1. Na meditação precedente analisamos a frase de Gênesis 4, 1, e em particular o termo “conheceu”, usado no texto original para definir a união conjugal. Fizemos também notar que este “conhecimento” bíblico estabelece uma espécie de arquétipo1 pessoal da corporeidade e sexualidade humanas. Parece isto absolutamente fundamental para compreender o homem, que desde “o princípio” anda à busca do significado do próprio corpo. Este significado está na base da teologia mesma do corpo. O termo “conheceu” = “uniu-se”i sintetiza toda a densidade do texto bíblico até agora analisado. O “homem” que , segundo o Gênesis 4, 1, pela primeira vez conhece a mulher, sua esposa, no ato da união conjugal, é de fato aquele mesmo que, impondo os nomes, isto é, “conhecendo” também, se “diferenciou” de todo o mundo dos seres vivos ou animalia, afirmando-se a si mesmo como pessoa e sujeito. O “conhecimento”, de que fala Gênesis 4, 1, não o afasta nem pode afastar do nível daquele primordial e fundamental autoconhecimento. Portanto —qualquer coisa que dele afirmasse uma mentalidade unilateralmente “naturalista”— em Gênesis 4, 1, não pode tratar-se de uma aceitação passiva da própria determinação por parte do corpo e do sexo, exatamente porque se trata de “conhecimento”.
É, pelo contrário nova descoberta do significado do próprio corpo, descoberta comum e recíproca, assim como comum e recíproca é desde o princípio a existência do homem que “Deus criou varão e mulher”. O conhecimento, que estava na base da solidão original do homem, está agora na base desta unidade do homem e da mulher, cuja clara perspectiva foi encerrada pelo Criador no mistério mesmo da criaçãoii. Neste “conhecimento”, o homem confirma o significado do nome “Eva”, dado à sua esposa, porque ela seria mãe de todos os vivosiii.
2. Segundo Gênesis 4, 1, quem conhece é o homem e quem é conhecido é a mulher-esposa, como se a específica determinação da mulher, através do próprio corpo e sexo, escondesse aquilo que forma a profundidade mesma da sua feminilidade. O varão, porém, é aquele que —depois do pecado— foi o primeiro a sentir a vergonha da nudez e o primeiro que disse: Cheio de medo, porque estou nu, escondi-meiv. Será necessário voltar ainda separadamente ao estado de espírito de ambos, depois da perda da inocência original. Já desde agora, porém, é preciso verificar que, no “conhecimento”, de que fala Gênesis 4, 1, o mistério da feminilidade se manifesta e revela até ao fundo mediante a maternidade como diz o texto: “concebeu e deu à luz”. A mulher apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é concebida e se desenvolve, e dela nasce para o mundo. Assim se revela também até ao fundo o mistério da masculinidade do homem, isto é, o significado gerador e “paterno” do seu corpo2.
3. A teologia do corpo, encerrada no Livro do Gênesis, é concisa e sóbria de palavras. Ao mesmo tempo, encontram nessa expressão conteúdos fundamentais, em certo sentido primários e definitivos. Todos se encontram a seu modo naquele “conhecimento” bíblico. Diferente da do varão é a constituição da mulher; mais, sabemos hoje que é diferente até às determinantes biofisiológicas mais profundas. Manifesta-se exteriormente só em certa medida, na construção e na forma do corpo. A maternidade manifesta tal constituição dentro de si, como particular potencialidade do organismo feminino, que devido à capacidade criadora serve para a concepção e geração do ser humano, com o concurso do varão. O “conhecimento” condiciona a geração.
A geração é perspectiva, que o varão e a mulher inserem no “conhecimento” recíproco dos dois. Por isso ultrapassa ele os limites de sujeito-objeto, quais o varão e a mulher parecem ser reciprocamente, dado indicar o “conhecimento”, por um lado, aquele que “conhece” e, por outro, aquela que é “conhecida” (ou vice-versa). Neste “conhecimento” está também a consumação do matrimônio, o consummatum específico; assim se obtém a consecução da “objetividade” do corpo, escondida nas potencialidades somáticas do varão e da mulher, e ao mesmo tempo a consecução da objetividade do homem que “é” este corpo. Mediante o corpo, a pessoa humana é “marido” e é “esposa”; ao mesmo tempo, neste ato particular de “conhecimento”, por meio da feminilidade e masculinidade pessoais, parece obter-se também a descoberta da “pura” subjetividade do dom: isto é, a mútua realização de si no dom.
