1. O Autor da Epístola aos Efésios escreve: “Ninguém jamais… aborreceu a própria carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela como também Cristo o faz à Sua Igreja, porque somos membros do Seu corpo”i. Depois deste versículo, o Autor julga oportuno citar aquilo que na Bíblia inteira pode ser considerado o texto fundamental sobre o matrimônio, texto contido no Gênesis, cap. 2, 24: “Por isso, o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à sua mulher e passarão os dois a ser uma só carne”ii. É possível deduzir do contexto imediato da Epístola aos Efésios que a citação do Livro do Gênesisiii é aqui necessária não tanto para recordar a unidade dos cônjuges, definida desde “o princípio” na obra da criação, quanto a fim de apresentar o mistério de Cristo com a Igreja, de que o Autor deduz a verdade sobre a unidade dos cônjuges. Este é o ponto mais importante de todo o texto, em certo sentido, o elemento central. O Autor da Epístola aos Efésios encerra nestas palavras tudo o que disse precedentemente, traçando a analogia e apresentando a semelhança entre a unidade dos cônjuges e a unidade de Cristo com a Igreja. Referindo-se às palavras do Livro do Gênesisiv, o Autor faz notar que as bases de tal analogia devem ser procuradas na linha que, no plano salvífico de Deus, une o matrimônio, como a mais antiga revelação (e “manifestação”) daquele plano no mundo criado, com a revelação e “manifestação” definitiva, isto é, a revelação de “Cristo ter amado a Igreja e se ter dado a Si mesmo por ela”v, conferindo ao Seu amor redentor índole e sentido esponsais.
2. Assim, portanto, esta analogia, que penetra o texto da Epístola aos Efésiosvi, tem a base última no plano salvífico de Deus. Isto tornar-se-á ainda mais claro e evidente quando colocarmos a passagem do texto por nós analisado no contexto total da Epístola aos Efésios. Então, se compreenderá mais facilmente a razão por que o Autor, depois de citar as palavras do Livro do Gênesisvii, escreve: “É grande este mistério; digo-o, em relação a Cristo e à Igreja”viii.
No contexto global da Epístola aos Efésios e, além disso, no contexto mais amplo das palavras da Sagrada Escritura que revelam o plano salvífico de Deus “desde o princípio”, é preciso admitir que o termo “mysterion” significa aqui o mistério, primeiramente oculto no pensamento divino, e em seguida revelado na história do homem. Trata-se, de fato, de um mistério “grande“, dada a sua importância: esse mistério, como plano salvífico de Deus a respeito da humanidade, é, em certo sentido, o tema central de toda a revelação, a sua realidade central. É aquilo que Deus, como Criador e Pai, deseja sobretudo transmitir aos homens na Sua Palavra.
3. Tratava-se de transmitir não só a “boa nova” sobre a salvação, mas de iniciar, ao mesmo tempo, a obra da salvação, como fruto da graça que santifica o homem para a vida eterna na união com Deus. Precisamente no caminho desta revelação-atuação, São Paulo põe em relevo a continuidade entre a mais antiga aliança que Deus estabeleceu constituindo o matrimônio já na obra da criação, e a Aliança definitiva em que Cristo, depois de amar a Igreja e Se dar a si mesmo por ela, se une com a mesma de modo esponsal, correspondente à imagem dos cônjuges. Esta continuidade da iniciativa salvífica de Deus constitui a base essencial da grande analogia contida na Epístola aos Efésios. A continuidade da iniciativa salvífica de Deus significa a continuidade e mesmo a identidade do mistério, do “grande mistério”, nas diversas fases da sua revelação —portanto, em certo sentido, da sua “manifestação”— e, ao mesmo tempo, da atuação; na fase “mais antiga” do ponto de vista da história do homem e da salvação e na fase “da plenitude do tempo”ix.
4. É possível entender aquele “grande mistério” como “sacramento”? O Autor da Epístola aos Efésios fala acaso, no texto por nós citado, do sacramento do matrimônio? Se não fala dele diretamente e em sentido estrito —aqui é necessário estar de acordo com a opinião bastante difundida dos biblistas e teólogos—, todavia parece que neste trecho fala das bases da sacramentalidade de toda a vida cristã, e, em particular, das bases da sacramentalidade do matrimônio. Fala, portanto, da sacramentalidade de toda a existência cristã na Igreja e, em particular, do matrimônio de modo indireto, todavia do modo mais fundamental possível.
