1. “Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus”i, assim disse Cristo aos saduceus, que —recusando a fé na futura ressurreição dos corpos— Lhe tinham exposto o caso seguinte: “Ora, entre nós, havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a seu irmão” (segundo a lei mosaica do “levirato”); “sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim até ao sétimo. Depois de todos eles, morreu a mulher. Na ressurreição, de qual dos sete será a mulher?”ii.
Cristo replica aos saduceus afirmando, no princípio e no fim da sua resposta, que eles estão em grande erro, não conhecendo nem as Escrituras nem o poder de Deusiii. Sendo o colóquio com os saduceus referido pelos Evangelhos sinóticos todos três, confrontemos brevemente os textos que nos interessam.
2. A versão de Mateusiv, embora não faça referência à sarça, concorda quase inteiramente com a de Marcosv. Ambas as versões contêm dois elementos essenciais: 1) a enunciação sobre a futura ressurreição dos corpos; 2) a enunciação sobre o estado dos corpos dos homens ressurgidos1. Estes dois elementos encontram-se também em Lucasvi2. O primeiro elemento, relativo à futura ressurreição dos corpos, anda junto, especialmente em Mateus e em Marcos, com as palavras dirigidas aos saduceus, segundo as quais eles não conhecem “nem as Escrituras nem o poder de Deus”. Tal afirmação merece ser considerada em particular, pois exatamente nela especifica Cristo as bases mesmas da fé na ressurreição, a que fizera referência ao responder à questão apresentada pelos saduceus com o exemplo concreto da lei mosaica do levirato.
3. Sem dúvida, os saduceus tratam o assunto da ressurreição como um tipo de teoria ou de hipótese, susceptível de ser ultrapassado3. Jesus demonstra-lhes primeiro um erro de método: não conhecem as Escrituras; e depois um erro de mérito: não aceitam o que é revelado pelas Escrituras —não conhecem o poder de Deus—, não crêem n’Aquele que se revelou a Moisés na sarça ardente. É resposta muito significativa e muito precisa. Cristo encontra-se aqui com homens, que se julgam experimentados e competentes intérpretes das Escrituras. A estes homens —isto é, aos saduceus— Jesus responde que só o conhecimento literal da Escritura não é suficiente. A Escritura, de fato, é sobretudo meio para conhecer o poder do Deus vivo, que nela se revela, assim como se revelou a Moisés na sarça. Nesta revelação Ele chamou a Si mesmo “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”4 —daqueles, portanto, que tinham sido os progenitores de Moisés na fé, que brota da revelação do Deus vivo. Todos os quais estão já mortos há muito tempo; contudo, Cristo completa a referência a eles com a afirmação de que Deus “não é Deus dos mortos, mas dos vivos”. Esta afirmação-chave, em que interpreta Cristo as palavras dirigidas a Moisés pela sarça ardente, pode ser compreendida só admitindo a realidade de uma vida, a que a morte não põe fim. Os pais de Moisés na fé, Abraão, Isaac e Jacó são para Deus pessoas vivasvii, embora, segundo os critérios humanos, devam ser contados entre os mortos. Reler corretamente a Escritura, e em particular as sobreditas palavras de Deus, quer dizer conhecer e acolher com a fé o poder do Doador da vida, que não está vinculado pela lei da morte, dominadora na história terrena do homem.
4. Parece que se deve interpretar deste modo a resposta de Cristo sobre a possibilidade da ressurreição5, dada aos saduceus, segundo a versão de todos os três sinóticos. Virá o momento em que a resposta, nesta matéria, será dada por Cristo com a própria ressurreição; por ora, todavia, Ele apela para o testemunho do Antigo Testamento, demonstrando como descobrir nele a verdade sobre a imortalidade e sobre a ressurreição. É necessário fazê-lo não nos detendo unicamente no som das palavras, mas subindo também ao poder de Deus, que por aquelas palavras é revelado. Citar Abraão, Isaac e Jacó naquela teofania concedida a Moisés, da qual nos fala o livro do Êxodoviii, constitui testemunho que o Deus vivo dá àqueles que vivem “para Ele”: àqueles que, graças ao seu poder, têm a vida, ainda que, cingindo-nos às dimensões da história, seria necessário há muito tempo contá-los entre os mortos.
