51ª. Vida segundo a carne e justificação em Cristo – 17/12/1980

1. “A carne… tem desejos opostos ao Espírito e o Espírito tem desejos contrários à carne”. Queremos hoje aprofundar estas palavras de São Paulo na Epístola aos Gálatasi, com as quais, na semana passada, terminamos as nossas reflexões sobre o tema do justo significado da pureza. Paulo tem na mente a tensão que existe no íntimo do homem, precisamente no seu “coração”. Não se trata aqui só do corpo (da matéria) e do espírito (a alma), como de duas componentes antropológicas essencialmente diversas, que desde o “princípio” constituem a essência mesma do homem. Mas é pressuposta aquela disposição de forças formada no homem com o pecado original e em que participa todo o homem “histórico”. Em tal disposição, formada no íntimo do homem, o corpo contrapõe-se ao espírito e facilmente toma o domínio sobre ele1. A terminologia paulina, todavia, significa alguma coisa mais: aqui o predomínio da “carne” parece quase coincidir com o que, segundo a terminologia joanina, é a tríplice concupiscência que “vem do mundo”. A “carne”, na linguagem das epístolas de São Paulo2, indica não só o homem “exterior”, mas também o homem “interiormente” sujeito ao “mundo”3, em certo sentido encerrado no âmbito daqueles valores que pertencem só ao mundo e daqueles fins que ele é capaz de impor ao homem: valores, portanto, aos quais o homem, enquanto “carne”, é precisamente sensível. Assim a linguagem de Paulo parece ligar-se aos conteúdos essenciais de João, e a linguagem de ambos denota o que é definido por vários termos da ética e da antropologia contemporâneas, como por exemplo: “autarquia humanista”, “secularismo” ou também, com significado geral, “sensualismo”. O homem, que vive “segundo a carne”, é o homem disposto somente àquilo que vem “do mundo”; é o homem dos “sentidos”, o homem da tríplice concupiscência. Confirmam-no as suas ações, como diremos dentro em pouco.

2. Tal homem vive quase no pólo oposto em relação àquilo que “o Espírito quer”. O Espírito de Deus quer uma realidade diversa da querida pela carne, ambiciona uma realidade diversa daquela que a carne ambiciona, isto no interior do homem, já na fonte interior das aspirações e das ações do mundo —”de maneira que vós não fazeis aquilo que quisestes”ii.

Paulo exprime isto de modo ainda mais explícito falando noutra passagem sobre o mal que faz, embora não o querendo, e da impossibilidade —ou, antes, da possibilidade limitada— de realizar o bem que “quer”iii. Sem entrar nos problemas de uma exegese particularizada deste texto, poder-se-ia dizer que a tensão entre a “carne” e o “espírito” é primeira, imanente, embora se não reduza a este nível. Manifesta-se no seu coração como “combate” entre o bem e o mal. Aquele desejo, de que fala Cristo no Sermão da Montanhaiv, se bem que seja ato “interior”, permanece certamente —segundo a linguagem paulina— como manifestação da vida “segundo a carne”. Ao mesmo tempo, aquele desejo consente-nos verificar como, no interior do homem, a vida “segundo a carne” se opõe à vida “segundo o Espírito”, e como esta última, no estado atual do homem, dada a sua pecaminosidade hereditária, está constantemente exposta à fraqueza e insuficiência da primeira, à qual muitas vezes cede, se não é interiormente aquilo “que quer o Espírito”. Podemos deduzir daqui que as palavras de Paulo, que tratam da vida “segundo a carne” e “segundo o Espírito”, são ao mesmo tempo síntese e programa; e é necessário entendê-las como tais.

3. Encontramos a mesma contraposição da vida “segundo a carne” à vida “segundo o Espírito” na Epístola aos Romanos. Também aqui (como, aliás, na Epístola aos Gálatas), ela é colocada no contexto da doutrina paulina acerca da justificação mediante a fé, isto é, mediante o poder de Cristo mesmo, a operar no íntimo do homem por meio do Espírito Santo. Em tal contexto, Paulo leva essa contraposição às suas conseqüências extremas, ao escrever: “os que vivem segundo a carne, desejam as coisas da carne; e os que vivem segundo o Espírito, as coisas do Espírito. Porque o desejo da carne é morte, ao passo que o desejo do Espírito é vida e paz. De fato, o desejo da carne é inimizade para com Deus, porque não se sujeita à lei de Deus pois não o pode fazer. E os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, uma vez que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não possui o Espírito de Cristo, não Lhe pertence. Se Cristo, porém, habita em vós, embora o corpo esteja morto devido ao pecado, o espírito é vida por causa da justiça”v.

