1. Continuemos a reflexão sobre a virgindade ou celibato para o Reino dos Céus: tema importante também para uma completa teologia do corpo.
No imediato contexto das palavras sobre a continência para o Reino dos Céus, Cristo faz um confronto muito significativo; o que nos confirma melhor ainda na convicção de que Ele queria radicar profundamente a vocação para tal continência na realidade da vida terrena, entrando assim na mentalidade dos seus ouvintes. Enumera, de fato, três categorias de eunucos.
Este termo diz respeito aos defeitos físicos que tornam impossível a procriação no matrimônio. Precisamente tais defeitos explicam as duas primeiras categorias, quando Jesus fala quer dos defeitos congênitos: “eunucos que nasceram assim do seio materno”i, quer dos defeitos adquiridos, causados por intervenção humana: “há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens”ii. Em ambos os casos, trata-se, portanto, de um estado de coação, por isso não voluntário. Se Cristo, no seu confronto, fala depois daqueles “que se fizeram eunucos por amor do Reino dos Céus”iii, como de uma terceira categoria, certamente faz esta distinção para acentuar ainda mais o caráter voluntário e sobrenatural dela. Voluntário, porque os pertencentes a esta categoria “fizeram-se eunucos”; sobrenatural, por outro lado, porque o fizeram “para o Reino dos Céus”.
2. A distinção é muito clara e muito enérgica. Apesar disso, forte e eloqüente é também o confronto. Cristo fala a homens, a quem a traição da Antiga Aliança não tinha transmitido o ideal do celibato ou da virgindade. O matrimônio era tão comum que só uma impotência física podia constituir para ele uma exceção. A resposta dada aos discípulos em Mateusiv é a um tempo dirigida, em certo sentido, para toda a tradição do Antigo Testamento. Confirme-o um só exemplo, tirado do Livro dos Juízes, exemplo a que nos referimos aqui não tanto por causa do desenvolvimento do fato, quanto por motivo das palavras significativas, que o acompanham: “Seja-me concedido… chorar a minha virgindade”v, diz a filha de Jefté ao pai, depois de ter sabido por ele que tinha sido destinada à imolação por um voto feito ao Senhor. (No texto bíblico encontramos a explicação de como se chegou a tanto). “Vai —lemos em seguida—; e deu-lhe dois meses de liberdade… Ela foi com as companheiras e chorou nos montes a sua virgindade. Passado este prazo, voltou para a casa do pai e Jefté cumpriu o voto que tinha feito. Ela não tinha conhecido varão”vi.
3. Na tradição do Antigo Testamento, quanto se deduz, não há lugar para o significado do corpo que, neste momento, Cristo, falando da continência para o Reino de Deus, quer ter em vista e revelar aos próprios discípulos. Entre as personagens a nós conhecidas, como guias espirituais do povo da Antiga Aliança, não há nenhuma que proclamasse tal continência com palavras ou comportamento1. O matrimônio, então, não era só um estado comum, mas, além disso, naquela tradição tinha adquirido um significado consagrado pela promessa feita a Abraão pelo Senhor: “A aliança que faço contigo é esta: e serás pai de inúmeros povos… Tornar-te-ei extremamente fecundo; farei que de ti nasçam povos e terás reis por descendentes. Estabeleço uma aliança contigo e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma aliança eterna, em virtude da qual Eu serei o teu Deus e da tua descendência”vii. Por isso, na tradição do Antigo Testamento, o matrimônio, como fonte de fecundidade e de procriação relativamente à descendência, era um estado religiosamente privilegiado: e privilegiado pela revelação mesma. Sobre o fundo desta tradição, segundo a qual o Messias devia ser “filho de Davi”viii, era difícil entender o ideal da continência. Tudo perorava em favor do matrimônio: não só as razões de natureza humana, mas também as do Reino de Deus2.