5. O significado pleno deste testemunho, a que Jesus se refere no seu colóquio com os saduceus, poder-se-ia (sempre unicamente à luz do Antigo Testamento) apreender do modo seguinte: Aquele que é —Aquele que vive e que é a Vida— constitui a inexaurível fonte da existência e da vida, assim como se revelou no “princípio” no Gênesisix. Embora, por causa do pecado, a morte corporal se tenha tornado a sorte do homemx6, e embora o acesso à arvore da Vida (grande símbolo do Livro do Gênesis) lhe tenha sido proibidoxi, todavia o Deus vivo, contraindo a sua Aliança com os homens (Abraão — Patriarcas, Moisés, Israel), renova continuamente, nesta aliança, a realidade mesma da Vida, descobre-lhe de novo a perspectiva e em certo sentido abre novamente o acesso à árvore da Vida. Juntamente com a Aliança, esta vida, cuja fonte é do próprio Deus, é participada àqueles mesmos homens que, em conseqüência da ruptura da primeira Aliança, tinham perdido o acesso à árvore da Vida, e nas dimensões da sua história terrena tinham sido sujeitos à morte.
6. Cristo é a última palavra de Deus sobre este assunto; de fato, a Aliança, que com Ele e por Ele é estabelecida entre Deus e a humanidade, abre uma infinita perspectiva de Vida: e o acesso à árvore da Vida —segundo o plano original do Deus da Aliança— é revelado a cada homem na sua definitiva plenitude. Será este o significado da morte e da ressurreição de Cristo, será este o testemunho do mistério pascal. Todavia, o colóquio com os saduceus decorre na fase pré-pascal da missão messiânica de Cristo. A narração do colóquio segundo Mateusxii, Marcosxiii e Lucasxiv manifesta que Jesus Cristo —o qual várias vezes, em particular nos colóquios com os discípulos, tinha falado da futura ressurreição do Filho do homemxv— no colóquio com os saduceus, pelo contrário, não usa este argumento. As razões são óbvias e claras. O colóquio é com os saduceus, “os quais afirmam que não há ressurreição” (como insiste o evangelista), isto é, põem em dúvida a possibilidade mesma dela e entretanto consideram-se experimentados na Escritura do Antigo Testamento e seus intérpretes qualificados. É por isso que Jesus se refere ao Antigo Testamento e, com base nele, demonstra-lhes que “não conhecem o poder de Deus”7.
7. A respeito da possibilidade da ressurreição, Cristo recorre precisamente àquele poder, que a par e passo acompanha o testemunho do Deus vivo, que é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó —e o Deus de Moisés. O Deus, que os saduceus “privam” deste poder, já não é o Deus verdadeiro dos seus Pais, mas o Deus das suas hipóteses e interpretações. Cristo, pelo contrário, veio dar testemunho do Deus da Vida em toda a verdade do Seu poder, que se aplica na vida do homem.
1 Embora o Novo Testamento não conheça a expressão “a ressurreição dos corpos” (que aparecerá a primeira vez em São Clemente: 2Clem 9, 1, e em Justino: Diál. 80, 5) e use a expressão “ressurreição dos mortos”, entendendo com ela o homem na sua integridade, é todavia possível encontrar em muitos textos do Novo Testamento a fé na imortalidade da alma e a existência também fora do corpo (cf. por ex.: Lc 23, 43; Fl 1, 23-24; 2Cor 5, 6-8).
2 O texto de Lucas contém alguns elementos novos a respeito dos quais se trava a discussão dos exegetas.
3 Como é sabido, no judaísmo daquele período não foi claramente formulada uma doutrina acerca da ressurreição; existiam só as diversas teorias lançadas pelas várias escolas.
Os Fariseus, que se davam à especulação teológica, desenvolveram energicamente a doutrina sobre a ressurreição, vendo alusões a ela em todos os livros do Antigo Testamento. Entendiam, todavia, a futura ressurreição de modo terrestre e primitivo, prenunciando por exemplo enorme crescimento da colheita e da fertilidade na vida depois da ressurreição.
Os Saduceus, pelo contrário, polemizavam com tal conceito, partindo da premissa de que o Pentateuco não fala da escatologia. É necessário também ter presente que, no século I, o cânone dos livros do Antigo Testamento não tinha sido ainda estabelecido.
O caso apresentado pelos Saduceus ataca diretamente a concepção farisaica da ressurreição. De fato, os Saduceus julgavam que a seguia também Cristo.