4. Vêem-se com clareza os horizontes que Paulo desenha neste texto: e ele remonta ao “princípio” —isto é, neste caso, ao primeiro pecado de que teve origem a vida “segundo a carne”, o qual criou no homem a herança de uma predisposição a viver unicamente tal vida, juntamente com a herança da morte. Ao mesmo tempo, Paulo tem em vista a vitória final sobre o pecado e sobre a morte, de que é sinal e anúncio a ressurreição de Cristo: “Aquele que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos há-de dar igualmente a vida aos vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que habita em vós”vi. E nesta perspectiva escatológica, São Paulo põe em relevo a “justificação em Cristo, destinada já ao homem ‘histórico'”, a cada homem de “ontem, hoje e amanhã” da histórica do mundo e também da história da salvação: justificação que é essencial para o homem interior, se se destina exatamente àquele “coração” para o qual apelou Cristo, falando da “pureza” e da “impureza” em sentido moral. Esta “justificação” pela fé não constitui simplesmente dimensão do plano divino da salvação e da santificação do homem, mas é, segundo São Paulo, autêntica força que opera no homem e se revela e afirma nas suas ações.

5. Eis, de novo, as palavras da Epístola aos Gálatas: “Aliás as obras da carne são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, discórdias, ciúme, dissenções, divisões, facções, invejas, embriaguezes, orgias e coisas semelhantes…”vii. “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e domínio de si…”viii. Na doutrina paulina, a vida “segundo a carne” opõe-se à vida “segundo o Espírito” não só no interior do homem, no seu “coração”, mas, como se vê, encontra amplo e diferenciado campo para traduzir-se em obras. Paulo fala, por um lado, das “obras” que nascem da “carne” —poder-se-ia dizer das obras em que se manifesta o homem que vive “segundo a carne”— e, por outro lado, fala do “fruto do Espírito“, isto é, das ações4, dos modos de comportamento, das virtudes, em que se manifesta o homem que vive “segundo o Espírito”. Ao passo que no primeiro caso nos encontramos com o homem abandonado à tríplice concupiscência, da qual João diz que vem “do mundo”, no segundo caso estamos diante daquilo que já antes chamamos o ethos da Redenção. Só agora estamos habilitados a esclarecer plenamente a natureza e a estrutura daquele “ethos”. Exprime-se e afirma-se através daquilo que no homem, em todo o seu “operar”, nas ações e no comportamento, é fruto do domínio sobre a tríplice concupiscência: da carne, dos olhos e da soberba da vida (e tudo aquilo de que pode ser justamente “acusado” o coração humano e de que podem ser continuamente “suspeitados” o homem e a sua interioridade).

6. Se o poder na esfera do ethos se manifesta e realiza como “amor, bondade, fidelidade, mansidão e domínio de si” —como lemos na Epístola aos Gálatas—, então, dentro de cada uma destas realizações, destes comportamentos e destas virtudes morais, está uma opção específica, isto é, um esforço da vontade, fruto do espírito humano penetrado pelo Espírito de Deus, que se manifesta em escolher o bem. Falando com linguagem de Paulo: “O Espírito tem desejos contrários à carne”ix e nestes seus “desejos” mostra-se mais forte que a “carne” e que os desejos gerais da tríplice concupiscência. Nesta luta entre o bem e o mal, o homem mostra-se mais forte graças ao poder do Espírito Santo que, operando dentro do espírito humano, faz que os desejos deste frutifiquem para o bem. Estes são, portanto, não somente —e não tanto— “obras” do homem, quanto “fruto”, isto é, efeito da ação do “Espírito” no homem. E por isso Paulo fala do “fruto do Espírito”, entendendo esta palavra escrita com maiúscula.

