1. Analisamos a Epístola aos Efésios, e sobretudo a passagem do capítulo 5, 22-23, sob o ponto de vista da sacramentalidade do matrimônio. Agora, examinamos ainda o mesmo texto na ótica das palavras do Evangelho.
As palavras de Cristo dirigidas aos fariseusi referem-se ao matrimônio como sacramento, ou seja, à revelação primordial do querer e do agir salvífico de Deus “ao princípio”, no mistério mesmo da criação. Em virtude daquele querer e agir salvífico de Deus, o homem e a mulher, unindo-se entre si de modo a tornarem-se “uma só carne”ii, eram, ao mesmo tempo, destinados a estar unidos “na verdade e na caridade” como filhos de Deusiii, filhos adotivos no Filho Primogênito, dileto desde a eternidade. A tal unidade e a tal comunhão de pessoas, à semelhança da união das pessoas divinasiv, são dedicadas as palavras de Cristo, que se referem ao matrimônio como sacramento primordial e, ao mesmo tempo, confirmam aquele sacramento com base no mistério da Redenção. De fato, a original “unidade no corpo” do homem e da mulher não cessa de plasmar a história do homem sobre a terra, embora tenha perdido a limpidez do sacramento, do sinal da salvação, que possuía “no princípio”.
2. Se Cristo diante dos seus interlocutores, no Evangelho de Mateus e de Marcosv, confirma o matrimônio como sacramento instituído pelo Criador “no princípio” —se, em conformidade com ele exige a sua indissolubilidade— com isto mesmo abre o matrimônio à ação salvífica de Deus, às forças que brotam “da redenção do corpo” e que ajudam a superar as conseqüências do pecado e a construir a unidade do homem e da mulher segundo o desígnio eterno do Criador. A ação salvífica que deriva do mistério da Redenção assume em si a original ação santificante de Deus no mistério mesmo da Criação.
3. As palavras do Evangelho de Mateusvi têm, ao mesmo tempo, uma eloqüência ética muito expressiva. Estas palavras confirmam —com base no mistério da Redenção— o sacramento primordial e, ao mesmo tempo, estabelecem um ethos adequado, que já nas nossas precedentes reflexões chamamos “ethos da redenção”. O ethos evangélico e cristão, na sua essência teológica, é o ethos da redenção. Podemos, decerto, encontrar para aquele ethos uma interpretação racional, uma interpretação filosófica de caráter personalístico; todavia, na sua essência teológica, é um ethos da redenção, melhor: um ethos da redenção do corpo. A redenção torna-se, ao mesmo tempo, a base para compreender a particular dignidade do corpo humano, radicada na dignidade pessoal do homem e da mulher. A razão desta dignidade está precisamente na raiz da indissolubilidade da aliança conjugal.
4. Cristo faz referência ao caráter indissolúvel do matrimônio como sacramento primordial e, confirmando este sacramento com base no mistério da redenção, tira, ao mesmo tempo, as conclusões de natureza ética: “Quem repudiar a mulher e casar com outra cometerá adultério contra ela. E se a mulher repudiar o marido e casar com outro, comete adultério”vii. Pode-se afirmar que de tal modo a redenção é dada ao homem como graça da nova aliança com Deus em Cristo —e, ao mesmo tempo, lhe é confiada como ethos: como forma da moral correspondente à ação de Deus no mistério da Redenção. Se o matrimônio como sacramento é sinal eficaz da ação salvífica de Deus “desde o princípio”, ao mesmo tempo —à luz das palavras de Cristo aqui meditadas—, este sacramento constitui também uma exortação dirigida ao homem, varão e mulher, a participar conscienciosamente da redenção do corpo.