5. “Sacramento” não é sinônimo de “mistério”1. O mistério, na verdade, permanece “oculto” —escondido em Deus mesmo— de maneira que mesmo a seguir à sua proclamação (ou seja, revelação) não deixa de chamar-se “mistério”, e é também pregado como mistério. O sacramento pressupõe também a sua aceitação mediante a fé, por parte do homem. Todavia, ele é, a um tempo, alguma coisa mais do que a proclamação do mistério e a aceitação mediante a fé. O sacramento consiste em “manifestar” aquele mistério num sinal que serve não só para proclamar o mistério, mas também para atuá-lo no homem. O sacramento é sinal visível e eficaz da graça. Por seu meio, atua-se no homem aquele mistério oculto desde a eternidade em Deus, de que fala, logo desde o princípio, a Epístola aos Efésiosx —mistério da chamada à santidade, por parte de Deus, do homem em Cristo, e mistério da sua predestinação a tornar-se Seu filho adotivo. Isso realiza-se de modo misterioso, sob o véu de um sinal; apesar disso, esse sinal é sempre também um “tornar visível” aquele mistério sobrenatural que opera no homem sob o seu véu.
6. Tomando em consideração a passagem da Epístola aos Efésios aqui analisada, e em particular as palavras “Este mistério é grande; digo-o em referência a Cristo e à Igreja”, é necessário verificar que o Autor da epístola escreve não só referindo-se ao grande mistério oculto em Deus, mas também, e sobretudo, ao mistério que se realiza pelo fato de Cristo —o qual com ato de amor redentor amou a Igreja e Se deu a si mesmo por ela— com o mesmo ato se unir com a Igreja de modo esponsal, assim como se unem reciprocamente o marido e a mulher no matrimônio instituído pelo Criador. Parece que as palavras da Epístola aos Efésios motivam suficientemente o que lemos no princípio mesmo da Constituição Lumen gentium: “… a Igreja é em Cristo como um sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”xi. Este texto do Vaticano II não diz “A Igreja é sacramento”, mas “é como sacramento”, indicando com isto que da sacramentalidade da Igreja é preciso falar de modo analógico e não idêntico a respeito daquilo que entendemos quando nos referimos aos sete sacramentos administrados pela Igreja por instituição de Cristo. Se existem as bases para falar da Igreja como de sacramento, tais bases foram na maior parte indicadas precisamente na Epístola aos Efésios.
7. Pode-se dizer que tal sacramentalidade da Igreja é constituída por todos os sacramentos, por meio dos quais ela realiza a sua missão santificadora. Pode-se, além disso, dizer que a sacramentalidade da Igreja é fonte dos sacramentos, e em particular do Batismo e da Eucaristia, como resulta da passagem, já analisada, da Epístola aos Efésiosxii. É necessário, por fim, dizer que a sacramentalidade da Igreja se mantém em particular relação com o matrimônio: o sacramento mais antigo.
1 O “sacramento”, conceito central para as nossas considerações, percorreu, no decurso dos séculos, longa caminhada. A história semântica do termo “sacramento”, é necessário começá-la com o termo grego “mystérion“, que, para dizer a verdade, no livro de Judite significa ainda os planos militares do rei (“conselho secreto”, cf. Jt 2, 2), mas já no livro da Sabedoria (2, 22) e na profecia de Daniel (2, 27), significa os planos criadores de Deus e o fim que ele assinala ao mundo e são revelados só aos confessores fiéis.
Em tal sentido, “mystérion” aparece só uma vez no Evangelho: “a vós foi confiado o mistério do Reino de Deus” (Mc 4, 11 e par.). Nas grandes epístolas de São Paulo aquele termo volta sete vezes, com o ponto culminante na Epístola aos Romanos: “… segundo o Evangelho que eu vos anuncio e a mensagem de Jesus Cristo, segundo a revelação do mistério escondido por séculos eternos, mas revelado agora…” (Rm 16, 25-26).