Sem penetrar nas estruturas da interioridade humana mediante as sutis diferenciações que nos são fornecidas pela teologia sistemática (especialmente a partir de Tomás de Aquino), limitamo-nos à exposição sintética da doutrina bíblica que nos permite compreender, de modo essencial e suficiente, a distinção e a contraposição da “carne” e do “Espírito”.

Observamos que, entre os frutos do Espírito, o Apóstolo coloca também o “domínio de si”. É necessário não o esquecer, porque nas nossas novas reflexões retomaremos este tema para o tratar de modo mais particularizado.

1 “Paul never, like Greeks, identified ‘sinful flesh’ with the physical body…

Flesh, then, in Paul is not to be identified with sex or with the physical body. It is closer to the Hebrew thought of the physical personality —the self including physical and psychical elements as vehicle of the outward life and the lower levels of experience.

It is man in his humanness with all the limitations, moral weakness, vulnerability, creatureliness and mortality, which being human implies…

Man is vulnerable both to evil and to God; he is a vehicle, a channel, a dwelling-place, a temple, a battlefield (Paul uses each metaphor) for good and evil.

Which shall possess, indwell, master him —whether sin, evil, the spirit that now worketh in the children of disobedience, or Christ, the Holy Spirit, faith, grace— it is for each man to choose.

That he can so choose, brings to view the other side of Paul’s conception of human nature, man’s conscience and the human spirit” (R.E.O. White, Biblical Ethics, Exeter 1979, Paternoster Press, pp. 135-138).

2 A interpretação da palavra grega sarx “carne”, nas Epístolas de Paulo, depende do contexto de cada uma. Na Epístola aos Gálatas, por exemplo, podem-se especificar pelo menos dois significados distintos de sarx.

Escrevendo aos Gálatas, Paulo combatia dois perigos, que ameaçavam a jovem comunidade cristã.

Por um lado, os convertidos do judaísmo tentavam convencer os convertidos do paganismo a que aceitassem a circuncisão, que era obrigatória no judaísmo. Paulo repreende-os “de se vangloriarem da carne”, isto é, de colocarem a esperança na circuncisão da carne. “Carne”, neste contexto (Gl 3, 1-5.12; 6, 12-18), significa, portanto, “circuncisão”, como símbolo de uma nova submissão às leis do judaísmo.

O segundo perigo, na jovem Igreja gálata, provinha do influxo dos “Pneumáticos”, que entendiam a obra do Espírito Santo mais como divinização do homem do que como poder operante em sentido ético. Isto levava-os a menosprezar os princípios morais. Escrevendo-lhes, Paulo chama “carne” a tudo o que aproxima o homem do objeto da sua concupiscência e o alicia com a promessa sedutora de uma vida aparentemente mais plena (cf. Gl 5, 13; 6, 10).

A sarx, portanto, “vangloria-se” tanto da “Lei” como da infração dela, e em ambos os casos promete aquilo que não pode manter.

Paulo distingue explicitamente entre o objeto da ação e a sarx. O centro da decisão não está na “carne”: “Andai segundo o Espírito e não sereis levados a satisfazer os desejos da carne” (Gl 5, 16).

O homem cai na escravidão da carne quando se confia à “carne” e naquilo que ela promete (no sentido da “Lei” ou da infração da lei).

(Cfr. F. Mussner, Der Galaterbrief, Herders Theolog. Kommentar zum NT, IX, Freiburg 1974, Herder, p. 367; R. Jewett, Paul’s Anthropological Terms, A Study of Their Use in Conflict Settings, Arbeiten zur Geschichte des antiken Judentums und des Urchristentums, X, Leiden 1971 / Brill /, pp. 95-106).

3 Paulo sublinha nas suas Epístolas o caráter dramático daquilo que se realiza no mundo. Como os homens, por sua culpa, se esqueceram de Deus, “por isso Deus os abandonou à impureza segundo os desejos do seu coração” (Rm 1, 24), da qual provém ainda toda a desordem moral, que deforma tanto a vida sexual (ib. 1, 24-27) como o funcionamento da vida social e econômica (ib. 1, 29-32) e até cultural; de fato, esses, “conquanto conheçam bem o decreto de Deus —de que são dignos de morte os que tais coisas praticam— não só as cometem, como também aprovam os que as praticam” (ib. 1, 32).

