1. “Quando ressuscitarem dentre os mortos, nem casarão nem se darão em casamento”i. Cristo pronuncia estas palavras, que têm significado-chave para a teologia do corpo, depois de afirmar, no colóquio com os saduceus, que a ressurreição é conforme ao poder do Deus vivo. Todos os três Evangelhos sinóticos trazem o mesmo enunciado, mas a versão de Lucas diferencia-se nalguns particulares da de Mateus e de Marcos. Essencial é para todos a verificação de que, na futura ressurreição, os homens, depois de readquirirem os corpos na plenitude da perfeição própria da imagem e semelhança de Deus —depois de os readquirirem na sua masculinidade e feminilidade— “não tomarão mulher nem marido”. Lucas, no capítulo 20, 34-35, exprime a mesma idéia com as palavras seguintes: “Os filhos deste mundo casam e são dados em casamento; mas aqueles que forem julgados dignos de participar do outro mundo e da ressurreição dos mortos, nem se casam, nem são dados em casamento”.
2. Como resulta destas palavras, o matrimônio, aquela união em que, como diz o Livro do Gênesis, “o homem… se unirá a sua mulher e os dois serão uma só carne”ii —união própria do homem desde o “princípio”— pertence exclusivamente “a este mundo”. O matrimônio e a procriação não constituem, pelo contrário, o futuro escatológico do homem. Na ressurreição perdem, por assim dizer, a sua razão de ser. Aquele “outro mundo”, de que fala Lucasiii, significa o remate definitivo do gênero humano, o encerramento quantitativo daquele círculo de seres, que foram criados à imagem e semelhança de Deus, para que, multiplicando-se através da conjugal “unidade do corpo” de homens e mulheres, sujeitassem a si a terra. Aquele “outro mundo” não é o mundo da terra, mas o mundo de Deus que, conforme sabemos pela primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, o encherá inteiramente, tornando-se “tudo em todos”iv.
3. Contemporaneamente, aquele “outro mundo”, que segundo a revelação é “o reino de Deus”, é também a definitiva e eterna “pátria” do homemv, é a “casa do Pai”vi. Aquele “outro mundo”, como nova pátria do homem, surge definitivamente do mundo atual, que é temporal —submetido à morte, ou seja, à destruição do corpovii— através da ressurreição. A ressurreição, segundo as palavras de Cristo referidas pelos sinóticos, significa não só a recuperação da corporeidade e o restabelecimento da vida humana na sua integridade, mediante a união do corpo com a alma, mas também um estado completamente novo da vida humana mesma. Encontramos a confirmação deste novo estado do corpo na ressurreição de Cristoviii. As palavras transmitidas pelos sinóticosix de novo soarão nessa altura (isto é, depois da ressurreição de Cristo) àqueles que as tinham ouvido, diria quase com nova força probante, e ao mesmo tempo adquirirão o caráter de uma promessa convincente. Todavia, por ora detemo-nos nestas palavras na sua fase “pré-pascal”, baseando-nos só na situação em que foram pronunciadas. Não há qualquer dúvida de que já na resposta dada aos saduceus, Cristo desvela a nova condição do corpo humano na ressurreição, e fá-lo propondo exatamente uma referência e um confronto com a condição de que o homem tinha sido participante desde o “princípio”.
4. As palavras “Nem casarão nem se darão em casamento” parecem ao mesmo tempo afirmar que os corpos humanos, recuperados e também renovados na ressurreição, manterão a sua peculiaridade masculina ou feminina e que o sentido de ser, no corpo, varão e mulher será no “outro mundo” constituído e entendido de modo diverso daquilo que foi “desde o princípio” e depois em toda a dimensão da existência terrena. As palavras do Gênesis, “o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”x, constituíram, desde o princípio, aquela condição relativamente à masculinidade ou feminilidade, estendendo-se também ao corpo, que justamente é necessário definir “conjugal” e ao mesmo tempo “procriativa” e “generativa”; ela, de fato, está ligada com a bênção da fecundidade, pronunciada por Deus (Elohim) na criação do homem “varão e mulher”xi. As palavras pronunciadas por Cristo sobre a ressurreição consentem-nos deduzir que a dimensão da masculinidade e feminilidade —isto é, o ser, no corpo, de varão e de mulher— será de novo constituída juntamente com a ressurreição do corpo no “outro mundo”.
