36ª. O adultério segundo a lei e na linguagem dos Profetas – 20/08/1980

1. Quando Cristo, no Sermão da Montanha, diz: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério”i, refere-se ao que sabia perfeitamente cada um dos seus ouvintes e àquilo a que se sentia obrigado em virtude do mandamento de Deus-Javé. Todavia, a história do Antigo Testamento faz ver que não só a vida do povo, unido a Deus-Javé por uma particular aliança, mas também a vida de cada homem se aparta muitas vezes deste mandamento. Mostra-o também um olhar sumário lançado sobre a legislação, de que há rico material nos Livros do Antigo Testamento.

As prescrições da lei vétero-testamentária eram severíssimas. Eram também muito particularizadas e penetravam nos mais minuciosos pormenores concretos da vidaii. É presumível que quanto mais a legalização da poligamia efetiva se tornava evidente nesta lei, tanto mais crescia a exigência de manter as suas dimensões jurídicas e de premunir os seus limites legais. Daqui o grande número de prescrições e também a severidade das penas previstas pelo legislador por causa da infração de tais normas. Sobre a base das análises, que desenvolvemos precedentemente acerca da referência que faz Cristo ao “princípio”, no seu discurso sobre a dissolubilidade do matrimônio e sobre o “ato de repúdio”, é evidente que Ele vê com clareza a contradição fundamental que o direito matrimonial do Antigo Testamento escondia em si, acolhendo a poligamia efetiva, isto é, a instituição das concubinas ao lado das esposas legais, ou o direito da convivência com a escrava1. Pode-se dizer que tal direito, enquanto combatia o pecado, ao mesmo tempo continha em si, e até protegia as “estruturas sociais do pecado”, constituindo a legalização dele. Nestas circunstâncias, impunha-se a necessidade de o sentido ético essencial do mandamento “não cometerás adultério” se sujeitar a uma revalorização fundamental. No Sermão da Montanha, Cristo desvela novamente aquele sentido, isto é, ultrapassando-lhe as estreitezas tradicionais e legais.

2. Vale talvez a pena acrescentar que, na interpretação vétero-testamentária, quanto a proibição do adultério é assinalada —poder-se-ia dizer— pelo compromisso com a concupiscência do corpo, tanto é claramente determinada a posição a respeito dos desvios sexuais. O que é confirmado pelas relativas prescrições, que prevêem a pena capital para a homossexualidade e para a bestialidade. Quanto ao comportamento de Onã, filho de Judá (de quem toma origem a denominação “onanismo”) a Sagrada Escritura diz que “… desagradou ao Senhor, que também lhe deu a morte”iii.

O direito matrimonial do Antigo Testamento, na sua mais ampla generalidade, coloca em primeiro lugar a finalidade procriativa do matrimônio, e nalguns casos procura demonstrar um tratamento jurídico paritário da mulher e do homem —por exemplo, a respeito da pena pelo adultério, é explicitamente dito: “Se um homem cometer adultério com a mulher doutro homem, com a mulher do seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos com a morte”iv— mas, no conjunto, julga antecipadamente a mulher tratando-a com maior severidade.

3. Seria necessário talvez pôr em relevo a linguagem desta legislação, que, como sempre em tal caso, é linguagem objetivamente da sexologia daquele tempo. É também linguagem importante para o conjunto das reflexões sobre a teologia do corpo. Encontramos nela a específica confirmação do caráter de pudor que circunda o que, no homem, pertence ao sexo. Mais, o que é sexual é em certo sentido considerado como “impuro” especialmente quando se trata das manifestações fisiológicas da sexualidade humana. O “descobrir a nudez”v é estigmatizado como o equivalente de um ilícito ato sexual realizado; já a mesma expressão parece aqui bastante eloqüente. Não há dúvida que o legislador procurou servir-se da terminologia correspondente à consciência e aos costumes da sociedade contemporânea. Assim, pois, a linguagem da legislação vétero-testamentária deve confirmar-nos na convicção de que não só são conhecidas ao legislador e à sociedade a fisiologia do sexo e as manifestações somáticas da vida sexual, mas também que estas são avaliadas de modo determinado. Difícil é escapar-se à impressão de que tal avaliação tinha caráter negativo. Isto não anula certamente a verdade de que temos conhecimento pelo Livro do Gênesis, nem se pode inculpar o Antigo Testamento —e, entre outros, também os Livros legislativos— de ser como precursor do maniqueísmo. O juízo lá expresso a respeito do corpo e do sexo não é “negativo” nem tão severo, mas antes marcado por um objetivismo motivado pelo intento de pôr ordem nesta esfera da vida humana. Não se trata diretamente da ordem do “coração”, mas da ordem de toda a vida social, em cuja base estão, desde sempre, o matrimônio e a família.