Uma vez que, por causa de um só homem o pecado entrou no mundo (ib. 5, 12), “o Deus deste mundo cegou as inteligências incrédulas, para que não vejam o esplendor do glorioso evangelho de Cristo” (2Cor 4, 4); e, por isso, também “a ira de Deus se manifesta, do alto do céu, contra toda a impiedade e injustiça dos homens que retêm a verdade cativa na injustiça” (Rm 1, 18).

Por isso, “a criação mesma espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus… e alimenta a esperança de ser também ela liberta da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus” (ib. 19, 21), aquela liberdade para a qual “Cristo nos libertou” (Gl 5, 1).

O conceito de “mundo” em São João tem diversos significados: na sua primeira Epístola, o mundo é o lugar em que se manifesta a tríplice concupiscência (1Jo 2, 15-16) e em que os falsos profetas e os adversários de Cristo procuram seduzir os fiéis; mas os cristãos vencem o mundo graças à sua fé (ib. 5, 4): o mundo, de fato, desaparece juntamente com as suas concupiscências e quem realiza a vontade de Deus vive eternamente (cf. ib. 2, 17).

(Cf. P. Grelot, “Monde”, in: Dictionnaire de Spiritualité, Ascétique et mustique, doctrine et histoire, / fascicules 68-69; Beauchesne, p. 1628 ss. E ainda: J. Mateos, J. Barreto, Vocabulario teologico del Evangelio de Juan, Madrid 1980, Edic. Cristiandad, p. 211-215).

4 Os exegetas levam a obervar que embora, por vezes, para Paulo o conceito de “fruto” se aplique também às “obras da carne” (por exemplo, Rm 6, 21; 7, 5), todavia “o fruto do Espírito” não é nunca chamado “obra”.

De fato, para Paulo “as obras” são os atos próprios do homem (ou aquilo em que Israel depõe, sem razão, a esperança, de que ele responderá diante de Deus).

Paulo evita também o termo “virtude”, areté; encontra-se uma só vez, em sentido muito geral, em Fl 4, 8. No mundo grego, esta palavra tinha um significado demasiado antropocêntrico; particularmente os estóicos punham em relevo a auto-suficiência ou autarquia da virtude.

Pelo contrário, o termo “fruto do Espírito” sublinha a ação de Deus no homem. Este “fruto” cresce nele como o dom de uma vida, cujo único autor é Deus; o homem pode, quando muito, favorecer as condições aptas, para que o fruto possa crescer e chegar à maturidade.

O fruto do Espírito, na forma singular, corresponde de algum modo à “justiça” do Antigo Testamento, que abraça o conjunto da vida conforme a vontade de Deus; corresponde também, em certo sentido, à “virtude” dos estóicos, que era indivisível. Vemo-lo, por exemplo, em Ef 5, 9-11.

“O fruto da luz consiste em toda a bondade, justiça e verdade… não participeis das obras infrutuosas das trevas…”

Todavia, “o fruto do Espírito” é diferente quer da “justiça” quer da “virtude”, porque ele (em todas as suas manifestações e diferenciações que se vêem nos catálogos das virtudes) contém o efeito da ação do Espírito, que na Igreja é fundamento e prática da vida do cristão.

(Cf. H. Schlier, Der Brief an die Galater, Meyer’s Kommentar Göttingen 1971 Vandenhoeck-Ruprecht, pp. 255-264; O. Bauernfeind, areté in: Theological Dictionary of the New Testament, ed. G. Kittel G. Bromley, vol. 1, Grand Rapids 1978, Eerdmans, p. 460; W. Tatarkiewicz, Historia Filozofii, t. 1, Warszawa 1970, PWN pp. 121; E. Kamlah, Die Form der katalogischen Paränese im Neuen Testament, Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament, 7, Tübingen 1964, Mhr, p. 14).

i 5, 17.

iiGl 5, 17.

iii Cf. Rm 7, 19.

iv Cf. Mt 5, 27-28.

vRm 8, 5-10.

viRm 8, 11.

vii 5, 19-21.

viii 5, 22-23.

ixGl 5, 17.