1. Começamos hoje a refletir sobre a virgindade ou celibato “para o reino dos céus”.
A questão da chamada a uma exclusiva doação de si a Deus na virgindade e no celibato mergulha profundamente as raízes no solo evangélico da teologia do corpo. Para acentuar as dimensões que lhe são próprias, é necessário ter presentes as palavras com que se referiu Cristo ao “princípio”, e também aquelas com que Ele apelou para a ressurreição dos corpos. A verificação “quando ressuscitarem dentro os mortos…, não tomarão mulher nem marido”i indica que há uma condição de vida isenta de matrimônio, em que o homem, varão e mulher, encontra, ao mesmo tempo, a plenitude da doação pessoal e da intersubjetiva comunhão das pessoas, graças à glorificação de todo o seu ser psicossomático na união perene com Deus. Quando a chamada à continência “para o reino dos céus” encontra eco na alma humana, nas condições da temporalidade, isto é, nas condições em que as pessoas ordinariamente “tomam mulher e tomam marido”ii, não é difícil captar nisso uma particular sensibilidade do espírito humano, que já nas condições da temporalidade parece antecipar aquilo de que o homem se tornará participante na ressurreição futura.
2. Todavia, deste problema, desta particular vocação, não falou Cristo no contexto imediato da Sua conversa com os saduceusiii, depois de se referir à ressurreição dos corpos. Mas tinha falado dele (já antes) no contexto da conversa com os fariseus sobre o matrimônio e sobre as bases da sua indissolubilidade, quase como prolongamento daquela conversaiv. As Suas palavras de conclusão dizem respeito à chamada epístola de repúdio, consentida por Moisés nalguns casos. Cristo diz: “Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. Ora, Eu digo-vos: Se alguém repudiar sua mulher —exceto em caso de adultério— e casar com outra, comete adultério”v. Então, os discípulos que —segundo se pode deduzir do contexto— estavam atentos a ouvir aquela conversa e em particular as últimas palavras pronunciadas por Jesus, dizem-lhe assim: “Se essa é a situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se”vi. Cristo dá-lhes a seguinte resposta: “Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado. Há eunucos que nasceram assim do seio materno, há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens, e há aqueles que se fizeram eunucos a si mesmos por amor do reino dos céus. Quem puder compreender, compreenda”vii.
3. Em relação com esta conversa, referida por Mateus, pode-se fazer a pergunta: Que pensavam os discípulos quando, depois de ouvirem a resposta dada por Jesus aos fariseus sobre o matrimônio e a sua indissolubilidade, exprimiram a própria observação: “Se essa é a situação do homem perante a mulher, não é conveniente casar-se”? Em qualquer caso, Cristo julga a circunstância oportuna para lhes falar da continência voluntária para o Reino dos Céus. Dizendo isto, não toma diretamente posição a respeito do enunciado dos discípulos, nem fica na linha do arrazoado delesviii. Por isso, não responde: “é conveniente casar-se” ou “não é conveniente casar-se”. A questão da continência para o Reino dos Céus não é contraposta ao matrimônio, nem se baseia num juízo negativo a respeito da sua importância. Cristo, aliás, falando precedentemente da indissolubilidade do matrimônio, tinha-se referido ao “princípio”, isto é, ao mistério da criação, indicando assim a primeira e fundamental fonte do seu valor. Por conseguinte, para responder à pergunta dos discípulos, ou antes, para esclarecer o problema por eles referido, Cristo recorre a outro princípio. Não pelo fato de “não ser conveniente casar-se”, ou seja, pela razão de um suposto valor negativo do matrimônio, é observada a continência por aqueles que na vida fazem tal opção “para o Reino dos Céus”, mas em vista do particular valor que está ligado com tal escolha e é necessário pessoalmente descobrir e adotar como própria vocação. E por isso diz Cristo: “Quem puder compreender, compreenda”ix. Pelo contrário, imediatamente antes diz: “Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado”x.