4. A procriação faz que “o varão e a mulher (sua esposa)” se conheçam reciprocamente no “terceiro”, originado de ambos. Por isso, este “conhecimento” torna-se descoberta, em certo sentido revelação do novo homem, no qual ambos, varão e mulher, ainda se reconhecem a si mesmos e no qual reconhecem a humanidade de ambos, a imagem viva de ambos. Em tudo isto, que é determinação de ambos por meio dos corpos e dos sexos, o “conhecimento” inscreve um conteúdo vivo e real. Portanto, o “conhecimento”, em sentido bíblico, significa que a determinação “biológica” do homem, por parte do seu corpo e sexo, deixa de ser alguma coisa de passivo, e atinge nível e conteúdo específicos, próprios de pessoas autoconscientes e autodeterminantes; portanto, esse conhecimento comporta especial consciência do significado do corpo humano, ligado à paternidade e à maternidade.
5. Toda a constituição exterior do corpo da mulher, o seu aspecto particular e as qualidades que, juntas à força de um perene atrativo, estão na origem do “conhecimento”, de que fala Gênesis 4, 1-2 (“Adão uniu-se a Eva sua mulher”), encontram-se em união íntima com a maternidade. A Bíblia (e em seguida a liturgia), com a simplicidade que lhe é própria, honra e louva através dos séculos as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaramv. Constituem estas palavras elogio da maternidade, da feminilidade e do corpo feminino na sua expressão típica do amor criador. E são palavras referidas no Evangelho à Mãe de Cristo, Maria, segunda Eva. A primeira mulher, por sua vez, no momento em que primeiro se revelou a maturidade maternal do seu corpo, quando “concebeu e deu à luz”, disse: Gerei um homem com o auxílio do Senhorvi.
6. Estas palavras exprimem toda a profundidade teológica da função de gerar-procriar. O corpo da mulher torna-se lugar da concepção do novo homem3. No seu seio, o homem concebido assume o aspecto humano próprio, antes de ser dado ao mundo. A homogeneidade somática do homem e da mulher, que encontrou a sua primeira expressão das palavras: É o osso dos meus ossos e a carne da minha carnevii é confirmada, por sua vez, pelas palavras da primeira mulher-mãe: “Gerei um homem”. A primeira mulher que deu à luz tem consciência plena do mistério da criação que se renova na geração humana. E tem ainda plena consciência da participação criadora que Deus exerce na geração humana, obra sua e do seu marido, pois diz: “Gerei um homem com auxílio do Senhor”.
Não pode haver nenhuma confusão entre as esferas de ação das causas. Os primeiros progenitores transmitem a todos os pais humanos —mesmo depois do pecado, juntamente com o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e quase no limiar de todas as experiências “históricas”— a verdade fundamental acerca do nascimento do homem à imagem de Deus, segundo as leis naturais. Neste novo homem —nascido da mulher-mãe por obra do homem-pai— reproduz-se cada vez a mesma “imagem de Deus”, daquele Deus que formou a humanidade do primeiro homem: Deus criou o homem à Sua imagem;… Ele os criou homem e mulherviii.
7. Embora existam profundas diferenças entre o estado de inocência original e o estado de pecado hereditário do homem, aquela “imagem de Deus” constitui uma base de continuidade e de unidade. O “conhecimento”, de que fala Gênesis 4, 1, é o ato que origina o ser, isto é, em união com o Criador, estabelece um novo homem na sua existência. O primeiro homem, na sua solidão transcendental, tomou posse do mundo visível, criado para ele, conhecendo e impondo os nomes aos seres vivos (animalia). O mesmo “homem”, como varão e mulher —conhecendo-se reciprocamente nesta específica comunidade-comunhão de pessoas, na qual o homem e a mulher se unem tão estreitamente entre si que se tornam “uma só carne”— constitui a humanidade, isto é, confirma e renova a existência do homem como imagem de Deus. Cada vez, por assim dizer, retomam ambos, homem e mulher, esta imagem indo buscá-la ao mistério da criação e transmitem-na “com a ajuda de Deus-Javé”.
As palavras do Livro do Gênesis, que são testemunho do primeiro nascimento do homem na terra, encerram ao mesmo tempo, em si, tudo o que se pode e deve dizer da dignidade da geração humana.
1 Quanto aos arquétipos, C. G. Jung descreve-os como formas “a priori” de várias funções da alma: percepção de relações, fantasia criadora. As formas enchem-se de conteúdo com materiais da experiência. São elas como inertes, embora se encontrem carregadas de sentimento e de tendência (veja-se sobretudo: “Die psychologischen Aspekte des Mutterarchetypus”, Eranos 6, 1938, pp. 405-409).
