1. Temos diante de nós o texto da Epístola aos Efésios 5, 22-33, que há tempos vamos analisando por causa da sua importância para o problema do matrimônio como sacramento. No total do seu conteúdo, a começar do primeiro capítulo, a Epístola trata sobretudo do mistério “há séculos” “escondido em Deus“, como dom eternamente destinado ao homem. “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n’Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos. Predestinou-nos para sermos Seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por Sua livre vontade, para fazer resplandecer a Sua maravilhosa graça, pela qual nos tornou agradáveis em Seu amado Filho”i.
2. Até agora, fala-se do mistério escondido “de há séculos”ii em Deus. As frases sucessivas introduzem o leitor na fase de atualização daquele mistério na história do homem: o dom, destinado a ele “de há séculos” em Cristo, torna-se parte real do homem no mesmo Cristo: “… É n’Ele que temos a redenção, pelo Seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da Sua graça, que abundantemente derramou sobre nós, com plena sabedoria e discernimento, dando-nos a conhecer o mistério da Sua vontade, segundo o beneplácito que n’Ele de antemão estabelecera, para ser realizado ao completarem-se os tempos: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas que há no Céu e na Terra”iii.
3. Assim, o eterno mistério passou do estado de “escondimento em Deus” à fase de revelação e de aplicação. Cristo, no qual a humanidade esteve “havia séculos” escolhida e abençoada “com todas as bênçãos espirituais” do Pai —Cristo, destinado, segundo o eterno “desígnio” de Deus, para que n’Ele, como no Chefe “fossem recapituladas todas as coisas, as do céu com as da terra” na perspectiva escatológica— revela o eterno mistério e atua-o entre os homens. Por isso, o Autor da Epístola aos Efésios, no seguimento da Epístola mesma, exorta aqueles a quem chegou esta revelação, e todos os que a aceitaram na fé, a modelarem a sua vida no espírito da verdade conhecida. À mesma coisa exorta de modo particular os cônjuges cristãos, maridos e mulheres.
4. Pela maior parte do contexto, a epístola torna-se instrução, ou seja, parênese. O Autor parece falar sobretudo dos aspectos morais da vocação dos cristãos, fazendo todavia contínua referência ao mistério, que já opera neles em virtude da redenção de Cristo —e opera com eficácia sobretudo em virtude do batismo. Escreve na verdade: “Foi n’Ele que vós também, depois de terdes ouvido a Palavra da verdade —o Evangelho da vossa salvação, no qual acreditastes— fostes marcados com o selo do Espírito Santo, que tinha sido prometido”iv. Assim, portanto, os aspectos morais da vocação cristã mantêm-se ligados não só com a revelação do eterno mistério divino em Cristo e com a aceitação dele na fé, mas também com a ordem sacramental, que, embora não se colocando no primeiro plano em toda a letra, parece todavia estar presente de modo discreto. Aliás, não pode ser diversamente, dado que o Apóstolo escreve aos cristãos que, mediante o batismo, se tinham tornado membros da comunidade eclesial. Deste ponto de vista, o trecho da Epístola aos Efésios cap. 5, 22-23, até agora analisado, parece ter importância particular. Lança, de fato, luz extraordinária sobre a essencial relação do mistério com o sacramento e especialmente sobre a sacramentalidade do matrimônio.
5. No centro do mistério está Cristo. N’Ele —precisamente n’Ele— a humanidade foi eternamente abençoada “com toda a bênção espiritual”. N’Ele —em Cristo— a humanidade foi escolhida “antes da criação do mundo”, escolhida “na caridade” e predestinada para a adoção de filhos. Quando, em seguida, com a “plenitude dos tempos”, este eterno mistério foi realizado no tempo, isto é, atuado também n’Ele e por Ele; em Cristo e por Cristo. Por meio de Cristo é revelado o mistério do Amor divino. Por Ele e n’Ele, completa-se: n’Ele “temos a redenção mediante o Seu sangue, a remissão dos pecados…”v. De tal modo, os homens que aceitam mediante a fé o dom que lhes é oferecido em Cristo, tornam-se realmente participantes do eterno mistério, embora este opere neles sob os véus da fé. Este sobrenatural conferimento dos frutos da redenção operada por Cristo adquire, segundo a Epístola aos Efésios 5, 22-33, o caráter de um dar-se esponsal do próprio Cristo à Igreja à semelhança da relação esponsal entre o marido e a mulher. Portanto, não só os frutos da redenção constituem dom, mas é-o sobretudo Cristo: Ele dá-se a Si mesmo à Igreja, como à Sua esposa.
