44ª. Valores evangélicos e deveres do coração humano – 15/10/1980

1. Durante os nossos numerosos encontros das quartas-feiras, fizemos particularizada análise das palavras do Sermão da Montanha, em que se refere Cristo ao “coração” humano. Como agora sabemos, as Suas palavras são vinculantes. Cristo diz: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coraçãoi. Esta alusão ao coração põe em ressalto a dimensão da interioridade humana, a dimensão do homem interior, própria da ética, e ainda mais da teologia do corpo. O desejo, que surge no âmbito da concupiscência da carne, é ao mesmo tempo realidade interior e teológica, a qual, em certo modo, é experimentada por todo o homem “histórico”. E é exatamente este homem —mesmo se não conhece as palavras de Cristo— que faz continuamente a si mesmo a pergunta acerca do próprio “coração”. As palavras de Cristo fazem que tal pergunta seja particularmente explícita: o coração é acusado ou é chamado ao bem? E esta pergunta desejamos agora tomá-la em consideração, perto do fim das nossas reflexões e análises, relacionadas com a frase tão concisa e ao mesmo tempo categórica do Evangelho, tão cheia de conteúdo teológico, antropológico e ético.

A par e passo, eis uma segunda pergunta, mais “prática”: como “pode” e “deve” proceder o homem, que aceita as palavras de Cristo no Sermão da Montanha, o homem que aceita o ethos do Evangelho, e, em particular, o aceita neste campo?

2. Este homem encontra, nas considerações até agora feitas, a resposta, pelo menos indireta, às duas perguntas: como “pode” atuar, isto é, sobre que pode contar no seu “íntimo”, na fonte dos seus atos “interiores” ou “exteriores”? E além disso: como “deveria” atuar, isto é, em que modo os valores conhecidos segundo a “escala” revelada no Sermão da Montanha constituem um dever da sua vontade e do seu “coração”, dos seus desejos e das suas opções? De que modo o “obrigam” na ação, no comportamento, se, acolhidas mediante o conhecimento, o “obrigam” já no pensar e, em certa maneira, no “sentir”? Estas perguntas são significativas para a “prática” humana, e indicam um laço orgânico da “prática” mesma com o ethos. A moral viva é sempre ethos da prática humana.

3. Às sobreditas perguntas pode-se responder de vários modos. De fato, quer no passado quer hoje, são dadas respostas diversas. Isto é confirmado por abundante literatura. Além das respostas que encontramos nela, é preciso tomar em consideração o infinito número de respostas que o homem concreto dá a estas perguntas por si mesmo, aquelas que, na vida de cada um, dá repetidamente a sua consciência, a sua ciência e sensibilidade moral. Precisamente neste âmbito existe continuamente uma compenetração do ethos e da prática. Aqui a própria vida (não exclusivamente “teórica”) vive cada princípio, isto é, as normas da moral com as suas motivações, elaboradas e divulgadas por moralistas, mas também aquelas que elabora —seguramente não sem um laço com o trabalho dos moralistas e dos cientistas— cada homem, como autor e sujeito direto da moral real, como co-autor da sua história, de quem dependem ainda o nível da moral mesma, o seu progresso ou a sua decadência. Em tudo isto se torna a confirmar, em toda a parte e sempre, aquele “homem histórico”, a quem uma vez Cristo falou, anunciando a boa nova evangélica com o Sermão da Montanha, no qual em particular disse a frase que lemos em Mateus 5, 27-28: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração“.

4. O enunciado de Mateus apresenta-se estupendamente conciso relativamente a tudo quanto sobre este tema foi escrito na literatura mundial. E talvez precisamente nisto consista a sua força na história do ethos. É necessário ao mesmo tempo darmo-nos conta de que a história do ethos decorre num leito multiforme, em que se aproximam ou afastam mutuamente as várias correntes. O homem “histórico” valoriza sempre, a seu modo, o próprio “coração”, assim como julga também o próprio “corpo”: e assim passa do pólo do pessimismo ao pólo do otimismo, da severidade puritana ao permissivismo contemporâneo. É necessário darmo-nos conta, para o ethos do Sermão da Montanha poder sempre ter a devida transparência quanto às ações e aos comportamentos do homem. Para tal fim é preciso fazer ainda algumas análises.

5. As nossas reflexões sobre o significado das palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28 não seriam completas, se não nos detivéssemos —pelo menos brevemente— naquilo que se pode chamar a ressonância destas palavras na história do pensamento humano e da valorização do ethos. A ressonância é sempre transformação da voz e das palavras que a voz exprime. Sabemos pela experiência que essa transformação está por vezes cheia de misterioso encanto. No caso que tratamos, aconteceu antes alguma coisa contrária. De fato, às palavras de Cristo foi antes tirada a sua simplicidade e profundidade e foi conferido um significado que está longe do nelas expresso, significado, no fim de contas, contrário mesmo a elas. Temos aqui na mente tudo o que apareceu à margem do cristianismo sob o nome de Maniqueísmo1, que procurou mesmo entrar no terreno do cristianismo no que diz respeito exatamente à teologia e ao ethos do corpo. É sabido que, na forma original, o maniqueísmo, nascido no Oriente fora do ambiente bíblico e originado pelo dualismo mazdeísta, indicava a fonte do mal na matéria, no corpo, e proclamava portanto a condenação de tudo o que no homem é corpóreo. E como no homem a corporeidade se manifesta sobretudo através do sexo, a condenação era estendida ao matrimônio e à convivência conjugal, para além das outras esferas do ser e do atuar, em que se exprime a corporeidade.

