1. O corpo humano na sua original masculinidade e feminilidade, segundo o mistério da criação —como sabemos pela análise de Gênesis 2, 23-25— não é só fonte de fecundidade, isto é, de procriação, mas desde “o princípio” tem caráter esponsal: quer dizer, é capaz de exprimir o amor com que o homem-pessoa se torna dom verificando assim o profundo sentido do próprio ser e do próprio existir. Nesta sua peculiaridade, o corpo é a expressão do espírito e é chamado, no mistério mesmo da criação, a existir na comunhão das pessoas “à imagem de Deus” . Ora, a concupiscência “que vem do mundo” —trata-se diretamente da concupiscência do corpo— limita e deforma aquele modo objetivo de existir do corpo, de que o homem se tornou participante. O “coração” humano experimenta o grau desta limitação ou deformação, sobretudo no âmbito das relações recíprocas homem-mulher. Exatamente na experiência do “coração” a feminilidade e a masculinidade, nas suas relações recíprocas, parecem não ser já a expressão do espírito que tende para a comunhão pessoal, e ficam só objeto de atração, em certo sentido, como acontece “no mundo” dos seres vivos que, da mesma maneira que o homem, receberam a bênção da fecundidadei.
2. Tal semelhança está certamente incluída na obra da criação; confirma-o também Gênesis 2 e particularmente o versículo 24. Todavia, o que formava o substrato “natural”, somático e sexual, daquela atração, já exprimia plenamente no mistério da criação a chamada do homem e da mulher à comunhão pessoal; pelo contrário, depois do pecado, na nova situação de que fala Gênesis 3, tal expressão enfraqueceu-se e ofuscou-se: como se diminuísse ao delinearem-se as relações recíprocas, ou como se fosse repelida para outro plano. O substrato natural e somático da sexualidade humana manifestou-se com força quase autógena, marcada por certo “constrangimento do corpo”, ativo segundo uma dinâmica própria, que limita a expressão do espírito e a experiência da troca do dom da pessoa. As palavras de Gênesis 3, 16 dirigidas à primeira mulher parecem indicá-lo de modo bastante claro (“Procurarás com paixão aquele a quem estarás sujeita”).
3. O corpo humano na sua masculinidade/feminilidade quase perdeu a capacidade de exprimir esse amor, em que o homem-pessoa se torna dom, conforme a mais profunda estrutura e finalidade da sua existência pessoal, como já observamos nas precedentes análises. Se aqui não formulamos este juízo de modo absoluto e lhe acrescentamos a expressão adverbial “quase”, fazemo-lo porque a dimensão do dom —isto é, a capacidade de exprimir o amor com que o homem, mediante a sua feminilidade ou masculinidade, se torna dom para o outro— nalguma medida não cessou de trespassar e plasmar o amor que nasce no coração humano. O significado esponsal do corpo não se tornou totalmente estranho àquele coração: não ficou nisso totalmente sufocado por parte da concupiscência, mas só habitualmente ameaçado. O “coração” tornou-se lugar de combate entre o amor e a concupiscência. Quanto mais a concupiscência domina o coração, tanto menos este experimenta o significado esponsal do corpo, e tanto menos se torna sensível ao dom da pessoa, que nas relações recíprocas do homem e da mulher exprime exatamente aquele significado. Certamente, também aquele “desejo” de que fala Cristo em Mateus 5, 27-28, aparece no coração humano em formas múltiplas: nem sempre é evidente e manifesto, às vezes é obscuro, de maneira que se faz chamar “amor”, ainda que mude o seu autêntico aspecto e obscureça a limpidez do dom na relação recíproca das pessoas. Quer acaso isto dizer que tenhamos o dever de desconfiar do corpo humano? Não! Quer somente dizer que devemos manter o domínio.
4. A imagem da concupiscência do corpo, que deriva da presente análise, tem clara referência à imagem da pessoa, com que ligamos as nossas precedentes reflexões sobre o tema do significado esponsal do corpo. O homem, de fato, como pessoa, é na terra “a única criatura que Deus quis por si mesma” e, ao mesmo tempo, aquele que não pode “encontrar-se plenamente senão através de um dom sincero de si”1. A concupiscência em geral —e a concupiscência do corpo em particular— abrange precisamente este “dom sincero”: subtrai ao homem, poder-se-ia dizer, a dignidade do dom, que é expressa pelo seu corpo mediante a feminilidade e a masculinidade, e em certo sentido “despersonaliza” o homem fazendo-o objeto “para o outro”. Em vez de ser “juntamente com o outro” —sujeito na unidade, melhor na sacramental “unidade do corpo”— o homem torna-se objeto para o homem: a mulher para o varão e vice-versa. As palavras de Gênesis 3, 16 —e, antes ainda, de Gênesis 3, 7— o atestam, com toda a clareza do contraste, a respeito de Gênesis 2, 23-25.
5. Infringindo a dimensão do dom recíproco do homem e da mulher, a concupiscência põe também em dúvida que seja querido pelo Criador cada um “por si mesmo”. A subjetividade da pessoa cede, em certo sentido, à objetividade do corpo. Por causa do corpo, o homem torna-se objeto para o homem —a mulher para o varão e vice-versa. A concupiscência significa, por assim dizer, que as relações pessoais do homem e da mulher estão unilateral e redutivamente vinculadas ao corpo e ao sexo, no sentido de tais relações se tornarem quase incapazes de acolher o dom recíproco da pessoa. Não contêm nem tratam a feminilidade/masculinidade segundo a plena dimensão da subjetividade pessoal nem constituem a expressão da comunhão, mas permanecem unilateralmente determinadas “pelo sexo”.
6. A concupiscência comporta a perda da liberdade interior do dom. O significado esponsal do corpo humano está precisamente ligado a esta liberdade. O homem pode tornar-se dom —ou seja, o varão e a mulher podem existir na relação do dom recíproco de si— se cada um deles se domina a si mesmo. A concupiscência, que se manifesta como “constrangimento ‘sui generis’ do corpo“, limita interiormente e restringe o autodomínio de si, e por isso mesmo, em certo sentido, torna impossível a liberdade interior do dom. Juntamente com isto, sofre ofuscamento também a beleza, que o corpo humano possui no seu aspecto masculino e feminino, como expressão do espírito. Fica o corpo como objeto de concupiscência e portanto como “terreno de apropriação” do outro ser humano. A concupiscência, de per si, não é capaz de promover a união como comunhão de pessoas. Sozinha, ela não une, mas apropria-se. A relação de dom muda-se em relação de apropriação.
Nessa altura, interrompamos hoje as nossas reflexões. O último problema aqui tratado é de tão grande importância, e é além disso tão sutil do ponto de vista da diferença entre o autêntico amor (isto é, entre a “comunhão de pessoas”) e a concupiscência, que devemos retomá-lo no nosso próximo encontro.
1Gaudium et spes, 24: “Mais ainda, quando o Senhor Jesus pede ao Pai ‘que todos sejam um, como nós também somos um’ (Jo 17, 21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana e sugere-nos que existe certa semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus, na verdade e na caridade. Esta semelhança mostra que o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo”.
i Cf. Gn 1.