A resposta de Cristo corrige igualmente quer as concepções dos Fariseus, quer as dos Saduceus.
4 Esta expressão não significa “Deus que era honrado por Abraão, Isaac e Jacó”, mas “Deus que tomava cuidado dos patriarcas e os libertava”.
Esta fórmula volta no livro do Êxodo: 3, 6; 3, 15.16; 4, 5, sempre no contexto da promessa de libertação de Israel: o nome do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó é penhor e garantia desta libertação.
“Deus de X é sinônimo de socorro, de sustentáculo e de abrigo para Israel”. Encontra-se sentido semelhante no Gênesis 49, 24; “Deus de Jacó —Pastor e Pedra de Israel, Deus de teus Pais que te ajudará” (cf. Gn 49, 24-25; cf. também: Gn 24, 27; 26, 24; 28, 13; 32, 10; 46, 3).
Cf. F. Dreyfus, O.P., L’argument scripturaire de Jésus en faveur de la réssurrection des morts (MC XII, 26-27), Revue Biblique 66 (1959) 218.
A fórmula “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, em que são citados todos os três nomes dos Patriarcas, indicava na exegese judaica, contemporânea de Jesus, a relação de Deus com o Povo da Aliança como comunidade.
Cf. E. Ellis, Jesus, The Sadducees and Qumram, New Testament Studies 10 (1963-64) 275.
5 No nosso modo contemporâneo para tornar compreensível este texto evangélico, o raciocínio de Jesus diz respeito só à imortalidade; se, de fato, os patriarcas vivem —depois de terem morrido— já agora, antes da ressurreição escatológica do corpo, então a verificação de Jesus diz respeito à imortalidade da alma e não fala da ressurreição do corpo.
Mas o raciocínio de Jesus foi dirigido aos Saduceus que não conheciam o dualismo do corpo e da alma, aceitando apenas a bíblica unidade psicofísica do homem que é “o corpo e a respiração de vida”. Por isso, segundo eles, a alma morre juntamente com o corpo. A afirmação de Jesus, segundo a qual os patriarcas vivem, podia significar para os Saduceus unicamente a ressurreição com o corpo.
6 Não nos detemos aqui sobre a concepção da morte no sentido puramente veterotestamentário, mas tomamos em consideração a antropologia teológica no seu conjunto.
7 Este é o argumento determinante que prova a autenticidade da discussão com os Saduceus.
Se a perícope constituísse “acrescento pós-pascal da comunidade cristã” (como julgava, por exemplo. R. Bultmann), a fé na ressurreição dos corpos apoiar-se-ia no fato da ressurreição de Cristo, que se impunha como força irresistível, como o faz compreender, por exemplo, São Paulo (cf. 1Cor 15, 12).
Cf. J. Jeremias, Neutestamentliche Theologie, I Teil, Gutersloh 1971 (Mohn); cf., além disso, I. H. Marshall, The Gospel of Luke, Exeter 1978, The Paternoster Press, p. 738.
A referência ao Pentateuco —havendo no Antigo Testamento textos que tratavam diretamente da ressurreição (como por ex. Is 26, 19 ou Dan 12, 2) testemunha ter decorrido a conversa realmente com os Saduceus, que julgavam o Pentateuco única autoridade decisiva.
A estrutra da controvérsia demonstra que esta era uma discussão rabínica, segundo os clássicos modelos em uso nas academias de então.
Cf. J. Le Moyne, OSB, Les Sadducéens, Paris 1972 (Gabalda), p. 124s.; E. Lohmeyer, Das Evangelium des Markus, Göttingen 1959, p. 257; D. Daube, New Testament and Rabbinic Judaism, London 1956, pp. 158-163; J. Rademakers, SJ, La bonne nouvelle de Jésus selon St. Marc, Bruxelles 1975, Institut d’Etudes Théologiques, p. 313.
iMt 22, 29.
iiMt 22, 25-28.
iii Cf. Mc 12, 24; Mt 22, 29.
iv 22, 24-30.
v 12, 18-25.
vi 20, 27-36.
vii Cf. Lc 20, 38: “pois para Ele, todos estão vivos”
viii 3, 2-6.
ix Cf. Gn 1-3.
x Cf. Gn 3, 19.
xi Cf. Gn 3, 22.
xii 22, 24-30.
xiii 12, 18-27.
xiv 20, 27-36.
xv Cf. por exemplo, Mt 17, 9.23; 20, 19 e paral.