57ª. Doutrina paulina da pureza como “vida segundo o Espírito” – 18/03/1981

1. No nosso encontro de há semanas, concentramos a atenção sobre a passagem da primeira Epístola aos Coríntios, em que São Paulo chama ao corpo humano “templo do Espírito Santo”. Escreve: “Não sabeis, porventura, que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que habita em vós, que recebestes de Deus, e que não vos pertenceis a vós mesmos? E que fostes comprados por alto preço”i. “Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?”ii. O Apóstolo indica o mistério da “redenção do corpo”, realizada por Cristo, como fonte de um particular dever moral, que obriga os cristãos à pureza, aquela que o mesmo Paulo define noutra passagem como exigência de “possuir o seu corpo em santidade e honra”iii.

2. Todavia, não descobriríamos até ao fundo a riqueza do pensamento encerrado nos textos paulinos, se não notássemos que o mistério da redenção frutifica no homem também de modo carismático. O Espírito Santo que, segundo as palavras do Apóstolo, entra no corpo humano como no próprio “templo”, nele habita e opera unido aos seus dons espirituais. Entre estes dons, conhecidos na história da espiritualidade como os sete dons do Espírito Santoiv, o mais congenial à virtude da pureza parece ser o dom da “piedade” (eusebeía, donum pietatis)1. Se a pureza dispõe o homem para “manter o próprio corpo com santidade e respeito”, segundo lemos na primeira Epístola aos Tessalonicensesv, a piedade, que é dom do Espírito Santo, parece servir de modo particular à pureza, adaptando o sujeito humano àquela dignidade que é própria do corpo humano em virtude do mistério da criação e da redenção. Graças ao dom da piedade, as palavras de Paulo —”Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que habita em vós… e que não pertenceis a vós mesmos?”vi— adquirem a eloqüência de uma experiência e tornam-se viva e vivida verdade nas ações. Abrem também o acesso mais pleno à experiência do significado esponsal do corpo e da liberdade do dom ligado com ele, no qual se desvelam o rosto profundo da pureza e o seu laço orgânico com o amor.

3. Embora a conservação do próprio corpo “com santidade e honra” se consiga mediante a abstenção da “impureza” —e tal caminho é indispensável—, todavia frutifica sempre na experiência mais profunda daquele amor, que foi inscrito desde o “princípio”, segundo a imagem e semelhança do próprio Deus, em todo o ser humano e, portanto, também no seu corpo. Por isso São Paulo termina a sua argumentação da primeira Epístola aos Coríntios no capítulo sexto com uma significativa exortação: “Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo”vii. A pureza, como virtude, ou seja, capacidade de “manter o próprio corpo com santidade e respeito”, aliada com o dom da piedade, como fruto da permanência do Espírito Santo no “templo” do corpo, realiza nele tal plenitude de dignidade nas relações interpessoais, que Deus mesmo é nisso glorificado. A pureza é glória do corpo humano diante de Deus. É a glória de Deus no corpo humano, através do qual se manifestam a masculinidade e a feminilidade. Da pureza brota aquela singular beleza, que penetra toda a esfera da recíproca convivência dos homens e consente que se exprimam a simplicidade e a profundidade, a cordialidade e a autenticidade irrepetível da confiança pessoal. (Talvez se apresente depois outra ocasião para tratar mais amplamente este tema. O laço da pureza com o amor, no amor —com aquele dom do Espírito Santo que é a piedade— constituem a trama pouco conhecida da teologia do corpo, que merece todavia aprofundamento particular. Isto poderá ser realizado no decurso das análises quanto à sacramentalidade do matrimônio).

4. Agora, uma breve referência ao Antigo Testamento. A doutrina paulina acerca da pureza, entendida como “vida segundo o Espírito”, parece indicar certa continuidade em relação com os Livros “sapienciais” do Antigo Testamento. Neles, encontramos, por exemplo, a seguinte oração para obter a pureza nos pensamentos, palavras e obras: “Senhor, pai e Deus da minha vida… afastai de mim a intemperança, e não se apodere de mim a paixão da impureza”viii. A pureza é, de fato, a condição para encontrar a sabedoria e para segui-la, conforme lemos no mesmo Livro: “Encontrei, em mim mesmo, muita sabedoria, e nela fiz grandes progressos”ix. Além disso, poder-se-ia também de algum modo tomar em consideração o texto do Livro da Sabedoriax conhecido pela liturgia na versão da Vulgata: “Scivi quoniam aliter non possum esse continens, nisi Deus det; et hoc ipsum erat sapientiae, scire, cuius esset hoc donum”2.