4. Se se toma em consideração a problemática “sexual” no conjunto, convém talvez ainda dirigir brevemente a atenção para outro aspecto, isto é, para o laço existente entre a moralidade, a lei e a medicina, posto em evidência nos respectivos Livros do Antigo Testamento. Estes contêm não poucas prescrições práticas quanto ao âmbito da higiene, ou antes o da medicina, marcado mais pela experiência que pela ciência, segundo o nível então atingidovi. E, por outro lado, o laço experiência-ciência é notoriamente ainda atual. Nesta vasta esfera de problemas, a medicina acompanha sempre de perto a ética; e a ética, como também a teologia, procura a colaboração dela.

5. Quando Cristo no Sermão da Montanha pronuncia as palavras: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério”, e imediatamente acrescenta: “Mas eu digo-vos…”, é claro que deseja reconstruir na consciência dos seus ouvintes o significado ético próprio deste mandamento, apartando-se da interpretação dos “doutores”, especialistas oficiais da lei. Mas, além da interpretação proveniente da tradição, o Antigo Testamento oferece-nos ainda outra tradição para compreender o mandamento “não cometereis adultério”. E é a tradição dos Profetas. Estes, fazendo referência ao “adultério”, queriam recordar “a Israel e a Judá” que o seu pecado maior era o abandono do único e verdadeiro Deus em favor do culto a vários ídolos, que o povo eleito, em contato com os outros povos, tinha feito próprios facilmente e de modo inconsiderado. Assim, portanto, é característica própria da linguagem dos Profetas mais a analogia com o adultério que o adultério mesmo; todavia, tal analogia serve para compreender também o mandamento “não cometerás adultério” e a interpretação dele, cuja carência se nota nos documentos legislativos. Nos oráculos dos Profetas —particularmente de Isaías, Oséias e Ezequiel— o Deus da Aliança apresenta-se muitas vezes como Esposo, e o amor com que ele se uniu a Israel pode e deve identificar-se com o amor esponsal dos cônjuges. E eis que Israel, por causa da sua idolatria e do abandono do Deus-Esposo, comete diante d’Ele uma traição que se pode comparar à da mulher quanto ao marido: comete, precisamente, “adultério”.

6. Os Profetas, com palavras eloqüentes e muitas vezes mediante imagens e semelhanças extraordinariamente plásticas, apresentam quer o amor de Javé-Esposo quer a traição de Israel-Esposa que se abandona ao adultério. É tema, este, que deverá ser ainda retomado nas nossas reflexões, isto é, quando submetermos a análise o problema do “Sacramento”; mas urge já agora tocá-lo ao de leve, enquanto é necessário para compreender as palavras de Cristo, segundo Mt 5, 27-28, e compreender aquela renovação do ethos, que estas palavras encerram: “Mas eu digo-vos…”. Se, por um lado, Isaíasvii, nos seus textos, se apresenta no ato de pôr em ressalto sobretudo o amor de Javé-Esposo, que, em todas as circunstâncias, vai ao encontro da Esposa, passando além de todas as suas infidelidades, por outro lado Oséias e Ezequiel abundam em comparações, que esclarecem sobretudo a fealdade e o mal moral do adultério cometido pela Esposa-Israel.

Na próxima meditação, procuraremos penetrar mais profundamente ainda nos textos dos profetas, para esclarecer ulteriormente o conteúdo que, na consciência dos ouvintes do Sermão da Montanha, correspondia ao mandamento: “não cometerás adultério”.

1 Apesar de o Livro do Gênesis apresentar o matrimônio monogâmico de Adão, de Set e de Noé como modelo para ser imitado, e de parecer condenar a bigamia, que surge unicamente nos descendentes de Caim (cf. Gn 4, 19), contudo a vida dos Patriarcas fornece outros exemplos contrários. Abraão observa as prescrições da lei de Hammurabi, que permitia desposar segunda mulher no caso de esterilidade da primeira; e Jacó tinha duas mulheres e duas concubinas (cf. Gn 30, 1-19).

O Livro do Deuteronômio admite a existência legal da bigamia (cf. Dt 21, 15-17) e até da poligamia, advertindo o rei que não tenha mulheres demais (cf. Dt 17, 17); confirma também a instituição das concubinas —prisioneiras de guerra (cf. Dt 21, 10-14) ou escravas (cf. Êx 21, 7-11). (cf. R. De Vaux, Ancient Israel. Its Life and Institutions, London 1976, Darton, Longman, Todd; pp. 24-25, 83). Não há no Antigo Testamento qualquer explícita menção sobre o dever da monogamia, se bem que a imagem apresentada pelos livros posteriores mostre que ela prevalecia na prática social (cf., por ex., os Livros sapienciais, exceto Eclo 37, 11; Tb).

iMt 5, 27.

ii Cf. por exemplo Dt 21, 10-13; Nm 30, 7-16; Dt 24, 1-4; Dt 22, 13-21; Lv 20, 10-21 e outros.

iiiGn 38, 10.

ivLv 20, 10.

v Cf., por ex., Lv 20, 11.17-21.

vi Cf., por ex., Lv 12, 1-6; 15, 1-28; Dt 21, 12-13.

vii Cf., por ex., Is 54; 62, 1-5.