1. A Epístola aos Efésios, por meio da semelhança da relação entre Cristo e a Igreja com a relação esponsal dos cônjuges, faz referência à tradição dos Profetas do Antigo Testamento. Para o explicar, citamos o seguinte texto de Isaías: “Não temas, porque não serás confundida; não te envergonhes, porque não serás afrontada. Esquecer-te-ás da vileza da tua mocidade, e não te lembrarás mais do opróbrio da tua viuvez. Com efeito, o teu esposo é o teu Criador, que se chama o Senhor dos exércitos; o teu Redentor é o Santo de Israel, chama-se o Deus de toda a terra. Sim, o Senhor te chamou como uma mulher abandonada e angustiada. Pode-se repudiar uma mulher desposada na juventude? —diz o Senhor teu Deus. Por uma hora, por um momento Eu te abandonei, mas, no Meu grande amor, volto a chamar-te. (…) Ainda que os montes sejam abalados e tremam as colinas, o Meu amor jamais se apartará de ti, e a Minha aliança de paz não se mudará, diz o Senhor, compadecido de ti”i.
2. O texto de Isaías não contém neste caso as repreensões feitas a Israel como a esposa desleal, a ecoarem com tanta energia nos outros textos, em particular de Oséias ou de Ezequiel. Graças a isto, torna-se mais transparente o conteúdo essencial da analogia bíblica: o amor de Deus-Javé para com Israel-povo eleito é expresso como o amor do homem-esposo para com a mulher eleita para ser sua esposa por meio do pacto conjugal. Desse modo, Isaías explica os acontecimentos, que formam o curso da história de Israel, remontando ao mistério quase oculto no coração mesmo de Deus. Em certo sentido, ele conduz-nos na mesma direção, a que nos levará, depois de muitos séculos, o Autor da Epístola aos Efésios, que —baseando-se na redenção já realizada em Cristo— desvelará muito mais plenamente a profundidade do mesmo mistério.
3. O texto do Profeta tem todo o colorido da tradição e da mentalidade dos homens do Antigo Testamento. O Profeta, falando em nome de Deus e quase com as Suas palavras, dirige-se a Israel como esposo à esposa por ele escolhida. Estas palavras transbordam de uma autêntica ardência do amor e, ao mesmo tempo, põem em relevo toda a especificidade seja da situação seja da mentalidade próprias daquela época. Sublinham que a escolha por parte do homem tira à mulher a “desonra”, que, segundo a opinião da sociedade, parecia ligada com o estado nupcial tanto originário (a virgindade), como secundário (a viuvez), quer enfim o derivado do repúdio da mulher não amadaii ou possivelmente da mulher infiel. Todavia, o texto citado não faz menção da infidelidade; faz notar, pelo contrário, o motivo de “amor misericordioso”1, indicando com isto não só a índole social do matrimônio na Antiga Aliança, mas também o caráter mesmo do dom, que é o amor de Deus para com Israel-esposa: dom, que provém inteiramente da iniciativa de Deus. Por outras palavras: indicando a dimensão da graça, que desde o princípio está contida naquele amor. Esta é talvez a mais forte “declaração de amor” por parte de Deus, ligada com o solene juramento de fidelidade para sempre.
4. A analogia do amor que une os cônjuges é neste trecho fortemente marcada. Isaías diz: “… O teu esposo é o teu Criador, que se chama o Senhor dos exércitos; o teu Redentor é o Santo de Israel, chama-se o Deus de toda a terra”iii. Assim, portanto, nesse texto o mesmo Deus, em toda a Sua majestade de Criador e Senhor da criação, é explicitamente chamado “esposo” do povo eleito. Este “esposo” fala do seu grande “afeto”, que não se “afastará” de Israel-esposa, mas constituirá um fundamento estável da “aliança de paz” com ele. Assim, o motivo do amor esponsal e do matrimônio está ligado com o motivo da aliança. Além disso, o Senhor dos exércitos chama-se a si mesmo não só “Criador”, mas também “Redentor”. O texto tem conteúdo teológico de riqueza extraordinária.
