1. O Livro do Gênesis faz notar que o homem e a mulher foram criados para o matrimônio: … O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carnei. Deste modo se abre a grande perspectiva criadora da existência humana, que sempre se renova mediante a “procriação” que é “auto-reprodução”. Tal perspectiva está radicada na consciência da humanidade e também na particular compreensão do significado esponsal do corpo, com a sua masculinidade e feminilidade. Homem e mulher, no mistério da criação, constituem dom recíproco. A inocência original manifesta, e ao mesmo tempo determina, o ethos perfeito do dom.
Disto falamos durante o precedente encontro. Por meio do ethos do dom é delineado em parte o problema da “subjetividade” do homem, que é sujeito criado à imagem e semelhança de Deus. Na narrativa da criação (especialmente em Gn 2, 23-25), “a mulher” certamente não é só “objeto” para o homem, permanecendo embora ambos, um diante da outra, em toda a plenitude da própria objetividade de criaturas, como “carne da minha carne e osso dos meus ossos”, como varão e mulher, ambos nus. Só a nudez, que torna “objeto” a mulher diante do homem ou vice-versa, é fonte de vergonha. “Não sentiam vergonha”, quer dizer que a mulher não era para o homem “objeto” nem ele para ela. A inocência interior como “pureza de coração”, em certo modo, tornava impossível que dalguma maneira um fosse baixado pelo outro ao nível de mero objeto. Se “não sentiam vergonha”, quer dizer que estavam unidos pela consciência do dom, tinham recíproca consciência do significado esponsal dos seus corpos, em que se exprimia a liberdade do dom e se manifestava toda a interior riqueza da pessoa com o sujeito. Esta recíproca compenetração do “eu” das pessoas humanas, do homem e da mulher, parece excluir subjetivamente qualquer “redução a objeto”. Revela-se nisto o perfil subjetivo daquele amor, do qual por outro lado se pode dizer que “é objeto” até ao fundo, uma vez que se alimenta da mesma “objetividade” recíproca do dom.
2. O homem e a mulher, depois do pecado de origem, perderão a graça da inocência original. A descoberta do significado esponsal do corpo deixará de ser para eles simples realidade da revelação e da graça. Todavia, esse significado ficará como dever imposto ao homem pelo ethos do dom, inscrito no fundo do coração humano, como eco longínquo da inocência original. Desse significado esponsal formar-se-á o amor humano na verdade interior e na sua autenticidade subjetiva. E o homem —mesmo através do véu da vergonha— nele se descobrirá continuamente a si mesmo como guarda do mistério do sujeito, isto é, da liberdade do dom, de tal maneira que a defenderá de qualquer redução a posições de puro objeto.
3. Por agora, todavia, encontramo-nos diante do limiar da história terrestre do homem. O homem e a mulher não o transpuseram ainda no sentido da consciência do bem e do mal. Estão mergulhados no mistério mesmo da criação, e a profundidade deste mistério, oculto no coração deles, é a inocência, a graça, o amor e a justiça; Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a muito boaii. O homem aparece no mundo visível como a mais alta expressão do dom divino, pois inclui em si a dimensão interior do dom. E com esta traz ao mundo a sua particular semelhança com Deus, graças à qual ele transcende e domina também a sua “visibilidade” no mundo, a sua corporeidade, a sua masculinidade ou feminilidade, e a sua nudez. Reflexo desta semelhança é também a consciência primordial do significado esponsal do corpo, consciência penetrada pelo mistério da inocência original.
4. Assim, nesta dimensão, constitui-se um primordial sacramento, entendido como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o mundo invisível oculto em Deus desde a eternidade. E este é o mistério da Verdade e do Amor, o mistério da vida divina, da qual o homem participa realmente. Na história do homem, é a inocência original que inicia esta participação e é também fonte da felicidade original. O sacramento, como sinal visível, constitui-se com o homem, enquanto “corpo”, mediante a sua “visível” masculinidade e feminilidade. O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele.
5. Portanto, no homem criado à imagem de Deus foi revelada, em certo sentido, a sacramentalidade da criação, a sacramentalidade do mundo. O homem, com efeito, mediante a sua corporeidade, a masculinidade e feminilidade, torna-se sinal visível da economia da Verdade e do Amor, que tem a fonte no próprio Deus e foi revelada já no mistério da criação. Sobre este fundo extenso compreendemos plenamente as palavras constitutivas do sacramento do matrimônio, presentes em Gênesis 2, 24: “O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”. Sobre este fundo extenso, compreendemos, além disso, que as palavras de Gênesis 2, 25: “Estavam ambos nus, tanto o homem e a mulher, mas não sentiam vergonha”, mediante toda a profundidade do significado antropológico que abraçam, exprimem o fato de, juntamente com o homem, ter entrado a santidade no mundo visível, criado para ele. O sacramento do mundo, e o sacramento do homem no mundo, provém da fonte divina da santidade, e ao mesmo tempo é instituído para a santidade. A inocência original, ligada à experiência do significado esponsal do corpo, é a santidade mesma que permite ao homem exprimir-se de modo profundo com o próprio corpo, isto precisamente mediante o “dom sincero” de si mesmo. A consciência do dom condiciona, neste caso, “o sacramento do corpo”: o homem sente-se, no seu corpo de varão e de mulher, sujeito de santidade.
6. Com tal consciência do significado do próprio corpo, o homem, como varão e mulher, entra no mundo como sujeito de verdade e amor. Pode afirmar-se que Gênesis 2, 23-25 narra, por assim dizer, a primeira festa da humanidade, em toda a plenitude original da experiência do significado esponsal do corpo: e é uma festa da humanidade, que se origina nas fontes divinas da Verdade e do Amor, no mistério mesmo da criação. Embora bem depressa, sobre aquela festa original, se venha a desdobrar o horizonte do pecado e da morteiii, todavia já desde o mistério da criação chegamos a uma primeira esperança: isto é, de que o fruto da economia divina da verdade e do amor, que se revelou “ao princípio”, é não a Morte, mas a Vida, e não tanto a destruição do corpo do homem criado “à imagem de Deus”, quanto de preferência a “chamada para a glória”iv.
iGn 2, 24.
iiGn 1, 31.
iiiGn 3.
iv Cfr. Rm 8, 30.