1. Dissemos em precedência que, no contexto das presentes reflexões sobre a estrutura do homem como sinal sacramental, devemos ter em conta não só o que declarou Cristo sobre a sua unidade e indissolubilidade, fazendo referência ao “princípio”, mas também (e ainda mais) o que Ele disse no Sermão da Montanha, quando apelou para o “coração” humano. Referindo-se ao mandamento “não desejar a mulher do próximo”, Cristo falou do “adultério no coração”: “Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração”i.
Assim, portanto, ao afirmar que o sinal sacramental do matrimônio —sinal da aliança conjugal do homem e da mulher— se forma com base na “linguagem do corpo” uma vez relida na verdade (e continuamente relida), damo-nos conta de que aquele que relê esta “linguagem” e depois a exprime, não segundo as exigências próprias do matrimônio como pacto e sacramento, é natural e moralmente o homem da concupiscência: varão e mulher, compreendidos ambos eles como o “homem da concupiscência”. Os profetas do Antigo Testamento têm, sem dúvida, diante dos olhos este homem quando, servindo-se de uma analogia, condenam o “adultério de Israel e de Judá”. A análise das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha leva-nos a compreender mais profundamente o “adultério” mesmo. E de igual modo leva a convencermo-nos que o “coração” humano não é tanto “acusado e condenado” por Cristo devido à concupiscência (concupiscentia carnis), quanto, antes de tudo, “chamado”. Aqui aparece uma decisiva divergência entre a antropologia (ou a hermenêutica antropológica) do Evangelho e alguns influentes representantes de hermenêutica contemporânea do homem (os chamados mestres da suspeita).
2. Passando para o terreno da nossa presente análise, podemos contatar que, embora o homem, apesar do sinal sacramental do matrimônio, apesar do consentimento matrimonial e da sua atuação, permaneça naturalmente o “homem da concupiscência”, todavia, é contemporaneamente o homem da “chamada”. É “chamado” através do mistério da redenção do corpo, mistério divino, que, ao mesmo tempo, é —em Cristo e por Cristo em cada homem— realidade humana. Aquele mistério, além disso, comporta um determinado ethos que, por essência, é “humano” e que já em precedência chamamos ethos da redenção.
3. À luz das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha, à luz de todo o Evangelho e da Nova Aliança, a tríplice concupiscência (e, em particular, a concupiscência da carne) não destrói a capacidade de reler na verdade a “linguagem do corpo” —e de a reler continuamente de modo mais amadurecido e mais total—, pelo que o sinal sacramental é constituído quer no seu primeiro momento litúrgico, quer, em seguida, na dimensão de toda a vida. A esta luz é necessário constatar que, se a concupiscência de per si gera multíplices “erros” ao reler a “linguagem do corpo” e juntamente gera também o “pecado”, o mal moral, contrário à virtude da castidade (quer conjugal quer extra-conjugal), no âmbito do ethos da redenção, todavia permanece sempre a possibilidade de passar do “erro” à “verdade”, como também a possibilidade de retorno, ou seja, de conversão, do pecado à castidade, como expressão de uma vida segundo o Espíritoii.
4. Deste modo, na visão evangélica e cristã do problema, o homem “histórico” (depois do pecado original), com base na “linguagem do corpo” relida na verdade, é capaz —como varão e mulher— de constituir o sinal sacramental da fidelidade e da honestidade conjugal, e isto como sinal duradouro: “ser-te sempre fiel, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te todos os dias da minha vida”. Isto quer dizer que o homem, de modo real, é autor dos significados mediante os quais, depois de ter relido na verdade a “linguagem do corpo”, é também capaz de formar na verdade aquela linguagem na comunhão conjugal e familiar das pessoas. É capaz disto também como “homem da concupiscência”, sendo ao mesmo tempo “chamado” pela realidade da Redenção de Cristo (simul lapsus et redemptus).
5. Mediante a dimensão do sinal, própria do matrimônio como sacramento, é confirmada a específica antropologia teológica, a específica hermenêutica do homem, que neste caso poderia também chamar-se “hermenêutica do sacramento“, porque permite compreender o homem com base na análise do sinal sacramental. O homem —varão e mulher— como ministro do sacramento, autor (co-autor) do sinal sacramental, é sujeito consciente e capaz de autodeterminação. Somente sobre esta base pode ser o autor da “linguagem do corpo”, pode ser também autor (co-autor) do matrimônio como sinal: sinal da divina criação e “redenção do corpo”. O fato de que o homem (varão e mulher) é o homem da concupiscência, não impede que ele seja capaz de reler a linguagem do corpo segundo a verdade. É o “homem da concupiscência”, mas, ao mesmo tempo, é capaz de discernir a verdade da falsidade na linguagem do corpo e pode ser autor dos significados verdadeiros (ou falsos) daquela linguagem.
6. É o homem da concupiscência, mas não é completamente determinado pela “libido” (no sentido em que freqüentemente é usado este termo). Tal determinação significaria que o conjunto dos comportamentos do homem, até mesmo, por exemplo, a escolha da continência por motivos religiosos, explicar-se-ia apenas através das específicas transformações desta “libido”. Em tal caso —no âmbito da linguagem do corpo—, o homem seria em certo sentido condenado a falsificações essenciais: seria apenas aquele que exprime uma específica determinação por parte da “libido”, mas não exprimiria a verdade (ou a falsidade) do amor esponsal e da comunhão das pessoas, mesmo que pensasse manifestá-la. Por conseguinte, seria, então, condenado a desconfiar de si mesmo e dos outros, a respeito da verdade da linguagem do corpo. Devido à concupiscência da carne, poderia ser apenas “acusado”, mas não poderia ser verdadeiramente “chamado”.
A “hermenêutica do sacramento” permite-nos tirar a conclusão de que o homem é sempre essencialmente “chamado” e não só “acusado”, e isto exatamente enquanto “homem da concupiscência”.
iMt 5, 28.
ii Cf. Gl 5, 16.