Intimidade – O significado oculto da visão
1. Retornamos à análise do texto do Gênesis (Gen 2, 25), iniciado há algumas semanas.
De acordo com essa passagem, o homem e a mulher se viam, pode-se dizer, através do mistério da criação; eles se viam dessa maneira antes de reconhecerem “que estavam nus”. Esta visão recíproca um do outro não é apenas uma participação na percepção “exterior” do mundo, mas também tem uma dimensão interior, um compartilhar da visão do próprio Criador – aquela visão sobre a qual o relato de Gênesis 1 fala várias vezes, “Deus viu tudo que tinha feito, e viu que era muito bom” (Gen 1, 31). A “nudez” significa a bondade original da visão divina. Significa toda a simplicidade e plenitude dessa visão, que mostra o valor “puro” do ser humano enquanto homem e mulher, o valor “puro” de seu corpo e de seu sexo. A situação que se encontra indicada, desse modo tão conciso, e ao mesmo tempo sugestivo, pela revelação original do corpo como está expressa em particular por Genesis 2, 25, não contém nenhuma desarmonia intrínseca, nem antítese entre o que é espiritual e o que é sensível; assim como também não contém desarmonia e antítese entre o que constitui a pessoa enquanto ser humano e o que é determinado pelo sexo no ser humano, ou seja, o que é masculino ou feminino.
Vendo-se reciprocamente, através do próprio mistério da criação, pode-se dizer, o homem e a mulher se veem ainda mais plenamente e claramente do que através do próprio sentido da visão, ou seja, através do olhos corporais. Eles se veem e se conhecem um ao outro, de fato, com toda a paz da contemplação interior, o que, precisamente, cria a plenitude da intimidade das pessoas. Se a “vergonha” carrega consigo uma limitação específica da vista (visão através dos olhos corporais), isso acontece, acima de tudo, porque a intimidade pessoal, pode-se dizer, fica prejudicada e “ameaçada” por tal visão. De acordo com Gênesis 2, 25, o homem e a mulher “não sentiam vergonha”; vendo-se e conhecendo-se mutuamente em toda a paz e tranquilidade da contemplação interior, eles “comunicam” na plenitude da humanidade, que se mostra neles como uma complementariedade recíproca, precisamente porque são eles “homem” e “mulher”. Ao mesmo tempo, eles “comunicam” baseados na comunhão de pessoas na qual se tornam um mútuo dom um para o outro, através da masculinidade e da feminilidade. Na reciprocidade, eles alcançam desse modo uma compreensão particular do significado dos próprios corpos. O significado original da nudez corresponde à simplicidade e plenitude da visão na qual nasce, desde o próprio cerne de sua comunidade-comunhão, pode-se dizer, sua compreensão do significado do corpo. Chamaremos esse significado de “esponsal”. O homem e a mulher em Gênesis 2, 23-25 emergem, precisamente no próprio “princípio”, com essa consciência do significado dos próprios corpos. Isso merece uma análise aprofundada.
O homem na dimensão do dom – O significado esponsal do corpo
2. Se a narrativa da criação do ser humano nas duas versões, aquela de Gênesis 1 e a versão Javista de Gênesis 2, nos permitem estabelecer o significado original da solidão, da unidade, e da nudez, por este mesmo fato nos permitem também alcançar o fundamento de uma antropologia adequada, que busca compreender e interpretar o homem (ser humano) naquilo que é essencialmente humano.i
Os textos bíblicos contém os elementos essenciais de tal antropologia, que se tornam claros no contexto teológico da “imagem de Deus”. Esse conceito contém de modo oculto a própria raiz da verdade sobre o ser humano, revelada pelo “princípio”, ao qual Cristo se referiu no diálogo com os fariseus (ver Mt 19, 3-9) quando falou sobre a criação do ser humano como homem e mulher. Devemos lembrar que todas as análises que estamos desenvolvendo aqui estão conectadas, ao menos indiretamente, precisamente com essas palavras. Desde o “princípio”, o ser humano, que Deus criou como “homem e mulher”, traz consigo a imagem divina impressa no seu corpo; homem e mulher constituem, pode-se dizer, dois modos diversos de “ser um corpo” que são próprios da natureza humana na unidade dessa imagem.
Devemos agora retornar às palavras fundamentais que Cristo utilizou, ou seja, à palavra “criado”, e ao sujeito, “Criador”, introduzindo nas considerações até agora traçadas uma nova dimensão, um novo critério de compreensão e de interpretação, que chamaremos de “hermenêutica do dom”. A dimensão do dom é decisiva para a profundidade e verdade essenciais do significado da solidão-unidade-nudez original. Ela também se encontra no próprio coração do mistério da criação, o que nos permite construir a teologia do corpo “desde o princípio”, mas ao mesmo tempo demanda que a construamos exatamente dessa forma.
