1. Retomamos a nossa análise do Cântico dos Cânticos, a fim de compreender de modo mais adequado e exauriente o sinal sacramental do matrimônio, como o manifesta a linguagem do corpo, que é uma linguagem singular do amor gerado pelo coração.
O esposo, a certo ponto, exprimindo uma particular experiência de valores, que irradia sobre tudo aquilo que está em relação com a pessoa amada, diz:
“Arrebataste o meu coração, minha irmã, minha esposa, / arrebataste o meu coração com um só dos teus olhares, / com uma só pérola do teu colar. / Como são deliciosas as tuas carícias, / minha irmã, minha esposa!…”i.
Destas palavras emerge que é de importância essencial para a teologia do corpo —e, neste caso, para a teologia do sinal sacramental do matrimônio— saber quem é o feminino “tu” para o masculino “eu” e vice-versa.
O esposo do Cântico dos Cânticos exclama: “Toda és formosa, ó amiga minha”ii. Chama-lhe “minha irmã, minha esposa”iii. Não a chama com o nome próprio, mas usa expressões que dizem mais.
Sob um certo aspecto, em relação ao apelativo de “amiga”, o de “irmã” usado para a esposa parece mais eloqüente e estar mais radicado no conjunto do Cântico, que manifesta como o amor revela o outro.
2. O termo “amiga” indica aquilo que é sempre essencial para o amor, que põe o segundo “eu” ao lado do próprio “eu”. A “amizade” —o amor de amizade (amor amicitiae)— significa, no Cântico, uma particular aproximação sentida e experimentada como força interiormente unificante. O fato de que nesta aproximação aquele “eu” feminino se revele para o esposo como “irmã” —e que precisamente como irmã seja esposa— tem particular eloqüência. A expressão “irmã” fala da união na humanidade e, ao mesmo tempo, da diversidade e originalidade feminina da mesma não só quanto ao sexo, mas do modo mesmo de “ser pessoa”, que tanto significa “ser sujeito” como “estar em relação”. O termo “irmã” parece exprimir, de modo mais simples, a subjetividade do “eu” feminino na relação pessoal com o homem, isto é, na abertura dele para os outros, que devem ser entendidos e percebidos como irmãos. A “irmã”, num certo sentido, ajuda o homem a definir-se e a compreender-se deste modo, constituindo para ele uma espécie de desafio nesta direção.
3. O esposo do Cântico aceita o desafio e procura o passado comum, como se ele e a sua mulher descendessem do âmbito da mesma família, como se desde a infância estivessem unidos pelas recordações do mesmo lar. Deste modo, sentem-se reciprocamente próximos como irmão e irmã, que devem a sua existência à mesma mãe. Resulta, assim, um específico sentido de comum pertença. O fato de se sentirem irmão e irmã permite-lhes viver com segurança a recíproca proximidade e manifestá-la, encontrando nisto apoio e não temendo o juízo iníquo dos outros homens.
As palavras do esposo, mediante o apelativo “irmã”, tendem a reproduzir, diria, a história da feminilidade da pessoa amada, vêem-na ainda no tempo da infância e abraçam o seu inteiro “eu”, alma e corpo, com uma ternura desinteressada. Daqui nasce aquela paz de que fala a esposa. Esta é a “paz do corpo”, que na aparência se assemelha ao sono (“não acordeis nem perturbeis a minha amada, antes que ela o queira”). Esta é, sobretudo, a paz do encontro na humanidade como imagem de Deus —e o encontro mediante um dom recíproco e desinteressado (“Também sou aos seus olhos aquela que encontrou a paz”iv).
4. Em relação ao precedente contexto, que poderia ser chamado contexto “fraterno”, emerge no amoroso dueto do Cântico dos Cânticos outro contexto —digamos—, outro substrato do conteúdo. Podemos examiná-lo partindo de certas locuções que no pequeno poema parecem ter um significado-chave. Este contexto não emerge nunca de modo explícito, mas através de toda a composição e manifesta-se expressamente só nalgumas passagens. Eis o que diz o esposo:
“És jardim fechado, minha irmã, minha esposa, / nascente fechada, fonte selada“v.
As metáforas agora lidas: “nascente fechada, fonte selada” revelam a presença de uma outra visão do mesmo “eu” feminino, senhor do próprio mistério. Pode-se dizer que ambas as metáforas exprimem a dignidade pessoal da mulher que, enquanto sujeito espiritual, pertence a si mesma e pode decidir não só da profundidade metafísica, mas também da verdade essencial e da autenticidade do dom de si, tendente àquela união de que fala o Livro do Gênesis.
A linguagem metafórica —linguagem poética— parece ser, neste âmbito, particularmente apropriada e precisa. A “irmã-esposa” é, para o homem, senhor do seu mistério como “nascente fechada” e “fonte selada”. A “linguagem do corpo” relida na verdade anda a par e passo com a descoberta da inviolabilidade interior da pessoa. Ao mesmo tempo, precisamente esta descoberta exprime a autêntica profundidade da recíproca pertença dos esposos, conscientes de pertencerem um ao outro, de serem destinados um para o outro: “O meu amado é para mim e eu sou para ele”vi.
5. Esta consciência da recíproca pertença ressoa, sobretudo, nos lábios da esposa. Em certo sentido, ela responde com tais palavras às palavras do esposo, com as quais ele a reconheceu senhora do próprio mistério. Quando a esposa diz: “O meu amado é para mim”, quer dizer, ao mesmo tempo: é aquele a quem me entrego a mim mesma, e por isso diz: “e eu sou para ele”vii. Os adjetivos: “meu” e “minha” afirmam aqui toda a profundidade daquela entrega, que é correspondente à verdade interior da pessoa.
Corresponde também ao significado esponsal da feminilidade em relação ao “eu” masculino, isto é, à “linguagem do corpo” relida na verdade da linguagem pessoal.
Esta verdade foi pronunciada pelo esposo com as metáforas da “nascente fechada” e da “fonte selada”. A esposa responde-lhe com as palavras da oferta, isto é, da entrega de si mesma. Como senhora da própria escolha, diz: “Eu sou para o meu amado”. O Cântico dos Cânticos salienta sutilmente a verdade interior desta resposta. A liberdade da oferta é resposta à profunda consciência da oferta expressa pelas palavras do esposo. Mediante tal verdade e liberdade, constrói-se o amor, que, devemos afirmar, é amor autêntico.
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iCt 4, 9-10.
iiCt 4, 7.
iiiCt 4, 9.
ivCt 8, 10.
vCt 4, 12.
viCt 2, 16; cf. 6, 3.
viiCt 2, 16.