31ª. A tríplice concupiscência limita o significado esponsal do corpo – 25/06/1980

1. A análise que fizemos durante a precedente reflexão estava centrada nas seguintes palavras de Gênesis 3, 16, dirigidas por Deus-Javé à primeira mulher depois do pecado original: “Para com o teu marido será o teu instinto, e ele dominar-te-á”i. Chegamos a concluir que estas palavras contêm um adequado esclarecimento e uma profunda interpretação da vergonha originalii, tornada parte do homem e da mulher juntamente com a concupiscência. A explicação desta vergonha não se há-de procurar no corpo mesmo, na sexualidade somática de ambos, mas remonta às transformações mais profundas sofridas pelo espírito humano. Precisamente este espírito está de modo particular consciente de quão insaciável ele é da mútua unidade entre o homem e a mulher. E tal consciência, por assim dizer, torna as culpas ao corpo, tira-lhes a simplicidade e pureza do significado conexo com a inocência original do ser humano. Em relação com essa consciência, a vergonha é experiência secundária: se por um lado revela o momento da concupiscência, ao mesmo tempo pode premunir das conseqüências do tríplice elemento da concupiscência. Pode-se mesmo dizer que o homem e a mulher, por meio da vergonha, quase permanecem no estado da inocência original. Imediatamente, de fato, tomam consciência do significado esponsal do corpo e tendem a resguardá-lo, por assim dizer, da concupiscência, como também procuram manter o valor da comunhão, ou seja, da união das pessoas na “unidade do corpo”.

2. Gênesis 2, 24 fala com discrição mas também com clareza da “união dos corpos” no sentido da autêntica união de pessoas: “O homem… unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne”; e do contexto conclui-se que esta união provém de uma escolha, dado que o homem “abandona” pai e mãe para unir-se à sua mulher. Tal união das pessoas comporta que elas se tornam “uma só carne”. Partindo desta expressão “sacramental”, correspondente à comunhão das pessoas —do homem e da mulher— na original chamada de ambos à união conjugal, podemos compreender melhor a mensagem própria de Gênesis 3, 16; isto é, podemos estabelecer e quase reconstruir em que está o desequilíbrio, mesmo a peculiar deformação da relação original interpessoal de comunhão, a que aludem as palavras “sacramentais” de Gênesis 2, 24.

3. Pode-se, portanto, dizer —aprofundando Gênesis 3, 16— que enquanto por um lado o “corpo”, constituído na unidade do sujeito pessoal, não cessa de estimular os desejos da união pessoal, precisamente por causa da masculinidade e feminilidade (“para com o teu marido será o teu instinto”), por outro lado e ao mesmo tempo a concupiscência dirige a seu modo estes desejos; isto é confirmado pela expressão “Ele te dominará”. A concupiscência da carne orienta porém tais desejos para a satisfação do corpo, muitas vezes a preço de uma autêntica e plena comunhão das pessoas. Em tal sentido, dever-se-ia prestar atenção à maneira como são distribuídas as acentuações semânticas nos versículos de Gênesis 3; de fato, embora estejam dispersas, revelam coerência íntima. O homem é aquele que parece sentir vergonha do próprio corpo com particular intensidade: “cheio de medo, porque estou nu, escondi-me”iii; estas palavras põem em relevo o caráter verdadeiramente metafísico da vergonha. Ao mesmo tempo, o homem é aquele pelo qual a vergonha, unida à concupiscência, se tornará impulso para “dominar” a mulher (“ele te dominará”). Em seguida, a experiência de tal domínio manifesta-se mais diretamente na mulher como o desejo insaciável de uma união diversa. Desde o momento em que o homem a “domina”, à comunhão de pessoas —feita de plena unidade espiritual dos dois sujeitos que se dão reciprocamente— sucede uma diversa relação mútua, isto é, uma relação de posse do outro à maneira de objeto do próprio desejo. Se tal impulso prevalece por parte do homem, os instintos que a mulher dirige para ele, segundo a expressão de Gênesis 3, 16, podem assumir —e assumem— caráter análogo. E talvez por vezes se antecipem ao “desejo” do homem, ou tendam até a despertá-lo e a dar-lhe impulso.