5. A dimensão ética da redenção do corpo delineia-se de modo particularmente profundo quando meditamos sobre as palavras pronunciadas por Cristo no sermão da Montanha, em relação ao mandamento “Não cometerás adultério”. “Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração”viii. A este lapidário enunciado de Cristo dedicamos precedentemente um vasto comentário, na convicção de que ele tem significado fundamental para toda a teologia do corpo, sobretudo na dimensão do homem “histórico”. E, embora estas palavras não se refiram direta e imediatamente ao matrimônio como sacramento, todavia é impossível separá-las do inteiro substrato sacramental em que, no que diz respeito ao pacto conjugal, foi colocada a existência do homem como varão e mulher: quer no contexto original do mistério da Criação, quer também, em seguida, no contexto do mistério da Redenção. Este substrato sacramental refere-se sempre às pessoas concretas, penetra naquilo que é o homem e a mulher (ou melhor, em quem é o homem e a mulher), na própria dignidade original de imagem e semelhança com Deus em virtude da criação, e contemporaneamente na mesma dignidade herdada apesar do pecado e de novo continuamente “confiada” como tarefa ao homem mediante a realidade da Redenção.
6. Cristo, que no Sermão da Montanha dá a própria interpretação do mandamento “Não cometerás adultério” —interpretação constitutiva do novo ethos—, com as mesmas palavras lapidárias confia como tarefa a cada homem a dignidade de cada mulher; e, contemporaneamente (embora do texto isto resulte só de modo indireto) confia também a cada mulher a dignidade de cada homem1. Confia, por fim, a cada um —quer ao homem, quer à mulher— a própria dignidade: em certo sentido, o “sacrum” da pessoa, e isto em consideração da sua feminilidade ou masculinidade, em consideração do “corpo”. Não é difícil notar que as palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha dizem respeito ao ethos. Ao mesmo tempo, não é difícil afirmar, depois de uma reflexão aprofundada, que tais palavras brotam da profundidade mesma da redenção do corpo. Embora elas não se refiram diretamente ao matrimônio como sacramento, não é difícil constatar que alcançam o seu próprio e pleno significado em relação com o sacramento: quer o primordial, que está unido com o mistério da Criação, quer aquele em que o homem “histórico”, depois do pecado e em conseqüência da sua pecaminosidade hereditária, deve encontrar de novo a dignidade e santidade da união conjugal “no corpo”, com base no mistério da Redenção.
7. No Sermão da Montanha —como também no colóquio com os fariseus sobre a indissolubilidade do matrimônio— Cristo fala da profundidade daquele mistério divino. E, ao mesmo tempo, entra na profundidade mesma do mistério humano. Por isso, faz apelo ao “coração”, àquele “lugar íntimo”, onde combatem no homem o bem e o mal, o pecado e a justiça, a concupiscência e a santidade. Falando da concupiscência (do olhar com desejoix), Cristo torna os seus ouvintes conscientes de que cada um traz em si, juntamente com o mistério do pecado, a dimensão interior “do homem da concupiscência” (que é tríplice: “concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida”x). Precisamente a este homem da concupiscência é dado no matrimônio o sacramento da Redenção como graça e sinal da aliança com Deus —e é-lhe confiado como ethos. E, contemporaneamente, em relação com o matrimônio como sacramento, é confiado como ethos a cada homem, varão ou mulher: é confiado ao seu “coração”, à sua consciência, aos seus olhares e ao seu comportamento. O matrimônio —segundo as palavras de Cristoxi— é sacramento desde o “princípio” mesmo e contemporaneamente, com base na pecaminosidade “histórica” do homem, é sacramento nascido do mistério da “redenção do corpo”.
1 O texto de São Marcos, que fala de indissolubilidade do matrimônio afirma claramente que também a mulher se torna sujeito de adultério, quando repudia o marido e cas com outro (cf. Mc 10, 12).
i Cf. Mt 19.
iiGn 2, 24.
iii Cf. Gaudium et spes, 24.
iv Cf. Gaudium et spes, 24.
v Cf. Mt 19; Mc 10.
vi Cf. Mt 19, 3-9; e Mc 10, 2-12.
viiMc 10, 11s; cf. Mt 19, 9.
viiiMt 5, 27-28.
ix Cf. Mt 5, 28.
x1Jo 2, 16.
xi Cf. Mt 19, 4.