5. Confrontando o texto de Isaías com a Epístola aos Efésios e verificando a continuidade quanto à analogia do amor esponsal e do matrimônio, devemos fazer notar ao mesmo tempo certa diversidade de ótica teológica. O Autor da Epístola fala, já no primeiro capítulo, do mistério do amor e da eleição, com que “Deus, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo” abraça os homens no Seu Filho, sobretudo como de um mistério “oculto na mente de Deus”. Este é o mistério do amor paterno, mistério da eleição à santidade (“para sermos santos e imaculados diante dos Seus olhos”iv) e da adoção para filhos em Cristo (“predestinando-nos para sermos Seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo”v). Em tal contexto, a dedução da analogia acerca do matrimônio, que encontramos em Isaías (“o teu esposo é o teu Criador, que se chama o Senhor dos exércitos”vi), parece ser uma redução que faz parte da perspectiva teológica. A primeira dimensão do amor e da eleição, como mistério há séculos escondido em Deus, é uma dimensão paterna e não “conjugal”. Segundo a Epístola aos Efésios, a primeira nota característica desse mistério fica unida com a paternidade mesma de Deus, colocada particularmente em relevo pelos profetas2.
6. A analogia do amor esponsal e do matrimônio aparece quando o “Criador” e “Santo de Israel” do texto de Isaías se manifesta como “Redentor”. Isaías diz: “o teu esposo é o teu Criador, que se chama o Senhor dos exércitos; o teu Redentor é o Santo de Israel”vii. Já neste texto é possível, em certo sentido, ler o paralelismo entre o “esposo” e o “Redentor”. Passando à Epístola aos Efésios, devemos observar que nela este pensamento está mesmo plenamente desenvolvido. A figura do Redentor3 desenha-se já no capítulo primeiro como própria daquele que é o primeiro “Filho dileto” do Paiviii, dileto desde a eternidade: daquele, no qual nós todos fomos “há séculos” amados pelo Pai. É o Filho da mesma substância do Pai, “no qual temos a remissão mediante o Seu sangue, a remissão dos pecados segundo a riqueza da Sua graça”ix. O mesmo Filho, como Cristo (ou seja, como Messias), “amou a Igreja e deu-se a si mesmo por ela”x.
Esta esplêndida formulação da Epístola aos Efésios resume e, ao mesmo tempo, põe em relevo os elementos do Cântico sobre o Servo de Javé e do Cântico de Siãoxi.
E, assim, a doação de si mesmo pela Igreja eqüivale à consumação da obra redentora. De tal modo, o “Criador Senhor dos exércitos” do texto de Isaías torna-se o “Santo de Israel”, do “novo Israel”, como redentor. Na Epístola aos Efésios a perspectiva teológica do texto profético conserva-se e, ao mesmo tempo, entram novos momentos revelados: o momento trinitário, cristológico4 e, por fim, escatológico.
7. Assim, portanto, São Paulo, escrevendo a epístola ao povo de Deus da Nova Aliança e precisamente à Igreja de Éfeso, não repetirá já: “O teu esposo é o teu Criador”, mas mostrará de que modo o “Redentor”, que é o Filho primogênito e há séculos “dileto do Pai”, revela, ao mesmo tempo, o seu amor salvífico, que está na doação de si mesmo pela Igreja, como amor esponsal com que ele desposa a Igreja e a faz o seu próprio Corpo. Assim, a analogia dos textos proféticos do Antigo Testamento (no caso, sobretudo, do livro de Isaías) é na Epístola aos Efésios conservada e, ao mesmo tempo, eminentemente transformada. À analogia corresponde o mistério, que através dela é expresso e, em certo sentido, explicado. No texto de Isaías, este mistério é apenas esboçado, quase “entreaberto”; na Epístola aos Efésios, pelo contrário, é plenamente desvelado (entende-se, sem deixar de ser mistério). Na Epístola aos Efésios é explicitamente distinta a dimensão eterna do mistério enquanto oculto em Deus (“Pai do Senhor nosso Jesus Cristo”) e a medida da sua realização histórica, segundo a dimensão cristológica e, ao mesmo tempo, eclesiológica. A analogia do matrimônio refere-se, sobretudo, à segunda dimensão. Também nos Profetas (em Israel) a analogia do matrimônio referia-se diretamente a uma dimensão histórica: estava ligada com a história do povo eleito da Antiga Aliança, com a história de Israel; pelo contrário, a dimensão cristológica e eclesiológica, na atuação vétero-testamentária do mistério, encontrava-se só como em embrião: foi só prenunciada.
