1. Reflitamos nas seguintes palavras de Jesus, tiradas do Sermão da Montanha: “Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração” (“tornou-a já adúltera no seu coração”)i. Cristo pronuncia esta frase diante dos ouvintes, que, baseados nos livros do Antigo Testamento, estavam, em certo sentido, preparados para compreender o significado do olhar que nasce da concupiscência. Já na quarta-feira passada fizemos referência aos textos tirados dos chamados Livros Sapienciais.
Eis, por exemplo, outra passagem, em que o autor bíblico analisa o estado de alma do homem dominado pela concupiscência da carne:
“… uma paixão ardente como fogo aceso / não se acalmará antes de devorar alguma coisa. / O homem que abusa do seu próprio corpo, / não terá sossego enquanto não devorar uma fogueira. / Para o homem impuro todo o pão é apetitoso, / e não se cansará de pecar até à morte. / O homem que desonra o leito conjugal / diz no seu coração: ‘Quem me vê? / As trevas cercam-me, as paredes escondem-me, / ninguém me vê, e a quem temerei? / O Altíssimo não se lembrará dos meus pecados’. / Não considera que os olhos de Deus vêm todas as coisas, / que um semelhante temor humano afasta de si o temor de Deus. / Só teme os olhos dos homens. / E não sabe que os olhos do Senhor / são muito mais luminosos que o sol; / vêem todos os caminhos dos homens, / e penetram as profundezas do abismo e os corações dos mesmos homens / até aos seus mais íntimos recônditos. / Assim também perecerá toda a mulher que deixar o seu marido, / e lhe der como herdeiro um filho adulterino…”ii.
2. Não faltam análogas descrições na literatura mundial1. Certamente, muitas destas distinguem-se por mais penetrante perspicácia de análise psicológica, e por mais intensa sugestividade e força expressiva. Todavia, a descrição bíblica de Eclesiásticoiii compreende alguns elementos que podem ser considerados “clássicos” na análise da concupiscência carnal. Elemento do gênero é, por exemplo, a comparação entre a concupiscência da carne e o fogo: este, ardendo no homem, invade-lhe os sentidos, excita o corpo, arrasta os sentimentos e em certo sentido apodera-se do “coração”. Tal paixão, originada pela concupiscência carnal, sufoca no “coração” a voz mais profunda da consciência, o sentido da responsabilidade diante de Deus; e isto, por sinal, é especialmente posto em evidência no texto bíblico recém-citado. Persiste, por outro lado, o pudor externo a respeito dos homens —ou antes uma aparência de pudicícia, que se manifesta como temor das conseqüências, mais que do mal em si mesmo. Sufocando a voz da consciência, a paixão leva consigo inquietação do corpo e dos sentidos: é a inquietação do “homem exterior”. Quando o homem interior foi reduzido ao silêncio, a paixão, depois de obter por assim dizer liberdade de ação, manifesta-se com insistente tendência para a satisfação dos sentidos e do corpo.
Tal satisfação, segundo o critério do homem dominado pela paixão, deveria extinguir o fogo; mas, pelo contrário, ela não atinge as fontes da paz interior e limita-se a tocar o nível mais exterior do indivíduo humano. E aqui o autor bíblico justamente verifica que o homem, cuja vontade está empenhada em satisfazer os sentidos, não encontra sossego nem se encontra a si mesmo, mas, pelo contrário, “consome-se“. A paixão procura satisfazer-se; por isso, embota a atividade reflexiva e desatende a voz da consciência; assim sem ter em si qualquer princípio de indestrutibilidade, “extenua-se”. É-lhe conatural o dinamismo do uso, que tende a “esgotar-se”. É verdade que, estando a paixão inserida no conjunto das mais profundas energias do espírito, pode tornar-se força criadora; em tal caso, porém, deve sofrer uma transformação radical. Se, pelo contrário, sufoca as forças mais profundas do coração e da consciência (como acontece na narrativa de Eclesiástico 23, 17-22), “consome-se” e, de modo indireto, nela se consome o homem que é sua presa.
3. Quando Cristo, no Sermão da Montanha, fala do homem que “deseja”, que “olha com desejo”, pode presumir-se que tem diante dos olhos também as imagens conhecidas daqueles que O ouvem usando a tradição “sapiencial”. Todavia, contemporaneamente, refere-se a cada homem que, baseado na própria experiência interior, sabe o que significa “desejar”, “olhar com desejo”. O Mestre não analisa tal experiência nem a descreve, como fizera, por exemplo, o Eclesiásticoiv; parece pressupor, diria eu, suficiente conhecimento daquele fato interior, para o qual chama a atenção dos ouvintes, presentes e potenciais. É possível que algum deles não saiba de que se trata? Se realmente nada soubesse, o conteúdo das palavras de Cristo não lhe diria respeito, nem qualquer análise ou descrição seria capaz de o esclarecer. Se, pelo contrário, souber —trata-se, de fato, em tal caso, de uma ciência de todo interior, intrínseca ao coração e à consciência— compreenderá imediatamente, quando as sobreditas palavras a ele se refiram.
4. Cristo, portanto, não descreve nem analisa o que forma a experiência do “desejar”, a experiência da concupiscência da carne. Tem-se mesmo a impressão de Ele não penetrar nesta experiência em toda a amplitude do seu interior dinamismo, como acontece por exemplo no texto citado de Eclesiástico, mas detém-se antes no limiar dela. O “desejo” não se transformou ainda numa ação exterior, ainda não se tornou o “ato do corpo”; e até agora o ato interior do coração: exprime-se no olhar, no modo de “olhar para a mulher”. Todavia, já deixa entender, desvela, o seu conteúdo e a sua qualidade essenciais.