Segundo esta concepção, pode-se encontrar um arquétipo na mútua relação varão-mulher, relação que se baseia na realização binária e complementar do ser humano em dois sexos. O arquétipo encher-se-á de conteúdo mediante a experiência individual e coletiva, e pode movimentar a fantasia, criadora de imagens. Seria necessário precisar que o arquétipo: a) não se limita nem se exalta na relação física, mas inclui a relação do “conhecer”; b) está carregado de tendência: desejo-temor, dom-posse; c) o arquétipo, como proto-imagem (“Urbild”) é gerador de imagens (“Bilder”).
O terceiro aspecto permite-nos passar à hermenêutica; em concreto, à dos textos da Escritura e da Tradição. A linguagem religiosa primária é simbólica (cfr. W. Stählin, Symbolon, 1958; I. Macquarrie, God Talk, 1968; T. Fawcett, The Symbolic Language of Religion, 1970). Entre os símbolos, ela prefere alguns radicais ou exemplares, que podemos chamar arquetipais. Ora, entre estes a Bíblia usa o da relação conjugal, concretamente ao nível do “conhecer” descrito.
Um dos primeiros poemas bíblicos, que aplica o arquétipo conjugal às ralações de Deus com o Seu povo, culmina no verbo comentado: “Conhecerás o Senhor” (Os 2, 22: weyadaeta ‘et Yhwh; atenuado em “Conhecerás que eu sou o Senhor” = wydct ky ‘ny Yhwh: Is 49, 23; 60, 16; Ez 16, 62, que são os três poemas “conjugais”). Daqui parte uma tradição literária, que virá a culminar na aplicação paulina de Ef 5, a Cristo e à Igreja; depois passará à tradição patrística e à dos grandes místicos (por exemplo, “Llama de amor viva”, de São João da Cruz).
No tratado “Grundzüge der Literaturund Sprachwissenschaft”, vol. I, Munique 1976, 4ª ed., p. 462, assim se definem os arquétipos: “Imagens e motivos arcaicos, que segundo Jung formam o conteúdo do incônscio coletivo, comum a todos os homens; apresentam símbolos, que em todos os tempos e entre todos os povos tornam vivo, de maneira imaginosa, o que para a humanidade é decisivo quanto a idéias, representações e instintos”.
Freud, quanto parece, não utiliza o conceito de arquétipo. Estabelece uma simbólica ou código de correspondências fixas entre imagens presentes-patentes e pensamentos latentes. O sentido dos símbolos é fixo, embora não único; podem ser redutíveis a um pensamento último irredutível por sua vez, que é habitualmente alguma experiência da infância. Estes são primários e de caráter sexual (mas não lhes chama arquétipos). Veja-se T. Todorov, Théories du symbole, Paris, 1977, pp. 317 s.; além disso, J. Jacoby, Komplex, Archetyp in der Psychologie C. G. Jungs, Zurique, 1957.
2 A paternidade é um dos aspectos da humanidade mais salientes na Sagrada Escritura.
O texto de Gn 5, 3: “Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança” relaciona-se explicitamente com a narrativa da criação do homem (Gn 1, 27; 5, 1) e parece atribuir ao pai terrestre a participação na obra divina de transmitir a vida, e talvez mesmo naquela alegria presente na afirmação: “Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1, 31).
3 Segundo o texto de Gn 1, 26, a “chamada” à existência é ao mesmo tempo transmissão da imagem e da semelhança divina. O homem deve transmitir esta imagem, continuando assim a obra de Deus. A narrativa da geração de Set sublinha este aspecto: “Com 130 anos Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança” (Gn 5, 3).
Uma vez que Adão e Eva eram imagem de Deus, Set herda dos pais esta semelhança para a transmitir aos outros.
Na Sagrada Escritura, porém, cada vocação está unida a uma missão; portanto a chamada à existência é já predestinação à obra de Deus:
“Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei” (Jr 1, 5; cfr. Is 44, 1; 49, 1.5).
Deus é aquele que não só chama à existência, mas sustenta e desenvolve a vida desde o primeiro momento da concepção.
“Sim, fostes Vós que me tirastes do seio materno, sois Vós o meu defensor desde o regaço da minha mãe. A Vós fui entregue logo ao nascer, desde o seio materno sois o meu Deus” (Sl 22, 10.11; cfr. Sl 139, 13-15).
A atenção do autor bíblico centra-se no fato mesmo do dom da vida. O interesse pelo modo como isto se dá é bastante secundário e aparece só nos livros posteriores (cfr. Jó 10, 8.11; 2Mac 7, 22-23; Sb 7, 1-3).
iGn 4, 1-2.
iiGn 1, 27; 2, 23.
iiiGn 3, 20.
ivGn 3, 10.
vLc 11, 27.
viGn 4, 1.
viiGn 2, 23.
viiiGn 1, 27.