Apesar disso, é claro que o texto de Isaías nos ajuda a compreender melhor a Epístola aos Efésios e a grande analogia do amor esponsal de Cristo e da Igreja.
1 No texto hebraico, temos as palavras hesed-rahamim, que aparecem juntas mais de uma vez.
2 Embora nos mais antigos livros bíblicos o “redentor” (hebr. go’el) significasse a pessoa obrigada por laços de sangue a vingar o parente assassinado (cf., por ex., Núm 35, 19), a prestar auxílio ao parente desafortunado (cf. por ex., Lv 25, 48), com o andar do tempo esta analogia foi aplicada a Javé, “o qual resgatou Israel da condição servil, da mão do faraó, rei do Egito” (Dt 7, 8). Particularmente no Deutero-Isaías a insistência desloca-se da ação do resgate para a pessoa do Redentor, que pessoalmente salva Israel, quase só mediante a Sua mesma presença, “sem dinheiro e sem presentes” (Is 45, 13).
Por isso, a passagem do “Redentor” da profecia de Isaías 54 para a Epístola aos Efésios tem o mesmo motivo da aplicação, na mencionada Epístola, dos textos do Cântico do Servo de Javé (cf. Is 53, 10; Ef 5, 23.25-26).
3 Embora nos mais antigos livros bíblicos o “redentor” (hebr. go’el) significasse a pessoa obrigada por laços de sangue a vingar o parente assassinado (cf., por ex., Nm 35, 19), a prestar auxílio ao parente desafortunado (cf., por ex., Lv 25, 48), com o andar do tempo esta analogia foi aplicada a Javé, “o qual resgatou Israel da condição servil, da mão do faraó, rei do Egito” (Dt 7, 8). Particularmente no Deutero-Isaías a insistência desloca-se da ação do resgate para a pessoa do Redentor, que pessoalmente salva Israel, quase só mediante a Sua mesma presença, “sem dinheiro e sem presentes” (Is 45, 13).
Por isso, a passagem do “Redentor” da profecia de Isaías 54 para a Epístola aos Efésios tem o mesmo motivo da aplicação, na mencionada Epístola, dos textos do Cântico sobre o Servo de Javé (cf. Is 53, 10-12; Ef 5, 23.25-26).
4 Em lugar da relação “Deus-Israel”, Paulo introduz a relação “Cristo-Igreja”, aplicando a Cristo tudo o que no Antigo Testamento se refere a Javé (Adonai – Kyrios). Cristo é Deus, mas Paulo aplica-lhe também tudo o que se refere ao Servo de Javé nos quatro cânticos (cf. Is 42; 49; 50; 52-53).
O motivo da “Cabeça” e do “Corpo” não é de derivação bíblica, mas provavelmente helenística (estóica?). Na Epístola aos Efésios este tema foi utilizado no contexto do matrimônio (ao passo que na primeira Epístola aos Coríntios o tema do “Corpo” serve para demonstrar a ordem que reina na sociedade).
Do ponto de vista bíblico, a introdução deste motivo é novidade absoluta.
iIs 54, 4-10.
ii Cf. Dt 24, 1.
iiiIs 54, 5.
ivEf 1, 4.
v 1, 5.
viIs 54, 5.
viiIs 54, 5.
viiiEf 1, 6.
ixEf 1, 7.
xEf 5, 25.
xi Cf., por ex., Is 42, 1; 53, 8-12; 54, 8.