1. Também hoje refletimos sobre o Cântico dos Cânticos a fim de compreender ainda melhor o sinal sacramental do matrimônio.
A verdade do amor, proclamada pelo Cântico dos Cânticos, não pode ser separada da “linguagem do corpo”. A verdade do amor faz com que a mesma “linguagem do corpo” seja relida na verdade. Esta é também a verdade do progressivo aproximar-se dos esposos que aumenta através do amor: e a aproximação significa também a iniciação no mistério da pessoa, sem, porém, incluir a sua violaçãoi.
A verdade da crescente aproximação dos esposos através do amor desenvolve-se na dimensão subjetiva “do coração”, do afeto e do sentimento, a qual permite descobrir em si o outro como dom e, em certo sentido, “saboreá-lo” em siii.
Através desta aproximação, o esposo vive mais plenamente a experiência daquele dom que por parte do “eu” feminino se une com a expressão e o significado esponsais do corpo. As palavras do homemiii não contêm apenas uma descrição poética da amada, da sua beleza feminina, sobre a qual se detêm os sentidos, mas falam do dom e do dar-se da pessoa.
A esposa sabe que se voltam para ela os “desejos” do esposo e vai ao encontro dele com a prontidão do dom de siiv porque o amor que os une é de natureza espiritual e, ao mesmo tempo, sensual. E é também com base neste amor que se realiza a releitura na verdade do significado do corpo, porque o homem e a mulher devem constituir em comum aquele sinal do recíproco dom de si, que põe a marca sobre toda a sua vida.
2. No Cântico dos Cânticos, a “linguagem do corpo” está inserida no singular processo da recíproca atração do homem e da mulher, que é expressa nos freqüentes ritorneios que falam da procura cheia de nostalgia, de solicitude afetuosav e do recíproco encontrar-se dos espososvi. Isto lhes dá alegria e serenidade e parece induzi-los a uma busca contínua. Tem-se a impressão de que, encontrando-se, alcançando-se, experimentando a própria aproximação, continuam incessantemente a tender para algo: cedem à chamada de algo que supera o conteúdo do momento e ultrapassa os limites do eros, relidos nas palavras da mútua “linguagem do corpo”vii. Esta busca tem a sua dimensão interior: “o coração vigia” até no sono. Esta aspiração nascida do amor com base na “linguagem do corpo” é uma busca do belo integral, da pureza isenta de toda a mancha: é uma busca de perfeição que contém, diria, a síntese da beleza humana, beleza da alma e do corpo.
No Cântico dos Cânticos, o eros humano mostra a face do amor sempre em busca e quase nunca satisfeito. O eco desta inquietude percorre as estrofes do poemeto:
“Abri a porta ao meu amado, / mas ele já se tinha ido, já tinha desaparecido. / Ao ouvi-lo falar, a minha alma ficava fora de si. / Procurei-o, mas não o achei; / chamei-o e ele não respondeu”viii. “Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, / que, se encontrardes o meu amigo, / lhe digais que desfaleço de amor”ix.
3. Portanto, algumas estrofes do Cântico dos Cânticos apresentam o eros como a forma do amor humano, em que atuam as forças do desejo. E é nelas que se radica a consciência, ou seja, a certeza subjetiva do recíproco, fiel e exclusivo pertencer-se. Ao mesmo tempo, porém, muitas outras estrofes do poema impõem-nos refletir sobre a causa da busca e da inquietude que acompanham a consciência de pertencer um ao outro. Esta inquietude faz parte, também ela, da natureza do eros? Se assim fosse, tal inquietude indicaria também a necessidade da auto-superação. A verdade do amor exprime-se na consciência do recíproco pertencer-se, fruto da aspiração e da busca mútua, e na necessidade da aspiração e da busca, resultado do recíproco pertencer-se.
Em tal necessidade interior, em tal dinâmica de amor, desvela-se indiretamente a quase impossibilidade de apropriar-se e apoderar-se da pessoa por parte do outro. A pessoa é alguém que supera todas as medidas de apropriação e domínio, de posse e de satisfação, que emergem da mesma “linguagem do corpo”. Se o esposo e a esposa relêem esta “linguagem” na plena verdade da pessoa e do amor, chegam à convicção cada vez mais profunda de que a amplitude da sua pertença constitui aquele dom recíproco em que o amor se revela “forte como a morte”, isto é, atinge os últimos limites da “linguagem do corpo” para os superar. A verdade do amor interior e a verdade do dom recíproco, de certo modo, chamam continuamente o esposo e a esposa —através dos meios de expressão do recíproco pertencer-se e até afastando-se daqueles meios— a chegar àquilo que constitui o núcleo mesmo do dom da pessoa à pessoa.
4. Segundo as veredas das palavras traçadas pelas estrofes do Cântico dos Cânticos parece, portanto, que nos aproximamos da dimensão em que o eros procura integrar-se, mediante mais outra verdade do amor. Séculos depois —à luz da morte e ressurreição de Cristo— esta verdade proclamá-la-á Paulo de Tarso, com as palavras da Epístola aos Coríntios:
“A caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita mal, não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca acabará”x.
A verdade sobre o amor, expressa nas estrofes do Cântico dos Cânticos, é confirmada à luz destas palavras paulinas? No Cântico, lemos, por exemplo, sobre o amor, que a “paixão” é “violenta como o sepulcro”xi, e na Epístola paulina lemos que “a caridade não é invejosa”. Em que relação estão as duas expressões sobre o amor? Em que relação está o amor que “é forte como a morte”, segundo o Cântico dos Cânticos, com o amor que “nunca acabará”, segundo a Epístola paulina? Não aumentamos estas questões, nem iniciamos a análise comparativa. Parece, todavia, que o amor se abre diante de nós, em duas perspectivas: como se aquilo em que o eros humano fecha o próprio horizonte se abrisse ainda, através das palavras paulinas, para um outro horizonte de amor que fala outra linguagem; o amor que parece emergir de outra dimensão da pessoa e chama, convida a outra comunhão. A este amor foi dado o nome de “agape” e esta leva a satisfazer, purificando-o, o eros.
Concluímos, assim, estas breves meditações sobre o Cântico dos Cânticos, destinadas a aprofundar ulteriormente o tema da “linguagem do corpo”. Neste âmbito, o Cântico dos Cânticos tem um significado absolutamente singular.
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i Cf. Ct 1, 13-14.16.
ii Cf. Ct 2, 3-6.
iii Cf. Ct 7, 1-8.
iv Cf. Ct 7, 9-10.11-13.
v Cf. Ct 2, 7.
vi Cf. Ct 5, 2.
vii Cf. Ct 1, 7-8; 2, 17.
viiiCt 5, 6.
ixCt 5, 8.
x1Cor 13, 4-8.
xiCt 8, 6.