6. Devemos fazer a pergunta se neste ponto tal analogia não nos consente penetrar mais profundamente e com maior precisão no conteúdo essencial do mistério. Devemos fazer-nos tal pergunta, tanto mais que aquela “clássica” passagem da Epístola aos Efésiosvi não surge em abstrato e isolada, mas constitui uma continuidade, em certo sentido um seguimento dos enunciados do Antigo Testamento, que apresentavam o amor de Deus-Javé para com o povo-Israel por Ele escolhido segundo a mesma analogia. Trata-se, em primeiro lugar, dos textos dos Profetas que nos seus discursos introduziram a semelhança do amor esponsal para caracterizar de modo particular o amor que Javé nutre para com Israel, o amor que da parte do povo eleito não encontra compreensão e correspondência; pelo contrário, encontra infidelidade e traição. A expressão de infidelidade e traição foi, primeiro que tudo, a idolatria, culto prestado aos deuses estrangeiros.
7. Para dizer a verdade, na maior parte dos casos tratava-se de pôr em realce de modo dramático precisamente aquela traição e aquela infidelidade denominadas “adultério” de Israel; todavia, na base de todos estes enunciados dos Profetas está a explícita convicção de o amor de Javé para com o povo eleito poder e dever comparar-se ao amor que une o esposo com a esposa, o amor que deve unir os cônjuges. Conviria aqui citar numerosas passagens dos textos de Isaías, Oséias, Ezequiel (alguns deles foram já aduzidos precedentemente, quando foi analisado o conceito de “adultério” até ao fundo das palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha). Não se pode esquecer que ao patrimônio do Antigo Testamento pertence também o “Cântico dos Cânticos” em que a imagem do amor esponsal foi descrita —é verdade— sem a analogia típica dos textos proféticos, que apresentavam naquele amor a imagem de Javé para com Israel, mas também sem aquele elemento negativo que nos outros textos constitui o motivo de “adultério”, ou seja, de infidelidade. Assim, pois, a analogia do esposo e da esposa, que permitiu ao Autor da Epístola aos Efésios definir a relação de Cristo com a Igreja, possui rica tradição nos livros da Antiga Aliança. Analisando esta analogia no “clássico” texto da Epístola aos Efésios, não podemos deixar de referir-nos àquela tradição.
8. Para explicar essa tradição limitar-nos-emos por agora a citar um trecho do texto de Isaías. O profeta diz: “Não temas, porque não serás confundida; não te envergonhes, porque não serás afrontada. Esquecer-te-ás da vileza da tua mocidade, e não te lembrarás mais do opróbrio da tua viuvez. Com efeito, o teu esposo é o teu Criador, que se chama o Senhor dos exércitos; o teu Redentor é o Santo de Israel, chama-se o Deus de toda a terra. Sim, o Senhor te chamou como uma mulher abandonada e angustiada. Pode-se repudiar uma mulher desposada na juventude? —diz o Senhor teu Deus. Por uma hora, por um momento Eu te abandonei, mas, no Meu grande amor, volto a chamar-te. (…) Ainda que os montes sejam abalados e tremam as colinas, o Meu amor jamais se apartará de ti, e a Minha aliança de paz não se mudará, diz o Senhor, compadecido de ti”vii.
Durante o nosso próximo encontro começaremos a análise do texto citado de Isaías.
iEf 1, 3-6.
iiEf 3, 9.
iiiEf 1, 7-10.
ivEf 1, 13.
vEf 1, 7.
vi 5, 22-33.
viiIs 54, 4-7.10.