5. É possível dizer alguma coisa ainda mais pormenorizada sobre este tema? Sem dúvida, as palavras de Cristo referidas pelos sinóticos (especialmente na versão de Lc 20, 27-40) autorizam-nos a isto. Lemos nelas, com efeito, que “aqueles que forem julgados dignos de participar do outro mundo e da ressurreição dos mortos… já não podem morrer; são semelhantes aos anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus” (Mateus e Marcos referem só que “serão como anjos nos céus”). Esse enunciado consente sobretudo deduzir uma espiritualização do homem segundo uma dimensão diversa daquela da vida terrena (e até diversa da do mesmo “princípio”). É óbvio que não se trata aqui de transformação da natureza do homem na angélica, isto é, puramente espiritual. O contexto indica claramente que o homem conservará no “outro mundo” a própria natureza humana psicossomática. Se fosse diversamente, não teria sentido falar de ressurreição.
Ressurreição significa restituição à verdadeira vida da corporeidade humana, que foi sujeita à morte na sua fase temporal. Na expressão de Lucasxii por nós citada há instantesxiii trata-se certamente da natureza humana, isto é, psicossomática. A comparação com os seres celestiais, usada no contexto, não constitui novidade alguma na Bíblia. Além do mais, já o Salmo, exaltando o homem como obra do Criador, diz: “Contudo, criaste-lo pouco inferior aos anjos”xiv. É necessário supor que na ressurreição esta semelhança se tornará maior: não através de uma desencarnação do homem, mas mediante outro gênero (poder-se-ia mesmo dizer: outro grau) de espiritualização da sua natureza somática —isto é, mediante outro “sistema de forças” no interior do homem. A ressurreição significa nova submissão do corpo ao espírito.
6. Antes de nos aplicarmos a desenvolver esse argumento, convém recordar que a verdade sobre a ressurreição teve significado-chave para a formação de toda a antropologia teológica, que poderia ser considerada simplesmente como “antropologia da ressurreição“. Refletir sobre a ressurreição fez que Tomás de Aquino pusesse de parte na sua antropologia metafísica (e ao mesmo tempo teológica) a concepção filosófica platônica sobre a relação entre a alma e o corpo e se aproximasse da concepção de Aristóteles1. A ressurreição, de fato, assegura, pelo menos indiretamente, que o corpo, no conjunto do composto humano, não está só temporalmente unido à alma (como sua “prisão” terrena, como julgava Platão)2, mas que juntamente com a alma constitui a unidade e integridade do ser humano. Assim, de modo preciso ensinava Aristótelesxv, diversamente de Platão. Se São Tomás, na sua antropologia, aceitou a concepção de Aristóteles, fê-lo atendendo à verdade sobre a ressurreição. A verdade sobre a ressurreição afirma, com efeito, com clareza que a perfeição escatológica e a felicidade do homem não podem entender-se com um estado da alma sozinha, separada (segundo Platão: liberta) do corpo, mas é preciso entendê-la como o estado do homem definitiva e perfeitamente “integrado” através de uma união tal da alma com o corpo, que qualifica e assegura definitivamente a referida integridade perfeita.
Neste ponto, interrompemos a nossa reflexão a respeito das palavras pronunciadas por Cristo sobre a ressurreição. A grande riqueza dos conteúdos encerrados nestas palavras leva-nos a retomá-las nas futuras considerações.
1 Cf. por exemplo: “Habet autem anima alium modum essendi cum unitur corpori, et cum fuerit a corpore separata, manente tamen eadem animae natura; non ita quod uniri corpori sit ei accidentale, sed per rationem suae naturae corpori unitur…” (S. Tomás, Sum. Theol. 1a, q. 89, a. 1).
“Si autem hoc non est ex natura animae, sed per accidens hoc convenit ei ex eo quod corpori alligatur, sicut Platonici posuerunt… remoto impedimento corporis, rediret anima ad suam naturam… Sed, secundum hoc, non esset anima corpori unita propter melius animae…; sed hoc esset solum propter melius corporis: quod est irrationabile, cum materia sit propter formam, et non e converso…” (Ibidem).
“Secundum se convenit animae corpori uniri… Anima humanamanet in suo esse cum fuerit a corpore separata, habent aptitudinem et inclinationem naturalem ad corporis unionem” (Ibidem, 1a, q. 76, a. 1 ad 6).
2 Tò mèn sômá estin hemîn sêma (Platão, Gorgia 493 A; cf. também Fédon 66 B; Cratilo 400 C).
iMc 12, 25.
ii 2, 25.
iii 20, 35.
iv1Cor 15, 28.
v Cf. Fl 3, 20.
viJo 14, 2.
vii Cf. Gn 3, 19: “em pó te hás-de tornar”
viii Cf. Rm 6, 5-11.
ixMt 22, 30; Mc 12, 25; Lc 20, 34-35.
x 2, 24.
xiGn 1, 27.
xii 20, 36.
xiii E na de Mt 22, 30 e de Mc 12, 25.
xivSl 8, 6.
xv A. De anima, II, 412a, 19-22; Cf. também Metaph. 1029 b 11-1030 b 14.