22ª. O ciclo do conhecimento-geração e a perspectiva da morte – 26/03/1980

1. Aproxima-se do fim o ciclo de reflexões com que procuramos seguir a observação de Cristo que nos foi transmitida por Mateusi e Marcosii: Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e disse: “Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão os dois uma só carne?”iii.A união conjugal, no Livro do Gênesis, é definida como “conhecimento”: Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz… e disse: “Gerei um homem com o auxílio do Senhor”iv. Procuramos já, nas nossas precedentes meditações, esclarecer o conteúdo daquele “conhecimento” bíblico. Com ele o homem, isto é, o varão e a mulher, não só impõe o próprio nome, como fez impondo os nomes a outros seres vivos (animalia) tomando assim posse deles, mas “conhece” no sentido de Gênesis 4, 1 (e doutras passagens da Bíblia), isto é, realiza o que o nome “homem” exprime: realiza a humanidade no novo homem gerado. Em certo sentido, portanto, realiza-se a si mesmo, quer dizer, o homem-pessoa.

2. Deste modo, fecha-se o ciclo bíblico do “conhecimento-geração”. Este ciclo do “conhecimento” é constituído pela união das pessoas no amor, que lhes permite unirem-se tão intimamente entre si que se tornam uma só carne. O Livro do Gênesis revela-nos plenamente a verdade deste ciclo. O homem, varão e mulher, que, mediante o “conhecimento” de que fala a Bíblia, concebe e gera um ser novo, semelhante a ele, a quem pode impor o nome de “homem” (“gerei um homem”), toma, por assim dizer, posse da humanidade mesma, ou melhor, retoma-a em posse. Todavia, isto acontece de modo diverso de quando tomou posse de todos os outros seres vivos (animalia), de quando lhes impôs o nome. Com efeito, então tinha-se ele tornado o senhor deles, tinha começado a cumprir o conteúdo do mandato do Criador: Enchei e dominai a terrav.

3. Pelo contrário, a primeira parte do mesmo mandato crescei e multiplicai-vos, enchei a terravi encerra outro conteúdo e indica outro elemento. O varão e a mulher neste “conhecimento”, em que dão início a um ser semelhante a eles, do qual podem ambos dizer, é o osso dos meus ossos e a carne da minha carnevii, são quase juntamente “raptados”, juntamente colocados ambos de posse da humanidade que eles, na união e no “conhecimento” recíproco, querem exprimir novamente, tomar novamente de posse, tirando-a deles mesmos, da própria humanidade, da admirável maturidade masculina e feminina dos seus corpos e enfim —através de toda a seqüência das concepções e das gerações humanas desde o princípio— do mistério mesmo do Criador.

4. Neste sentido, pode-se explicar o “conhecimento” bíblico como “posse”. É possível ver nela algum equivalente bíblico do eros? Trata-se aqui de dois âmbitos conceituais, de duas linguagens: bíblica e platônica; só com grande cautela podem elas ser interpretadas uma pela outra1. Parece, ao contrário, que na revelação original não está presente a idéia da posse da mulher por parte do homem, ou vice-versa, como de um objeto. Por outro lado, é sabido que, baseados na pecaminosidade contraída depois do pecado original, o homem e a mulher devem reconstruir, com canseiras, o significado do dom recíproco desinteressado. Este será o tema das nossas próximas análises.

5. A revelação do corpo, encerrada no Livro do Gênesis, especialmente no capítulo 3º, mostra com impressionante evidência que o ciclo do “conhecimento-geração”, tão profundamente radicado na potencialidade do corpo humano, foi submetido, depois do pecado, à lei do sofrimento e da morte. Deus-Javé diz à mulher: Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre doresviii. O horizonte da morte abre-se diante do homem, juntamente com a revelação do significado generativo do corpo no ato do “conhecimento” recíproco dos cônjuges. E eis que o primeiro homem, varão, impõe à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os vivosix, quando já ele tinha ouvido as palavras da sentença, que determinava toda a perspectiva da existência humana “dentro” do conhecimento do bem e do mal. Esta perspectiva é confirmada pelas palavras: Voltarás à terra de que fostes criado; porque tu és pó e em pó te hás-de tornarx.

O caráter radical dessa sentença é confirmado pela evidência das experiências de toda a história terrena do homem. O horizonte da morte estende-se a toda a perspectiva da vida humana sobre a terra, vida que foi inserida naquele original ciclo bíblico do “conhecimento-geração”. O homem que violou a aliança com o seu Criador, colhendo o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, é por Deus-Javé apartado da árvore da vida: Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da vida, comendo do qual, viva eternamentexi. Deste modo, a vida dada ao homem no mistério da criação não foi tirada, mas restringida pelo limite das concepções, dos nascimentos e da morte, e além disso agravada pela perspectiva da pecaminosidade hereditária; é-lhe, porém, em certo sentido, novamente dada como encargo, no mesmo ciclo sempre a repetir-se. A frase Adão uniu-se a (“conheceu”) Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luzxii é como selo impresso na revelação original do corpo no “princípio” mesmo da história do homem sobre a terra. Esta história forma-se sempre de novo na sua dimensão mais fundamental quase desde o “princípio”, mediante o mesmo “conhecimento-geração”, de que fala o Livro do Gênesis.

