79ª. O celibato é renúncia feita por amor – 21/04/1982

1. Continuamos as reflexões sobre as palavras de Cristo relativas à continência “por amor do Reino dos Céus”.

Não é possível entender plenamente o significado e o caráter da continência, se a última locução do enunciado de Cristo, “por amor do Reino dos Céus”i, não for completada pelo seu conteúdo adequado, concreto e objetivo. Dissemos, precedentemente, que esta locução exprime o motivo, ou melhor, põe em relevo, em certo sentido, a finalidade subjetiva da chamada de Cristo à continência. Todavia, a expressão em si mesma tem caráter objetivo, indica de fato uma realidade objetiva, pelo que as pessoas individualmente, homens ou mulheres, podem “fazer-se” (como diz Cristo) eunucos. A realidade do “reino” no enunciado de Cristo segundo Mateusii é definida de modo preciso e, ao mesmo tempo, geral, isto é, de modo a poder compreender todas as determinações e os significados particulares que lhe são próprios.

2. O “Reino dos Céus” significa o “reino de Deus”, por Cristo anunciado na sua realização final, ou seja, escatológica. Cristo anunciava este reino na sua realização ou instauração temporal, e, ao mesmo tempo, prenunciava-o na sua realização escatológica. A instauração temporal do Reino de Deus é, ao mesmo tempo, a sua inauguração e a sua preparação para a realização definitiva. Cristo chama para este reino, e em certo sentido, convida todos para eleiii. Se chama alguns à continência “por amor do Reino dos Céus”, pelo conteúdo daquela expressão conclui-se que Ele os chama a participarem de modo singular na instauração do reino de Deus sobre a terra, graças ao que tem início e se prepara a fase definitiva do “Reino dos Céus”.

3. Em tal sentido, dissemos que aquele chamamento traz em si o sinal particular do dinamismo próprio do mistério da redenção do corpo. Assim, por conseguinte, na continência por amor do reino de Deus põe-se em evidência, como já mencionamos, o negar-se a si mesmo, tomar a sua cruz, dia após dia, e seguir Cristoiv, que pode chegar até ao ponto de levar à renúncia do matrimônio e de uma família própria. Tudo isto deriva da convicção de que, deste modo, é possível contribuir na medida maior para a realidade do reino de Deus na sua dimensão terrena na perspectiva da realização escatológica. Cristo, no seu enunciado segundo Mateusv, diz, de modo geral, que a renúncia voluntária ao matrimônio tem esta finalidade, mas não especifica tal afirmação. No seu primeiro enunciado sobre este tema. Ele não precisa ainda quais as tarefas concretas para que é necessária ou indispensável tal continência voluntária, ao realizar o reino de Deus sobre a terra e ao preparar-lhe a futura realização.

Alguma coisa mais ouviremos a este propósito de Paulo de Tarsovi e o resto será completado pela vida da Igreja no seu desenvolvimento histórico, guiado pela corrente da autêntica Tradição.

4. No enunciado de Cristo sobre a continência “por amor do Reino dos Céus” não encontramos indício algum mais pormenorizado do modo como entender aquele mesmo “reino” —seja quanto à sua realização terrena, seja quanto à sua definitiva realização— na sua específica e “excepcional” relação com aqueles que por ele “se fazem” voluntariamente “eunucos”.

Não se diz mediante qual aspecto particular da realidade constitutiva do reino lhe são associados aqueles que se fizeram livremente “eunucos”. Sabe-se, de fato, que o Reino dos Céus é para todos: estão em relação com ele sobre a terra (e no Céu) também aqueles que “tomam esposa e tomam marido”. Para todos ele é a “vinha do Senhor”, na qual aqui, na terra, devem trabalhar; e é, em seguida, a “casa do Pai”, em que devem encontrar-se na eternidade. Que é, pois, aquele reino para aqueles que por causa dele escolhem a continência voluntária?

5. A estes interrogativos não encontramos por agora no enunciado de Cristo, referido por Mateusvii, resposta alguma. Parece que isto corresponda ao caráter de todo o enunciado. Cristo responde aos seus discípulos, de modo não conciliador com o pensamento e as apreciações deles, no que se esconde, pelo menos indiretamente, uma atitude utilitarista a respeito do matrimônioviii. O Mestre afasta-se explicitamente de tal abertura ao problema e, por conseguinte, ao falar da continência “por amor do Reino dos Céus”, não indica porque vale a pena, desta maneira, renunciar ao matrimônio, a fim de que aquele “convém” não soe aos ouvidos dos discípulos com alguma nota utilitarista. Diz apenas que tal continência às vezes é exigida, mas não indispensável, para o reino de Deus. E, com isto, indica que ela constitui, no reino anunciado por Cristo e para o qual chama, um valor particular em si mesma. Aqueles que a escolhem voluntariamente devem escolhê-la em consideração daquele seu valor, e não em conseqüência de qualquer outro cálculo.