3. Nos lábios de Cristo, a palavra “criado” contém a mesma verdade que encontramos no Gênesis. A primeira narrativa da criação repete essa palavra muitas vezes, desde Gênesis 1, 1 (“No princípio Deus criou os céus e a terra”) até Gênesis 1, 27 (“Deus criou o homem à sua imagem”). Deus se revela, acima de tudo, como Criador.ii Cristo se refere a essa verdade fundamental contida no Gênesis. O conceito de criação tem toda sua profundidade, não apenas metafísica, mas uma plena profundidade teológica, no Gênesis. O Criador é aquele que “chama à existência do nada”, e que estabelece na existência o mundo, e o ser humano no mundo, porque Ele “é amor” (1 Jo 4, 8). Reconhecidamente, não encontramos essa palavra amor (Deus é amor) na narrativa da criação; entretanto, essa narrativa frequentemente repete, “Deus viu tudo que tinha feito, e viu que tudo era bom” (Gen 1, 31). Através dessas palavras somos levados a vislumbrar no amor o motivo divino para a criação, a fonte, pode-se dizer, da qual ela emana: só o amor, de fato, gera o bem e se compraz com o bem realizado (ver 1 Cor 13). Enquanto ação de Deus, a criação, portanto, significa não apenas chamar do nada à existência e estabelecer a existência do mundo, bem como a existência do ser humano no mundo, mas, de acordo com a primeira narrativa, bᵊrēšît bārāʾ, também significa dom; um dom fundamental e “radical”, ou seja, um ato de doação (entrega) no qual o dom se torna ser, precisamente do nada.
Ser humano e entrega
4. Ler os primeiros capítulos do Gênesis nos introduz no mistério da criação, ou seja, do início do mundo por vontade de Deus, que é onipotência e amor. Consequentemente, toda criatura leva em si o sinal do dom original e fundamental.
Ainda assim, ao mesmo tempo, o conceito de “dom” (entrega) não pode se referir a nada. Ele indica a pessoa que dá o dom (que faz a entrega), e a que recebe o dom, bem como a relação estabelecida entre elas. Bem, essa relação surge na narrativa da criação no próprio momento da criação do ser humano. Essa relação é mostrada acima de tudo pela expressão, “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou” (Gen 1, 27). Na narrativa da criação do mundo visível, dar (entregar) só tem significado com relação ao ser humano. Em toda a obra da criação, é somente dele (ser humano) que se pode dizer, um dom foi concedido: o mundo visível foi criado “para ele”. O relato bíblico da criação nos oferece razões suficientes para tal compreensão e interpretação: a criação é um dom, porque o ser humano aparece nela, o qual, por ser imagem de Deus, é capaz de compreender o próprio significado do dom no chamado do nada à existência. Ele também é capaz de responder ao Criador com a linguagem dessa compreensão. Quando se interpreta a narrativa da criação precisamente com essa linguagem, pode-se deduzir dela que a criação constitui o dom fundamental e original: o ser humano aparece na criação como aquele que recebeu o mundo como um dom (um presente), e vice-versa, pode-se dizer também que o mundo recebeu o ser humano como um dom.
Neste ponto, devemos interromper nossa análise. O que falamos até agora apresenta-se em estrita relação com toda a problemática antropológica do “princípio”. O ser humano aparece nele como “criado”, ou seja, como aquele que, no meio do “mundo”, recebeu o outro ser humano como um dom. Nas análises que se seguirão, é precisamente essa dimensão do dom que devemos submeter a uma profunda análise, a fim de compreender também o significado do corpo em sua justa medida. Esse será o assunto de nossas próximas meditações.
i O conceito de “antropologia adequada” tem sido explicado no próprio texto como “uma compreensão e interpretação do homem (ser humano) naquilo que é essencialmente humano”. Esse conceito determina o princípio da redução, que é próprio da filosofia do ser humano; ela indica os limites desse princípio e indiretamente exclui a possibilidade de ir além desses limites. A antropologia “adequada” repousa sobre a experiência essencialmente “humana”. É oposta ao reducionismo de tipo “naturalístico”, que frequentemente anda de mãos dadas com a teoria da evolução acerca das origens do ser humano.
ii O termo hebreu bārāʾ (criado) que é usado apenas para determinar a ação de Deus, aparece na narrativa da criação apenas em 1, 1 (criação do céu e da terra), em 1, 21 (criação dos seres marinhos), e em 1, 27 (criação do ser humano). Aqui, entretanto, (ou seja, em 1, 27), aparece nada menos que 3 vezes. Isso significa a plenitude e a perfeição do ato da criação do ser humano, homem e mulher. Tal repetição indica que aqui a obra da criação atingiu seu ponto mais alto.