1. Nas precedentes considerações sobre o capítulo quinto da Epístola aos Efésios (5, 21-33), chamamos particularmente a atenção para a analogia da relação entre Cristo e a Igreja, e da que existe entre o esposo e a esposa, isto é, entre o marido e a mulher, unidos pelo vínculo esponsal. Antes de nos aplicarmos à análise das passagens seguintes do texto em questão, devemos tomar consciência de que no âmbito da fundamental analogia paulina —Cristo e a Igreja, por um lado, o homem e a mulher como cônjuges, pelo outro— há também uma analogia suplementar: isto é, a analogia da Cabeça e do Corpo. E é precisamente esta analogia que imprime significado principalmente eclesiológico ao enunciado analisado por nós: a Igreja, como tal, é formada por Cristo; é constituída por Ele na sua parte essencial, como o corpo pela cabeça. A união do corpo com a cabeça é sobretudo de natureza orgânica, é, em palavras simples, a união somática do organismo humano. Sobre esta união orgânica, funda-se, de modo direto, a união biológica, enquanto se pode dizer que “o corpo vive pela cabeça” (ainda que, ao mesmo tempo, embora de outro modo, a cabeça viva pelo corpo). E, além disso, se se trata do homem, sobre esta união orgânica funda-se também a união psíquica, entendida na sua integridade e, afinal, a unidade integral da pessoa humana.
2. Como já foi dito (pelo menos no trecho analisado), o Autor da Epístola aos Efésios introduziu a analogia suplementar da cabeça e do corpo, no âmbito da analogia do matrimônio. Parece mesmo ter concebido a primeira analogia —”cabeça-corpo”— de maneira mais central do ponto de vista da verdade sobre Cristo e sobre a Igreja, por ele proclamada. Todavia, é necessário igualmente afirmar que não a pôs de lado ou fora da analogia do matrimônio como laço esponsal. Antes, pelo contrário. No texto inteiro da Epístola aos Efésiosi, e especialmente na primeira parte, de que nos estamos ocupandoii, o Autor fala como se no matrimônio também o marido fosse “cabeça da mulher”, e a mulher “corpo do marido”, como se também os cônjuges formassem uma união orgânica. Isto pode encontrar o seu fundamento no texto do Gênesis, em que se fala de “uma só carne”iii, ou seja, naquele mesmo texto, ao qual o Autor da Epístola aos Efésios se referirá dentro em pouco no quadro da sua grande analogia. Apesar disso, no texto do Livro do Gênesis é claramente posto em evidência que se trata do homem e da mulher, como de dois distintos sujeitos pessoais, que decidem conscientemente da sua união conjugal, definida por aquele arcaico texto com os termos: “uma só carne”. E também na Epístola aos Efésios, é isto igualmente bem claro. O Autor serve-se de uma dupla analogia: cabeça-corpo, marido-mulher, com o fim de ilustrar claramente a natureza da união entre Cristo e a Igreja. Em certo sentido, especialmente nesta primeira passagem do texto aos Efésios 5, 22-33, a dimensão eclesiológica parece decisiva e dominadora.
3. “As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da Igreja, Seu Corpo, do qual Ele é o Salvador. E, como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e por ela se entregou a si mesmo…”iv. Esta analogia suplementar “cabeça-corpo” faz que, no âmbito da passagem inteira da Epístola aos Efésios 5, 22-33, temos de tratar de dois assuntos distintos, os quais em virtude duma particular relação recíproca, se torna em certo sentido um só sujeito: a cabeça constitui, juntamente com o corpo, um só sujeito (no sentido físico e metafísico), um organismo, uma pessoa humana, um ser. Não há dúvida ser Cristo um sujeito diverso da Igreja; todavia, em virtude de uma particular relação, une-se com ela, como numa união orgânica da cabeça e do corpo: a Igreja é tão fortemente, tão essencialmente, ela mesma em virtude de uma união com Cristo (místico). É possível dizer o mesmo dos cônjuges, do homem e da mulher, unidos com um laço matrimonial? Se o Autor da Epístola aos Efésios vê a analogia da união da cabeça com o corpo também no matrimônio, esta analogia, em certo sentido, parece referir-se ao matrimônio em consideração da união que forma Cristo com a Igreja e a Igreja com Cristo. Portanto, a analogia diz sobretudo respeito ao matrimônio mesmo, como aquela união pela qual “dois formarão uma carne só”v.
4. Esta analogia, todavia, não ofusca a individualidade dos sujeitos: a do marido e a da mulher, isto é, a essencial bi-subjetividade que está na base da imagem de um “só corpo”, melhor, a essencial bi-subjetividade do marido e da mulher no matrimônio, que faz deles, em certo sentido, “um só corpo”, passa, no âmbito de todo o texto que estamos examinandovi, à imagem da Igreja-Corpo, unida com Cristo como Cabeça. Isto vê-se especialmente no seguimento deste texto, onde o Autor descreve a relação de Cristo com a Igreja precisamente mediante a imagem da relação do marido com a mulher. Nesta descrição, a Igreja-Corpo de Cristo aparece claramente como sujeito segundo da união conjugal, ao qual o sujeito primeiro, Cristo, manifesta o amor com que o amou dando-se “a Si mesmo por ela”. Aquele amor é imagem e, sobretudo, modelo do amor que o marido deve manifestar à mulher no matrimônio, quando ambos estão sujeitos um ao outro “no temor de Cristo”.