4. As palavras de Cristo determinam em tal âmbito uma viragem decisiva. Quando Ele fala aos Seus filhos, pela primeira vez, sobre a continência para o Reino dos Céus, dá-se claramente conta de que eles, como filhos da tradição da Antiga Lei devem associar o celibato e a virgindade à situação dos indivíduos, em particular de sexo masculino, que por causa dos defeitos de natureza física não podem desposar-se (“os eunucos”), e por isso refere-se diretamente a eles. Esta referência tem um fundo múltiplo: tanto histórico como psicológico, tanto ético como religioso. Com tal referência Jesus toca —em certo sentido— todos estes fundos, como se quisesse dizer: Sei que tudo o que agora vos direi despertará grande dificuldade na vossa consciência, no vosso modo de entender o significado do corpo; falar-vos-ei, de fato, da continência, e isto associar-se-á sem dúvida em vós ao estado de deficiência física, seja inata seja adquirida por causa humana. Eu, pela minha parte, quero dizer-vos que a continência pode também ser voluntária e escolhida pelo homem “para o Reino dos Céus”.
5. Mateus, no cap. 19, não anota qualquer imediata reação dos discípulos a estas palavras. Encontramo-la, mais tarde, só nos escritos dos Apóstolos, sobretudo em Pauloix. Isto confirma que tais palavras se tinham imprimido na consciência da primeira geração dos discípulos de Cristo, e depois frutificaram repetidamente e em modo múltiplo nas gerações dos seus confessores na Igreja (e talvez também fora dela). Portanto, do ponto de vista da teologia —isto é, da revelação do significado do corpo, totalmente novo a respeito da tradição do Antigo Testamento—, estas são palavras de mudança. A análise delas demonstra quanto são precisas e substanciais, apesar da concisão que têm. (Verificá-lo-emos ainda melhor quando fizermos a análise do texto paulino da Primeira Epístola aos Coríntios, cap. 7). Cristo fala da continência “para” o Reino dos Céus. Em tal modo, Ele quer sublinhar que este estado, escolhido conscientemente pelo homem na vida temporal, em que de ordinário os homens “se casam e se dão em casamento”, tem uma singular finalidade sobrenatural. A continência, mesmo se escolhida de modo consciente e também se decidida pessoalmente, mas sem aquela finalidade, não entra no conteúdo do sobredito enunciado de Cristo. Falando daqueles que escolheram conscientemente o celibato ou a virgindade para o Reino dos Céus (isto é, “se fizeram eunucos”), Cristo nota —pelo menos de modo indireto— que tal escolha, na vida terrena, anda unida à renúncia e também a um determinado esforço espiritual.
6. A mesma finalidade sobrenatural —”para o Reino dos Céus— “admite uma série de interpretações mais pormenorizadas, que não enumera Cristo em tal passagem. Pode-se, porém, afirmar que, através da fórmula lapidar de que Ele se serve, indica indiretamente tudo aquilo que foi dito sobre aquele tema na Revelação, na Bíblia e na Tradição; tudo isto que se tornou riqueza espiritual da experiência da Igreja, em que o celibato e a virgindade para o Reino dos Céus frutificaram de modo múltiplo nas várias gerações dos discípulos seguidores do Senhor.
1 É verdade que Jeremias devia, por explícita ordem do Senhor, observar o celibato (cf. Jr 16, 1-2); mas isto foi um “sinal profético”, que simbolizava o futuro abandono e a destruição do país e do povo.
2 É verdade, como nos consta das fontes extrabíblicas, que no período intertestamentário o celibato era mantido no âmbito do judaísmo por alguns membros da seita dos Essênios (cf. José Flávio, Bell. Jud. II, 8, 2: 120-121; Al. Filão, Hypothet, 11, 14); mas isto acontecia à margem do judaísmo oficial e provavelmente não persistiu além do princípio do século I.
Na comunidade de Qumram o celibato não obrigava a todos, mas alguns dos membros mantinham-no até à morte, transferindo para o terreno da pacífica convivência a prescrição do Deuteronômio (23, 10-14) na pureza ritual que obrigava durante a guerra santa. Segundo as crenças dos Qumranianos, tal guerra durava sempre “entre os filhos da luz e os filhos das trevas”; o celibato foi, portanto, para eles a expressão de estarem prontos para a batalha (cf. 1Qm 7, 5-7).
iMt 19, 12.
iiMt 19, 12.
iiiMt 19, 12.
iv 19, 10-12.
vJz 11, 37.
viJz 11, 38-39.
viiGn 17, 4.6-7.
viiiMt 20, 30.
ix Cf. 1Cor 7, 25-40; Ap 14, 4.