4. O texto de Gênesis 3, 16 parece indicar sobretudo o homem como aquele que “deseja”, analogamente ao texto de Mateus 5, 27-28, que forma o ponto de partida para as presentes meditações; apesar disso, quer o homem quer a mulher tornaram-se um “ser humano” sujeito à concupiscência. E por isso ambos têm como sorte a vergonha, que com a sua profunda ressonância toca o íntimo quer da personalidade masculina quer da feminina, ainda que de maneira diversa. O que aprendemos de Gênesis 3 consente-nos apenas desenhar esta duplicidade, mas já só esses traços são muito significativos. Acrescentemos que, tratando-se de um texto tão arcaico, ele é surpreendentemente eloqüente e agudo.

5. Uma adequada análise de Gênesis 3 leva portanto à conclusão, segundo a qual a tríplice concupiscência, incluída a do corpo, traz consigo uma limitação do significado esponsal do corpo mesmo, de que o homem e a mulher eram participantes no estado da inocência original. Quando falamos do significado do corpo, fazemos antes de tudo referência à plena consciência do ser humano, mas incluímos também toda a efetiva experiência do corpo na sua masculinidade e feminilidade, e, em qualquer caso, a constante predisposição para tal experiência. O “significado” do corpo não é só alguma coisa de conceitual. Sobre isto já chamamos suficientemente a atenção nas precedentes análises. O “significado do corpo” é ao mesmo tempo o que determina a atitude: é o modo de viver o corpo. É a medida, que o homem interior, isto é, aquele “coração”, ao qual se refere Cristo no Sermão da Montanha, aplica ao corpo humano quanto à sua masculinidade-feminilidade (portanto, quanto à sua sexualidade).

Esse “significado” não modifica a realidade em si mesma, o que o corpo humano é e não deixa de ser na sexualidade que lhe é própria, independentemente dos estados da nossa consciência e das nossas experiências. Todavia, esse significado puramente objetivo do corpo e do sexo, fora do sistema das reais e concretas relações interpessoais entre o homem e a mulher, é, em certo sentido, “não histórico”. Nós, pelo contrário, na presente análise —em conformidade com as fontes bíblicas— temos sempre em conta a historicidade do homem (também pelo fato de partirmos da sua pré-história teológica). Trata-se aqui, obviamente, de uma dimensão interior, que foge aos critérios externos da historicidade, mas que todavia pode ser considerada “histórica”. Mais, ela está precisamente na base de todos os fatos que formam a história do homem —também a história do pecado e da salvação— e assim revelam a profundidade e a raiz mesma da sua historicidade.

6. Quando, neste vasto contexto, falamos da concupiscência como de limitação, infração ou mesmo deformação do significado esponsal do corpo, referimo-nos sobretudo às precedentes análises, que tratavam do estado da inocência original, isto é, da pré-história teológica do homem. Ao mesmo tempo, temos na mente a medida que o homem “histórico”, com o seu “coração”, aplica ao próprio corpo a respeito da sexualidade masculina-feminina. Esta medida não é alguma coisa de exclusivamente conceitual: é o que determina as atitudes e decide em linha de princípio sobre o modo de viver o corpo.

Certamente, a isto se refere Cristo no Sermão da Montanha. Procuramos aqui aproximar-nos das palavras tiradas de Mateus 5, 27-28 no limiar mesmo da história teológica do homem, tomando-as portanto em consideração já no contexto de Gênesis 3. A concupiscência como limitação, infração ou mesmo deformação do significado esponsal do corpo, pode ser verificada de maneira especialmente clara (não obstante a concisão da narrativa bíblica) nos dois progenitores, Adão e Eva; graças a eles pudemos encontrar o significado esponsal do corpo e tornar a descobrir em que consiste ele como medida do “coração” humano, de maneira que plasme a forma original da comunhão das pessoas. Se na experiência pessoal delas (que o texto bíblico nos permite seguir), aquela forma original sofreu desequilíbrio e deformação —como procuramos demonstrar por meio da análise da vergonha— devia sofrer uma deformação também o significado esponsal do corpo, que na situação da inocência original constituía a medida do coração de ambos, do homem e da mulher. Se conseguirmos reconstruir em que consiste esta deformação, teremos também a resposta à nossa pergunta: ou seja, em que coisa consiste a concupiscência da carne e que coisa constitui a sua especificidade teológica e ao mesmo tempo antropológica. Parece que uma resposta, teológica e antropologicamente adequada, importante por aquilo que diz respeito ao significado das palavras de Cristo no Sermão da Montanhaiv, pode já ser tirada do contexto de Gênesis 3 e de toda a narrativa javista, que precedentemente nos permitiu clarificar o significado esponsal do corpo humano.

iGn 3, 16.

ii Cfr. Gn 3, 7.

iiiGn 3, 10.

ivMt 5, 27-28.