6. E assim cada homem traz em si o mistério do seu “princípio” intimamente ligado à consciência do significado generativo do corpo. Gênesis 4, 1-2 parece calar-se sobre o tema da relação que medeia entre o significado generativo e o significado esponsal do corpo. Talvez agora nem seja tempo nem haja lugar para esclarecer esta relação, embora na futura análise isso pareça indispensável. Será necessário, então, levantar de novo as perguntas relacionadas com o aparecimento da vergonha no homem, vergonha da sua masculinidade e da sua feminilidade, anteriormente não experimentada. Neste momento, todavia, isto passa para segunda ordem. No primeiro plano mantém-se, na verdade, o fato de “Adão se ter unido (“conhecido”) a Eva, sua mulher e ela ter concebido e dado à luz”. Este é verdadeiramente o limiar da história do homem. É o seu “princípio” na terra. Sobre este limiar o homem, como varão e mulher, tem a consciência do estado generativo do próprio corpo: a masculinidade encerra em si o significado da paternidade e a feminilidade o da maternidade. Em nome deste significado, um dia dará Cristo resposta categórica à pergunta que lhe fizeram os fariseusxiii. Nós, todavia, penetrando o simples conteúdo desta resposta, procuramos ao mesmo tempo pôr em realce o contexto daquele “princípio”, a que se referiu Cristo. Nele mergulha as raízes a teologia do corpo.

7. A consciência do significado do corpo e a consciência do seu significado generativo tomam contato, no homem, com a consciência da morte, de que trazem em si, por assim dizer, o inevitável horizonte. Todavia, sempre volta na história do homem o ciclo do “conhecimento-geração”, em que a vida luta, sempre de novo, com a inexorável perspectiva da morte, e sempre a domina. É como se a razão desta inflexibilidade da vida, que se manifesta na “geração”, fosse sempre o mesmo “conhecimento”, com que o homem ultrapassa a solidão do próprio ser e, mais ainda, de novo se decide a afirmar tal ser num “outro”. E ambos, homem e mulher, o afirmam no novo homem gerado. Nesta afirmação, o “conhecimento” bíblico parece adquirir uma dimensão ainda maior. Isto é, parece inserir-se naquela “visão” de Deus mesmo, com que termina a primeira narrativa da criação do homem acerca do “varão” e da “mulher” feitos “à imagem de Deus”: Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boaxiv. O homem, não obstante todas as experiências da própria vida, não obstante os sofrimentos, as desilusões de si mesmo, a sua pecaminosidade, e não obstante, enfim, a perspectiva inevitável da morte, coloca todavia sempre de novo o “conhecimento” no “início” da “geração”; ele, assim, dir-se-ia que participa naquela primeira “visão” de Deus mesmo. Deus Criador “viu…, e toda a sua obra a considerou muito boa”. E, sempre de novo, confirma ele a verdade destas palavras.

1 Segundo Platão, o eros é o amor sedento do Belo transcendente e exprime a insaciabilidade tendente ao seu eterno objeto; eleva, portanto, sempre o que é humano para o divino, que é o único a ser capaz de saciar a ansiedade da alma aprisionada na matéria; é amor que não recua diante do maior esforço, para atingir o êxtase da união; portanto é amor egocêntrico, é cobiça, embora dirigida para valores sublimes (cfr. A. Nygren, Erôs et Agapé, Paris 1951, vol. II, pp. 9-10).

No decorrer dos séculos, através de muitas transformações, o significado do eros foi abaixado até assumir notas meramente sexuais. Característico é, a este propósito, o texto de P. Chauchard, que parece mesmo negar ao eros as características do amor humano:

“La cérébralisation de la sexualité ne réside pas dans les trucs techniques ennuyeux, mais dans la pleine reconnaissance de la spiritualité, du fait qu’Erôs n’est humain qu’animé par Agapé et qu’Agapé exige l’incarnation dans Erôs” (P. Chauchard, Vices des vertus, vertus des vices, Paris 1963, p. 147).

A comparação do “conhecimento” bíblico com o eros platônico revela a divergência das duas concepções. A concepção platônica baseia-se na ansiedade do Belo transcendente e na fuga da matéria; a concepção bíblica, pelo contrário, dirige-se à realidade concreta e alheia-se do dualismo do espírito e da matéria, como também da hostilidade específica contra a matéria (“E Deus viu que isto era bom”: Gn 1, 10.12.18.21.25).

Ao passo que o conceito platônico de eros ultrapassa o alcance bíblico do “conhecimento” humano, o conceito contemporâneo parece demasiado restrito. O “conhecimento” bíblico não se limita a satisfazer o instinto ou o gozo hedonístico, mas é ato plenamente humano, dirigido conscientemente para a procriação, e é também a expressão do amor interpessoal (cfr. Gn 29, 20; 1Sm 1, 8; 2Sm 12, 24).

iMt 19, 3-9.

iiMc 10, 1-12.

iiiMt 19, 4-5.

ivGn 4, 1.

v Cfr. Gn 1, 28.

viGn 1, 28.

viiGn 2, 24.

viiiGn 3, 16.

ixGn 3, 20.

xGn 3, 19.

xiGn 3, 22.

xiiGn 4, 1.

xiiiMt 19; Mc 10.

xivGn 1, 31.