6. A um ouvido não habituado, a evidente severidade deste sistema podia parecer em sintonia com as severas palavras de Mateus 5, 29-30, em que fala Cristo de “arrancar o olho” ou de “cortar a mão”, se estes membros fossem a causa do escândalo. Através da interpretação puramente “material” destas locuções, era também possível obter uma ótica maniquísta do enunciado de Cristo, em que se fala do homem que “cometeu adultério no coração… olhando para a mulher desejando-a”. Também neste caso, a interpretação maniqueísta tende para a condenação do corpo, como real fonte do mal, dado que nele, segundo o maniqueísmo, se esconde e ao mesmo tempo se manifesta o princípio “ontológico” do mal. Procurava-se, portanto, descobrir e às vezes percebia-se tal condenação no Evangelho, encontrando-a onde foi pelo contrário expressa exclusivamente uma exigência particular dirigida ao espírito humano.

Note-se que a condenação podia —e pode sempre— ser uma escapatória para a pessoa se subtrair às exigências colocadas no Evangelho por Aquele que “conhecia o interior de cada um”ii. Não faltam provas disso na história. Já tivemos em parte ocasião (e certamente tê-la-emos ainda) para demonstrar em que medida tal exigência pode surgir unicamente de uma afirmação —e não de uma negação ou de uma condenação—, se deve levar a uma afirmação ainda mais madura e aprofundada, objetiva e subjetivamente. E a tal afirmação da feminilidade e masculinidade do ser humano, como dimensão pessoal do “ser corpo”, devem conduzir as palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28. Tal é o justo significado ético destas palavras. Imprimem, nas páginas do Evangelho, uma peculiar dimensão do ethos com o fim de a ir imprimindo na vida humana.

Procuremos retomar este tema nas nossas reflexões seguintes.

1 O Maniqueísmo contém e leva à maturação os elementos característicos de toda a “gnose”, quer dizer, o dualismo de dois princípios coeternos e radicalmente opostos, e o conceito de salvação que só se consegue através do conhecimento (gnose) ou da autocompreensão da pessoa. Em todo o mito maniqueu há um só herói e uma só situação que sempre se repete: a alma decaída está aprisionada na matéria e é libertada pelo conhecimento.

A atual situação histórica é nagativa para o homem, prque é mistura provisória e anormal de espírito e de matéria, de bem e de mal, que supõe um estado antecedente, original, em que as duas substâncias estavam separadas e independentes. Há, por isso, três “Tempos”: o “initium”, ou seja, a separação inicial; o “medium”, ou a atual mistura; e o “finis”, que está no regresso à divisão original, na salvação, que implica total rotura entre Espírito e Matéria.

A Matéria é, no fundo, concupiscência, desregrado apetite do prazer, instinto de morte, comparável, se não idêntico, ao desejo sexual, à “libido”. É força que tenta assaltar a Luz; é movimento desordenado, desejo animalesco, brutal e semiconsciente.

Adão e Eva foram gerados por dois demônios; a nossa espécie nasceu de uma série de atos repugnantes de canibalismo e de sexualidade, e conserva os sinais desta origem diabólica, que são o corpo, forma animal dos “Arcontes do inferno”, e a “libido”, que impele o homem a cruzar-se e a reproduzir-se, isto é, a manter a alma luminosa sempre na prisão.

Se quer ser salvo, o homem deve procurar libertar o seu “eu vivente” (noûs) da carne e do corpo. Como a Matéria tem na concupiscência a sua expressão suprema, o pecado capital está na união sexual (fornicação), que é brutalidade e bestialidade, e faz dos homens os instrumentos e os cúmplices do Mal pela procriação.

Os eleitos constituem o grupo dos perfeitos, cuja virtude tem uma característica ascética, realizando a abstinência comandada pelos três “selos”: o “selo da boca” proíbe toda a blasfêmia e manda a abstenção da carne, do sangue, do vinho, de toda a bebida alcoólica, e também o jejum; o “selo das mãos” manda o respeito da vida (da “Luz”) encerrada nos corpos, nas sementes, nas árvores, e proíbe recolher os frutos, arrancar as plantas, tirar a vida aos homens e aos animais; e o “selo do regaço” prescrete total abstinência (cf. H. Ch. Puech: Le Manichéisme; son fondateur, sa doctrine, Paris 1949, Musée Guimet, t. LVI, pp. 73-88; H. Ch. Puech, Le Manichéisme, em “Histoire des Religions”, Encyclopédie de la Pléiade, II, Gallimard, 1972, pp. 522-645; J. Ries, Manichéisme, em “Catholicisme hier, aujourd’hui, demain”, 34, Lille 1977, Letouzey-Ané, pp. 314-320).

iMt 5, 27-28.

iiJo 2, 25.