Segundo este contexto, não tanto é a pureza condição da sabedoria quanto a sabedoria é condição da pureza, como de um dom particular de Deus. Parece que já nos supercitados textos sapienciais se delineia o duplo significado da pureza: como virtude e como dom. A virtude está ao serviço da sabedoria, e a sabedoria predispõe para acolher o dom que provém de Deus. Este dom fortifica a virtude e consente que se gozem, na sabedoria, os frutos de um proceder e de uma vida que sejam puros.

5. Como Cristo na sua bem-aventurança do Sermão da Montanha, a qual se refere aos “puros de coração”, põe em relevo a “visão de Deus”, fruto da pureza e em perspectiva escatológica, assim Paulo por sua vez realça a sua irradiação nas dimensões da temporalidade, quando escreve: “Tudo é puro para os que são puros; mas, para os homens sem fé nem integridade, nada é puro; até o seu espírito e a sua consciência estão contaminados. Dizem que conhecem a Deus, mas negam-n’O com as suas obras…”xi. Estas palavras podem referir-se também à pureza em sentido tanto geral quanto específico, como à nota característica de todo o bem moral. Para a concepção paulina da pureza, no sentido de que falam a primeira Epístola aos Tessalonicensesxii e a primeira Epístola aos Coríntiosxiii, isto é, no sentido da “vida segundo o Espírito”, parece ser fundamental —como resulta do conjunto destas nossas considerações— a antropologia do renascimento do Espírito Santoxiv. Ela ergue-se das raízes lançadas na realidade da redenção do corpo, operada por Cristo: redenção, cuja expressão última é a ressurreição. Há profundas razões para relacionar a temática inteira da pureza com as palavras do Evangelho, nas quais Cristo se refere à ressurreição (e isto constituirá o tema da nova etapa das nossas considerações). Aqui pusemo-la em relação com o ethos da redenção do corpo.

6. O modo de entender e de apresentar a pureza —herdado da tradição do Antigo Testamento e característico dos Livros “sapienciais”— era certamente uma indireta mas, apesar disso, real preparação para a doutrina paulina acerca da pureza entendida como “vida segundo o Espírito”. Sem dúvida aquele modo facilitava também a muitos ouvintes do Sermão da Montanha a compreensão das palavras de Cristo, quando, explicando o mandamento “Não cometerás adultério”, se referia ao “coração” humano. O conjunto das nossas reflexões pôde deste modo demonstrar, ao menos em certa medida, com que riqueza e com que profundidade se distingue a doutrina sobre a pureza nas suas mesmas fontes bíblicas e evangélicas.

1 A eusebeía ou pietas no período helenístico-romano referia-se geralmente à veneração dos deuses (como “devoção”), mas conservava ainda o sentido primitivo mais lato do respeito para com as estruturas vitais.

A eusebeía definia o comportamento recíproco dos consangüíneos, as relações entre os cônjuges, e também a atitude que as legiões deviam a César ou a dos escravos para com os patrões.

No Novo Testamento, só os escritos mais tardios aplicam a eusebeía aos cristãos; nos escritos mais antigos esse termo caracteriza os “bons pagãos” (At 10, 2.7; 17, 23).

E assim a eusebeía helênica, como também o “donum pietatis”, referindo-se embora, sem dúvida, à veneração divina, têm larga base para exprimir as relações inter-humanas (cf. W. Foerster, art. eusebeía, em: “Theological Dictionary of the New Testament”, ed. G. Kittel-G. Brominley, vol. VII, Grand Rapids 1971, Eerdmans, concupiscência. 177-182).

2 Essa versão da Vulgata, conservada pela Neovulgata e pela liturgia, citada várias vezes por Santo Agostinho (De S. Virg., par. 43; Confess. VI, 11; X, 29; Serm. CLX, 7), muda todavia o sentido do original grego, que se traduz assim: “Como sabia que não podia obter a sabedoria, se Deus ma não desse…”.

i1Cor 6, 19-20.

ii1Cor 6, 15.

iii1Ts 4, 4.

iv Cf. Is 11, 2 segundo os Setente e a Vulgata.

v 4, 3-5.

vi1Cor 6, 19.

vii V. 20.

viiiEclo 23, 4-6.

ixEclo 51, 20.

x 8, 21.

xiTt 1, 15ss.

xii 4, 3-5.

xiii 6, 13-20.

xiv Cf. também Jo 3, 5ss.