É necessário fazermos agora tal análise. O olhar exprime o que está no coração. O olhar exprime, diria eu, o homem completo. Se em geral se admite que o homem “opera em conformidade com o que é” (operari sequitur esse), Cristo neste caso quer pôr em evidência que o homem “olha” conformemente àquilo que é: intueri seguitur esse. Em certo sentido, o homem através do olhar revela-se exteriormente e aos outros; sobretudo revela o que percebe no “interior”2.
5. Cristo ensina, portanto, a considerarmos o olhar quase como limiar da verdade interior. Já no olhar, “no modo como se olha”, é possível reconhecer plenamente o que é a concupiscência. Procuremos explicá-lo. “Desejar”, “olhar com desejo”, indica uma experiência do valor do corpo, em que o seu significado esponsal cessa de ser tal, precisamente por causa da concupiscência. Cessa, também, o seu significado procriativo, de que falamos nas nossas precedentes considerações. Este —quando diz respeito à união conjugal do homem e da mulher— está radicado no significado esponsal do corpo e quase organicamente dele deriva. Ora, o homem, “desejando”, “olhando para desejar” (como lemos em Mt 5, 27-28), experimenta de modo mais ou menos explícito o desapego daquele significado do corpo, que (segundo já observamos nas nossas reflexões) está na base da comunhão das pessoas: seja fora do matrimônio, seja —de modo particular— quando o homem e a mulher são chamados a constituir a união “no corpo” (como proclama o “evangelho do princípio” no clássico texto de Gênesis 2, 24). A experiência do significado esponsal do corpo está subordinada, de modo particular, à chamada sacramental, mas não se limita a ela. Tal significado qualifica a liberdade do dom, que —segundo veremos com maior precisão nas seguintes análises— pode realizar-se não só no matrimônio, mas também de modo diverso.
Cristo diz: “Todo aquele que olha para uma mulher para a desejar (isto é, quem olha com concupiscência) já cometeu adultério com ela no seu coração” (“tornou-a já adúltera no seu coração”)v. Não quer acaso Ele dizer com isto que precisamente a concupiscência —como o adultério— é desapego interior do significado esponsal do corpo? Não quer mandar os Seus ouvintes para as experiências interiores que têm desse desapego? Não é acaso por isto que o define “adultério cometido no coração”?
1 Cf. p. ex. “Confissões” de S. Agostinho: “Deligatus morbo carnis mortifera suavitate trahebam catenam meam, solvi timens, et quasi concusso vulnere repellens verba bene suadentis tamquam manum solventis. (…) Magna autem ex parte atque vehementer consuetudo satiandae insatiabilis concupiscentiae me captum excruciabat” (Confessiones, VI, 12, 21-22).
“Et non stabam frui Deo meo, sed rapiebar ad te decore tuo; moxque deripiebar abs te pondere meo, et ruebam in ista cum gemi tu: et pondus hoc, consuetudo carnalis” (Confessiones, 1, VII, c. 17).
“Sic aegrotabam et excruciabar accusans memetipsum solito acerbius nimis, ac volvens et versans me in vinculo meo, donec abrumperetur totum, quo iam exiguo tenebar, sed tenebar tamen. Et instabas tu in occultis Domine, severa misericordia, flagella ingeminans timoris et pudoris, ne rursus cessarem, et non abrumperetur idipsum exiguum et tenue quod remanserat; et revalesceret iterum et me robustius alligaret…” (Confessionis, 1, VIII, c. 11).
Dante descreve esta fratura interior e considera-a merecedora de pena:
“Quando giungon davanti alla ruina / quivi le strida, il compianto, il lamento; / bestemmian quivi la virtù divina. / Intesi che a così fatto tormento / enno dannati i peccator carnali, / che la ragion dommettono al talento. / E come gli stornei ne portan l’ali / nel freddo tempo a schiera larga e piena, / così quel fiato gli spiriti mali: / di qua, di là, di giù, di su li mena; / nulla speranza li conforta mai, / non che di posa, ma di minor pena.” (Dante, Divina Commedia, Inferno, V, 37-43).
“Shakespeare descreveu a satisfação de uma tirânica concupiscência como algo de: ‘Past reason hunted and, no sooner had, / past reason hated” (C.S. Lewis, The Four Loves, New York 1960, Harcourt, Brace, p. 28).
2 A análise filológica confirma o significado da expressão ho blépo (“o olhante” ou “quem quer que olha”: Mt 5, 28).
“Se blépo de Mt 5, 28 tem o valor de percepção interna, equivalente a ‘penso, fixo o olhar, reparo‘ —mais severo e mais elevado resulta o ensinamento evangélico quanto às relações interpessoais dos discípulos de Cristo.
Segundo Jesus, não é necessário nem sequer um olhar luxurioso para fazer tornar adúltera uma pessoa. Basta mesmo um pensamento do coração” (M. Adinolfi, “Il desiderio della donna in Matteo 5, 28”, in: Fondamenti biblici della teologia morale, Atti della XXII Settimana Biblica Italiana, Brescia 1973, Paideia, p. 279).
iMt 5, 28.
iiEclo 23, 17-22.
iii 23, 17-22.
iv 23, 17-22.
vMt 5, 28.