4. Como se vê, Cristo, na Sua resposta ao problema que Lhe foi apresentado pelos discípulos, indica claramente uma regra para compreender as Suas palavras. Na doutrina da Igreja vigora a convicção de estas palavras não exprimirem um mandamento que obriga a todos, mas um conselho que diz respeito só a algumas pessoas1: aquelas precisamente que são capazes “de compreendê-lo”. E são capazes “de compreendê-lo” aqueles “a quem isso é dado”. As palavras citadas indicam com clareza o momento da opção pessoal e simultaneamente o momento da graça particular, isto é, do dom que o homem recebe para fazer tal opção. Pode-se dizer que a opção da continência pelo Reino dos Céus é orientação carismática para aquele estado escatológico, em que não se tomará “mulher nem marido”: todavia, entre aquele estado do homem na ressurreição dos corpos e a voluntária opção da continência para o Reino dos Céus na vida terrena e no estado histórico do homem caído e remido, existe uma diferença essencial. Aquele “não desposar-se” escatológico será um “estado”, isto é, o modo próprio e fundamental da existência dos seres humanos, varões e mulheres, nos seus corpos glorificados. A continência para o Reino dos Céus, como fruto de uma opção, é uma exceção a respeito do outro estado, isto é, daquele de que o homem “desde o princípio” se tornou e se mantém participante no curso de toda a existência terrena.
5. É muito significativo não ligar Cristo diretamente as Suas palavras sobre a continência para o Reino dos Céus com o anúncio do “outro mundo”, em que “não tomarão mulher nem marido”xi. As Suas palavras, pelo contrário, encontram-se —como já dissemos— no prolongamento da conversa com os fariseus, em que Jesus apelou “para o princípio”, indicando a instituição do matrimônio por parte do Criador e recordando o caráter indissolúvel que, no desígnio de Deus, corresponde à unidade conjugal do homem e da mulher.
O conselho e, portanto, a escolha carismática da continência para o Reino dos Céus ligam-se, nas palavras de Cristo, com o máximo reconhecimento da ordem “histórica” da existência humana, reconhecida à alma e ao corpo. Com base no imediato contexto das palavras sobre a continência para o Reino dos Céus na vida terrena do homem, é necessário ver na vocação para tal continência um tipo de exceção ao que é de preferência a regra comum desta vida. Cristo põe em relevo sobretudo isto. Que depois tal exceção encerre em si a antecipação da vida escatológica privada de matrimônio e própria do “outro mundo”, (isto é, do período final do “Reino dos Céus”), Cristo não fala disso aqui diretamente. Trata-se, na verdade, não da continência no Reino dos Céus, mas da continência “para o Reino dos Céus”. A idéia da virgindade ou do celibato, como antecipação e sinal escatológicoxii, deriva da associação das palavras aqui pronunciadas com as que Jesus proferirá noutra circunstância, ou seja, na conversa com os saduceus, quando proclamar a futura ressurreição dos corpos.
Retomaremos este tema no decurso das próximas reflexões das quartas-feiras.
1 “A santidade da Igreja é também especialmente favorecida pelos múltiplos conselhos que o Senhor propõe no Evangelho aos Seus discípulos. Entre eles sobressai o precioso dom da graça divina, dado pelo Pai a alguns (cf. Mt 19, 11; 1Cor 7, 7), para se consagrarem só a Deus, na virgindade ou no celibato” (Lumen gentium, 42).
iMc 12, 25.
iiLc 20, 34.
iii Cf. Mt 22, 23-30; Mc 12, 18-25; Lc 20, 27-36.
iv Cf. Mt 19, 3-9.
vMt 19, 8-9.
viMt 19, 10.
viiMt 19, 11-12.
viii Sobre os problemas mais pormenorizados da exegese deste trecho, ver por exemplo L. Sabourin, Il vangelo di Matteo. Teologia e Esegesi, vol. II, Roma 1977 (Ed. Paoline), pp. 834-836.; The positive Values of Consecrated Celibacy, em “The Way”, Supplement 10, Summer 1970, p. 51; J. Blinzier, Eisin eunuchoi. Zur Auslegung von Mt 19, 12, “Zeitschrift für die Neutestamentliche Wissenschaft” 48 (1957) 268ss.
ixMt 19, 12.
xMt 19, 11.
xiMc 12, 25.
xii Cf. por exemplo, Lumem gentium, 44; Perfectae caritatis, 12.