6. Este tom essencial da resposta de Cristo, que se refere diretamente à mesma continência “por amor do Reino dos Céus”, pode ser referido, de modo indireto, também ao precedente problema do matrimônioix. Tomando, portanto, em consideração o conjunto do enunciadox, segundo a intenção fundamental de Cristo, a resposta seria a seguinte: se alguém opta pelo matrimônio, deve optar por ele tal como foi instituído pelo Criador “desde o princípio”; deve procurar nele aqueles valores correspondentes ao plano de Deus; se, pelo contrário, alguém se decide seguir a continência por amor do Reino dos Céus, deve procurar nela os valores próprios de tal vocação. Por outras palavras: deve agir em conformidade com a vocação escolhida.

7. O “Reino dos Céus” é certamente a realização definitiva das aspirações de todos os homens, aos quais dirige Cristo a sua mensagem: é a plenitude do bem, que o coração humano deseja acima dos limites de tudo o que pode ser o seu quinhão na vida terrena; é a máxima plenitude do prêmio para o homem, da parte de Deus. No colóquio com os saduceusxi, que analisamos precedentemente, encontramos outros pormenores sobre aquele “reino”, ou seja, sobre o “outro mundo”. Encontram-se ainda mais em todo o Novo Testamento. Parece, todavia, que para esclarecer o que é o Reino dos Céus para aqueles que por causa dele escolhem a continência voluntária, tem particular significado a revelação da relação esponsal de Cristo com a Igreja: entre os outros textos, portanto, é decisivo o da Epístola aos Efésios 5, 25ss, sobre o qual será principalmente conveniente basearmo-nos, quando tomarmos em consideração o problema da sacramentalidade do matrimônio.

Aquele texto é igualmente válido quer para a teologia do matrimônio, quer para a teologia da continência “por amor do Reino dos Céus”, isto é, a teologia da virgindade ou do celibato. Parece que precisamente naquele contexto encontramos quase concretizado o que tinha dito Cristo aos seus discípulos, convidando à continência voluntária “por amor do Reino dos Céus”.

8. Neste análise, foi já salientado de modo suficiente que as palavras de Cristo —com toda a sua grande concisão— são fundamentais, cheias de conteúdo essencial e, além disso, caracterizadas por uma certa severidade. Cristo, não há dúvida que pronuncia o seu apelo à continência na perspectiva do “outro mundo”, mas neste apelo põe em relevo tudo aquilo em que se exprime o realismo temporal da decisão para tal continência, decisão ligada com a vontade de participar na obra redentora de Cristo.

Assim, portanto, à luz das respectivas palavras de Cristo referidas por Mateusxii, emergem, sobretudo, a profundidade e a seriedade da decisão de viver a continência “para o reino”, e encontra expressão o momento da renúncia que tal decisão exige.

Sem dúvida, mediante tudo isto, mediante a seriedade e a profundidade da decisão, mediante a severidade e a responsabilidade que ela comporta, transparece e reluz o amor: o amor como disponibilidade do dom exclusivo de si pelo “reino de Deus”. Todavia, nas palavras de Cristo tal amor parece estar velado por aquilo que, pelo contrário, é colocado por Cristo em primeiro plano. Cristo não esconde aos seus discípulos o fato de que a escolha da continência “por amor do Reino dos Céus” é —vista nas categorias da temporalidade— uma renúncia. Aquele modo de falar aos discípulos, que formula claramente a verdade do seu ensinamento e das exigências nele contidas, é significativo para todo o Evangelho; e é precisamente ele a dar-lhe, além disso, um sinal e uma força tão convincentes.

9. É próprio do coração humano aceitar as exigências, até difíceis, em nome do amor por um ideal e, sobretudo, em nome do amor para com a pessoa (o amor, de fato, é por essência orientado para a pessoa). E, portanto, naquele apelo para a continência “por amor do Reino dos Céus”, primeiro os mesmos discípulos e depois toda a Tradição viva da Igreja cedo descobrirão o amor que se refere a Cristo mesmo, como Esposo da Igreja, Esposo das almas, às quais Ele se deu a Si mesmo totalmente, no mistério da sua Páscoa e da Eucaristia.

Deste modo, a continência “por amor do Reino dos Céus”, a opção pela virgindade ou pelo celibato para toda a vida, tornou-se na experiência dos discípulos e dos seguidores de Cristo o ato de uma resposta particular do amor do Esposo Divino, e por conseguinte adquiriu o significado de um ato de amor esponsal: isto é, de um dom esponsal de si, a fim de retribuir de modo particular o amor esponsal do Redentor; um dom de si entendido como renúncia, mas feito sobretudo por amor.

iMt 19, 12.

ii 19, 11-12.

iii Cf. a parábola do banquete nupcial: Mt 22, 1-14.

iv Cf. Lc 9, 23.

v 19, 11-12.

vi1Cor.

vii 19, 11-12.

viii “Se é essa a situação… não é conveniente casar-se”: Mt 19, 10.

ix Cf. Mt 19, 3-9.

xMt 19, 3-11.

xiMt 22, 24-30; Mc 12, 18-27; Lc 20, 27-40.

xii 19, 11-12.