1. Prosseguindo o nosso ciclo, retomamos hoje o Sermão da Montanha, precisamente o enunciado: “Todo aquele que olha para uma mulher com mau desejo já cometeu adultério com ela em seu coração”i.
Na Sua conversa com os fariseus, Jesus, referindo-se ao “princípio”ii, pronunciou as seguintes palavras a respeito do libelo de repúdio: “Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim”iii. Esta frase compreende indubiamente uma acusação. “A dureza do coração“1 indica o que, segundo o ethos do povo do Antigo Testamento, fundara a situação contrária ao original desígnio de Deus-Javé segundo Gênesis 2, 24. E é lá que é preciso buscar a chave para interpretar toda a legislação de Israel no campo do matrimônio e, em sentido mais lato, no conjunto das relações entre homem e mulher. Falando da “dureza do coração”, Cristo acusa, por assim dizer, o inteiro “sujeito interior” que é responsável pela deformação da Lei. No Sermão da Montanhaiv, faz uma referência ao “coração”, mas as palavras aqui pronunciadas não parecem só de acusação.
2. Devemos refletir uma vez mais sobre elas, inserindo-as o mais possível na sua dimensão “histórica”. A análise até agora feita, tendente a fazer compreender “o homem da concupiscência” no seu momento genético, quase no ponto inicial da sua história entrelaçada com a teologia, constitui ampla introdução, sobretudo antropológica, ao trabalho que ainda é preciso empreender. A sucessiva etapa da nossa análise deverá ser de caráter ético. O Sermão da Montanha, e em particular a passagem que escolhemos como centro das nossas análises, faz parte da proclamação do novo ethos: o ethos do Evangelho. No ensinamento de Cristo, ele está profundamente ligado com a consciência do “princípio”, portanto com o mistério da criação na sua original simplicidade e riqueza; e, ao mesmo tempo, o ethos, que proclama Cristo no Sermão da Montanha, é realisticamente dirigido para o “homem histórico”, tornado o homem da concupiscência. A tríplice concupiscência, de fato, é herança de toda a humanidade, e o “coração” humano realmente participa dela. Cristo, que sabe “o que há em cada homem”v, não pode falar de outro modo, senão com semelhante consciência. Deste ponto de vista, nas palavras de Mateus 5, 27-28 não prevalece a acusação mas o juízo: juízo realista sobre o coração humano, juízo que por um lado tem fundamento antropológico e, por outro, caráter diretamente ético. Para o ethos do Evangelho é juízo constitutivo.
3. No Sermão da Montanha, Cristo dirige-se diretamente ao homem que pertence a uma sociedade bem definida. Também o Mestre pertence a essa sociedade, a esse povo. Portanto, é necessário procurar nas palavras de Cristo referência aos fatos, às situações e às instituições, com que estava cotidianamente familiarizado. É necessário submetermos tais referências a uma análise pelo menos sumária, para que se manifeste mais claramente o significado ético das palavras de Mateus 5, 27-28. Todavia, com estas palavras, Cristo dirige-se também, de modo indireto mas real, a todo o ser “histórico” (entendendo este adjetivo sobretudo em função teológica). E este homem é precisamente o “homem da concupiscência”, cujo mistério e cujo coração são conhecidos por Cristo (“Ele próprio conhecia o interior de cada homem”vi). As palavras do Sermão da Montanha consentem-nos estabelecer um contato com a experiência interior deste homem, quase a toda a latitude e longitude geográfica, nas várias épocas, nos diversos condicionamentos sociais e culturais. O homem do nosso tempo sente-se chamado pelo nome por este enunciado de Cristo, não menos que o homem de “então”, a quem o Mestre diretamente se dirigia.
4. Nisto reside a universalidade do Evangelho, que não é de fato uma generalização. Talvez exatamente neste enunciado de Cristo, que sujeitamos aqui a análise, isto se manifeste com particular clareza. Em virtude deste enunciado, o homem de todos os tempos e todos os lugares sente-se chamado, de maneira adequada, concreta e irrepetível: porque exatamente Cristo faz apelo ao “coração” humano, que não pode sujeitar-se a nenhuma generalização. Com a categoria do “coração”, cada um é individuado singularmente mais ainda que pelo nome, é atingido naquilo que o determina de modo único e irrepetível, é definido na sua humanidade “a partir de dentro”.
5. A imagem do homem da concupiscência diz respeito, primeiro que tudo, ao seu íntimovii. A história do “coração” humano depois do pecado original está escrita sob a pressão da tríplice concupiscência, a que se liga também a mais profunda imagem do ethos nos seus vários documentos históricos. Todavia, aquele íntimo é também a força que decide do comportamento humano “exterior”, e também da forma de múltiplas estruturas e instituições a nível de vida social. Se destas estruturas e instituições deduzimos os conteúdos do ethos, nas suas várias formulações históricas, sempre encontramos este aspecto íntimo, próprio da imagem interior do homem. Esta, de fato, é o elemento mais essencial. As palavras de Cristo no Sermão da Montanha, especialmente as de Mateus 5, 27-28, indicam-no de modo inequivocável. Nenhum estudo sobre o ethos humano pode passar ao lado delas com indiferença.
Por isso, nas nossas sucessivas reflexões, procuraremos submeter a uma análise mais particularizada aquele enunciado de Cristo, que diz: “Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração” (ou: “já a tornou adúltera no seu coração”).
Para compreender melhor este texto, analisaremos primeiro cada uma das suas partes, com o fim de obter depois mais aprofundada visão global. Tomaremos em consideração não só os destinatários de então, que ouviram com os próprios ouvidos o Sermão da Montanha, mas também, quanto possível, os contemporâneos, os homens do nosso tempo.
1 O termo grego “sklérokardia” foi forjado pelos Setenta para exprimir o que no hebraico significava “incircuncisão de coração” (cf. por ex.: Dt 10, 16; Jr 4, 4; Eclo 3, 26 s.), que, na tradução literal do Novo Testamento, aparece uma só vez (At 7, 51).
A “incircuncisão” significava o “paganismo”, a “impudicícia”, a “distância que separa da Aliança com Deus”; a “incircuncisão do coração” exprimira a indômita obstinação em opor-se a Deus. Confirma-o a apóstrofe do diácono Estêvão: “Homens de cerviz dura, incircuncisos de corações e de ouvidos, sempre vos opondes ao Espírito Santo; como foram os vossos pais, assim sois vós também” (At 7, 51).
É necessário, portanto, entender a “dureza de coração” em tal contexto filológico.
iMt 5, 28.
ii Cf. as análises precedentes.
iiiMt 19, 8.
ivMt 5, 27-28.
vJo 2, 25. Cf. Ap 2, 23: “Aquele que sonda os rins e o coração…”; At 1, 24: “Senhor, que conheces o coração de todos…” (kardiognostes).
viJo 2, 25.
vii “Do coração procedem os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfêmias. Eis o que torna o homem impuro…” (Mt 15, 19-20).