1. Reflitamos agora —em relação com as palavras de Cristo pronunciadas no Sermão da Montanha— sobre o problema do ethos do corpo humano nas obras da cultura artística. Este problema tem raízes muito profundas. Convém aqui recordar a série de análises operadas em relação com o apelo de Cristo para o “princípio”, e sucessivamente para o apelo por Ele feito ao “coração” humano, no Sermão da Montanha. O corpo humano —o nu corpo humano em toda a verdade da sua masculinidade e feminilidade— tem um significado de dom da pessoa à pessoa. O ethos do corpo, isto é, a regularidade ética da sua nudez, está por motivo da dignidade do sujeito pessoal, intimamente ligado àquele sistema de referência, entendido como sistema esponsal. Neste, o dar de uma parte encontra-se com a apropriada e adequada resposta da outra ao dom. Esta resposta decide da reciprocidade do dom. A objetivação artística do corpo humano na sua nudez masculina e feminina, com o fim de fazer dele, primeiro, o modelo e, depois, tema da obra de arte, é sempre certa transferência para fora desta configuração original e para ele específica da doação interpessoal. Isto constitui, em certo sentido, um desenraizar do corpo humano para fora desta configuração e um transferi-lo para a medida da objetivação artística; dimensão específica da obra de arte ou da reprodução típica das técnicas cinematográficas e fotográficas do nosso tempo.
Em cada uma destas dimensões —e em cada uma de modo diverso— o corpo humano perde aquele significado profundamente subjetivo do dom, e torna-se objeto destinado a um múltiplo conhecimento, mediante o qual os que olham para ele, assimilam ou mesmo, em certo sentido, se assenhoreiam do que evidentemente existe —mais, deve existir essencialmente a nível de dom, feito de pessoa a pessoa— não já na imagem mas no homem vivo. Para dizer a verdade, aquele “assenhorear-se” realiza-se já a outro nível —isto é, ao nível do objeto da transfiguração ou reprodução artística. Todavia, é impossível não reparar em que, do ponto de vista do ethos do corpo, profundamente entendido, surge aqui um problema. Problema muito delicado, que tem os seus níveis de intensidade conforme os vários motivos e circunstâncias, quer por parte da atividade artística, quer por parte do conhecimento da obra de arte ou da sua reprodução. De que se ponha este problema não resulta, de fato, que o corpo humano, na sua nudez, não possa tornar-se tema da obra de arte, mas só que este problema não é puramente estético nem moralmente indiferente.
2. Nas nossas precedentes análises (sobretudo em relação com apelar Cristo para o “princípio”), dedicamos muito espaço ao significado da vergonha, esforçando-nos por compreender a diferença entre a situação —e o estado— da inocência original, em que “estavam ambos nus… mas não sentiam vergonha”i e, sucessivamente, entre a situação —e o estado— da pecaminosidade em que entre o homem e a mulher nasceu, juntamente com a vergonha, a específica necessidade da intimidade para com o próprio corpo. No coração do homem sujeito à concupiscência, serve esta necessidade, também indiretamente, para assegurar o dom e a possibilidade do dar-se recíproco. Tal necessidade forma também o modo de operar do homem como “objeto da cultura”, no mais amplo significado do termo. Se a cultura mostra tendência explícita para cobrir a nudez do corpo humano, certamente fá-lo não só por motivos climáticos, mas também em relação com o processo de crescimento da sensibilidade pessoal do homem. A anônima nudez do homem-objeto contrasta com o progresso da cultura autenticamente humana dos costumes. Provavelmente é possível confirmar isto, mesmo na vida das populações chamadas primitivas. O processo de aperfeiçoar a pessoal sensibilidade humana é certamente fator e fruto da cultura.
Por trás da necessidade da vergonha, isto é, da intimidade do próprio corpo (sobre o qual informam com tanta precisão as fontes bíblicas em Gn 3), esconde-se uma norma mais profunda: a do dom, orientada para as profundidades mesmas do sujeito pessoal e para a outra pessoa —especialmente na relação homem-mulher segundo a perene regularidade do dar-se recíproco. De tal modo, nos processos da cultura humana, entendida em sentido lato, verificamos —mesmo no estado da pecaminosidade hereditária do homem— uma continuidade bastante explícita do significado esponsal do corpo na sua masculinidade e feminilidade. Aquela vergonha original, conhecida já pelos primeiros capítulos da Bíblia, é elemento permanente da cultura e dos costumes. Pertence à gênese do ethos do corpo humano.
3. O homem de sensibilidade desenvolvida ultrapassa, com dificuldade e resistência interior, o limite daquela vergonha. O que se evidencia mesmo nas situações, que por outro lado são justificadas pela necessidade de despir o corpo, como, por exemplo, no caso dos exames ou das intervenções médicas. Em particular, é necessário também recordar outras circunstâncias, como por exemplo as dos campos de concentração ou dos locais de extermínio, onde a violação do pudor corpóreo é método conscientemente usado para destruir a sensibilidade pessoal e o sentimento da dignidade humana. Em toda a parte —embora de maneiras diversas— reconfirma-se a mesma linha de regularidade. Seguindo a sensibilidade pessoal, o homem não quer tornar-se objeto para os outros por meio da própria nudez anônima, nem quer que o outro se torne para ele objeto de maneira semelhante. Evidentemente, tanto “não quer” quanto se deixa guiar pelo sentimento da dignidade do corpo humano. Vários, de fato, são os motivos que podem induzir, incitar e mesmo constranger o homem a proceder contrariamente àquilo que exige a dignidade do corpo humano, ligada com a sensibilidade pessoal. Não se pode esquecer que a fundamental “situação” interior do homem “histórico” é o estado da tríplice concupiscênciaii. Este estado —e em particular a concupiscência da carne— faz-se sentir em diversos modos, quer nos impulsos interiores do coração humano quer em todo o clima das relações inter-humanas e nos costumes sociais.
4. Não podemos esquecer isto, nem sequer quando se trata da ampla esfera da cultura artística, sobretudo a de caráter visual e espetacular, como também quando se trata da cultura de “massa”, tão significativa para os nossos tempos e ligada com o uso das técnicas divulgativas da comunicação audiovisual. Apresenta-se uma pergunta: quando e em que caso esta esfera de atividade do homem —do ponto de vista do ethos do corpo— é posta sob a acusação de “pornovisão“, assim como a atividade literária, que era e é muitas vezes, acusada de “pornografia” (este segundo termo é mais antigo)? Uma e outra coisa verificam-se quando é ultrapassado o limite da vergonha, ou seja, da sensibilidade pessoal a respeito do que se liga com o corpo humano, com a sua nudez, quando, na obra artística ou mediante as técnicas de reprodução audiovisual, é violado o direito à intimidade do corpo na sua masculinidade ou feminilidade —e em última análise— quando é violada aquela profunda regularidade do dom e do recíproco dar-se, que está inscrito nesta feminilidade e masculinidade através da inteira estrutura de ser homem. Esta profunda inscrição —mesmo incisão— decide do significado esponsal do corpo humano, isto é, da fundamental chamada que ele recebe para formar a “comunhão das pessoas” e para nela participar.
Interrompendo neste ponto a nossa consideração, que desejamos continuar na quarta-feira próxima, convém verificar que a observância ou a não-observância destas regularidades, tão profundamente ligadas com a sensibilidade pessoal do homem, não pode ser indiferente para o problema de “criar clima favorável à castidade” na vida e na educação social.
iGn 2, 25.
ii Cf. 1Jo 2, 16.