Nas Epístolas posteriores, dá-se a identificação do “mystérion” com o Evangelho (cf. Ef 6, 19) e até com o mesmo Jesus Cristo (cf. Cl 2, 2; 4, 3; Ef 3, 4), o que origina uma mudança ao entender-se o termo: “mystérion” já não é só o plano eterno de Deus, mas a realização na terra desse plano, revelado em Jesus Cristo.
Por isso, no período patrístico, começam-se a denominar “mystérion” também os aconteciemtnos históricos através dos quais se manifesta a vontade divina de salvar o homem. Já no século II, nos escritos de Santo Inácio de Antioquia, de São Justino e de Melitão, os mistério da vida de Deus, as profecias e as figuras simbólicas do Antigo Testamento se definem com o termo “mystérion”.
No século III, começam a aparecer as mais antigas versões em latim da Sagrada Escritura, em que o termo grego é traduzido quer por “mystérion”, quer por “sacramento” (por ex., Sb 2, 22; Ef 5, 32), talvez por explícito afastamento dos ritos misteriosos dos pagãos e da neoplatônica mistagogia gnóstica.
Todavia, originariamente, o “sacramentum” significa o juramento militar, prestado pelos legionários romanos. Dado que nele se podia distinguir o aspecto de “iniciação numa nova forma de vida”, “o compromisso sem reserva”, “o serviço fiel até ao risco de morte”, Tertuliano faz notar estas dimenões no sacramento do Batismo, da Crisma e da Eucaristia. No século III é, em seguida, aplicado o termo “sacramentum” quer ao mistério do plano salvífico de Deus em Cristo (cf., por ex., Ef 5, 32), quer à sua concreta realização por meio das sete fontes da graça, chamadas hoje “sacramentos da Igreja”.
Santo Agostinho, servindo-se de vários significados deste termo, chamou sacramentos aos ritos religiosos tanto da Antiga como da Nova Aliança, aos símbolos e às figuras bíblicas como também à religião cristã revelada. Todos estes “sacramentos”, segundo Santo Agostinho, pertencem ao grande sacramento: o mistério de Cristo e da Igreja. Santo Agostinho influiu na posterior precisação do termo “sacramento”, sublinhando que os sacramentos são sinais sagrados; que têm em si semelhança com aquilo que significam e coferem o que significam. Contribuiu, pois, com as suas análises para elaborar uma concisa definição escolástica do sacramento: “signum efficax gratiae”.
Santo Isidoro de Sevilha (século VIII) sublinhou em seguda outro aspecto: a misteriosa natureza do sacramento que, sob os véus de espécies materiais, esconde a ação do Espírito Santo na alma do homem.
As sumas teológicas dos séculos XII e XIII formulam já as definições sistemáticas dos sacramentos, mas um significado particualr tem a definição de São Tomás: “Non omne signum rei sacrae est sacramentum, sed solum ea quae signifcant perfectionem sanctitalis humanae” (3a, q. 60, a. 2).
Como “sacramento” foi, desde então por diante, entendida exclusivamente uma das sete fontes da graça, e os estudos dos teólogos aplicam-se ao aprofundamento da essência e da ação dos sete sacramentos, elaborando, de maneira sistemática, as linhas principais, contidas na tradição escolástica.
Só no último século foi prestada atenção aos aspectos do sacramento inadvertidos no decurso dos séculos, por exemplo, à sua dimensão eclesial e ao encontro pessoal com Cristo, que encontraram expressão na Constituição sobre a Liturgia (n. 59). Todavia, o Vaticano II volta sobretudo ao significado originário do “sacramento-mistério”, denominando a Igreja “sacramento universal da salvação” (Lumen gentium, 48), sacramento, ou seja, “sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen gentium, 1).
O sacramento é aqui entendido —em conformidade com o seu significado originário— como realização do eterno plano divino relativo à salvação da humanidade.
iEf 5, 29-30.
iiEf 5, 31; Gn 2, 24.
iiiGn 2, 24.
ivGn 2, 24.
vEf 5, 25.
vi 5, 22-33.
vii 2, 24.
viiiEf 5, 32.
ixGl 4, 4.
x Cf. Ef 1, 9.
xiLumen gentium, 1.
xii Cf. Ef 5, 25-30.