5. Lemos, de fato: “Maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja, e por ela Se entregou, para a santificar, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para a apresentar a Si mesmo como a Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada. Assim, os maridos devem amar as suas mulheres, como aos seus próprios corpos. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela, como também Cristo o faz à Sua Igreja, pois somos membros de um só corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e passarão os dois a ser uma só carne”vii.
6. É fácil descobrir que nesta parte do texto da Epístola aos Efésios 5, 22-33 “prevalece” claramente a bi-subjetividade: esta nota-se quer na relação Cristo-Igreja, quer também na relação marido-mulher. Isto não quer dizer que desapareça a imagem dum sujeito único: a imagem dum “só corpo”. É conservada também na passagem do nosso texto, e em certo sentido é aí melhor explicada ainda. Isto ver-se-á com maior clareza quando submetermos a uma análise particularizada o trecho supracitado. Assim, portanto, o Autor da Epístola aos Efésios fala do amor de Cristo para com a Igreja, explicando o modo como aquele amor se exprime, e apresentando, ao mesmo tempo, tanto aquele amor como as suas expressões como modelo que o marido deve seguir a respeito da própria mulher. O amor de Cristo para com a Igreja tem essencialmente, como finalidade, a sua santificação: “Cristo amou a Igreja e deu-se a Si mesmo… para a tornar santa”viii. No princípio desta santificação está o batismo, primeiro e essencial fruto da doação de si, que fez Cristo pela Igreja. Neste texto, o batismo não é chamado com o próprio nome, mas definido como purificação “por meio da ablução da água, acompanhada pela palavra”ix. Este batismo, com o poder que deriva da doação redentora de Si, que fez Cristo pela Igreja, opera a purificação fundamental mediante a qual o amor d’Ele para com a Igreja adquire, aos olhos do Autor da Epístola, um caráter esponsal.
7. É sabido que no sacramento do batismo participa um sujeito individual na Igreja. O Autor da Epístola, todavia, através daquele sujeito individual do batismo vê toda a Igreja. O amor esponsal de Cristo refere-se a ela, à Igreja, todas as vezes que recebe cada pessoa nela a purificação fundamental por meio do batismo. Quem recebe o batismo, em virtude do amor redentor de Cristo, torna-se, ao mesmo tempo, participante do seu amor esponsal para com a Igreja. “O batismo da água, acompanhado pela palavra” é, no nosso texto, a expressão do amor esponsal, no sentido de que prepara a Esposa (Igreja) para o Esposo, faz a Igreja Esposa de Cristo, diria “in actu primo”. Alguns estudiosos da Bíblia observam neste lugar que, no texto por nós citado, o “batismo da água” evoca a ablução ritual que precedia o casamento —o que constituía importante rito religioso mesmo entre os Gregos.
8. Como sacramento do batismo, a “purificação da água, acompanhada pela palavra”x torna Esposa a Igreja não só “in actu primo“, mas também na perspectiva mais longínqua, ou seja, na perspectiva escatológica. Esta abre-se diante de nós quando, na Epístola aos Efésios, lemos que “o batismo da água” serve, por parte do Esposo, “para a apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada”xi. A expressão “para a apresentar a Si mesmo” parece indicar aquele momento do casamento, em que a Esposa é levada ao esposo, já vestida com o traje nupcial e adornada para o casamento. O texto citado faz notar que o mesmo Cristo-Esposo tem cuidado de adornar a Esposa-Igreja, tem cuidado de a fazer bela com a beleza da graça, bela em virtude do dom da salvação na sua plenitude, já concedido desde o sacramento do batismo. Mas o batismo é só o princípio de que deverá brotar a figura da Igreja gloriosa (conforme lemos no texto), como fruto definitivo do amor redentor e esponsal, somente com a última vinda de Cristo (parusia).
Vemos quão profundamente o Autor da Epístola aos Efésios perscruta a realidade sacramental, proclamando a grande analogia dela: quer a união de Cristo com a Igreja, quer a união esponsal do homem e da mulher no matrimônio, são deste modo iluminadas por uma particular luz sobrenatural.
i 5, 22-33.
ii 5, 22-23.
iiiGn 2, 24.
ivEf 5, 22-25.
vEf 5, 31; cf. Gn 2, 24.
viEf 5, 22-33.
viiEf 5, 25-31.
viiiEf 5, 25-26.
ixEf 5, 26.
xEf 5, 26.
xiEf 5, 27.