos monges australianos em Mariazell, 9 de setembro de 2007. 24 Cf. Bento XVI, discurso no Congresso sobre lei moral natural na Pontifícia Universidade Lateranense, 12 de fevereiro de 2007. 25 Bento XVI, discurso no Congresso Internacional sobre Matrimônio e família, 11 maio 2006. 26 Bento XVI, discurso no Congresso Eclesial Diocesano na Basílica de São João de Latrão, 6 junho 2005. 27 João Paulo II, Audiência Geral 22 de agosto de 1984. 28 Paulo VI, carta Encíclica Humanae vitae, n. 13, citando a João XXIII. 29 João Paulo II, exortação apostólica Familiares Consortio n. 86 |