1. Convém voltarmos ainda hoje ao significado da solidão original do homem, que emerge sobretudo na análise do chamado texto javista de Gênesis 2. Permite-nos o texto bíblico, como já verificamos nas precedentes reflexões, pôr em relevo não só a consciência do corpo humano (o homem é criado no mundo visível como “um corpo entre corpos”), mas também a do seu significado próprio.
Tendo em conta a grande concisão do texto bíblico, não se pode, admitidamente, ampliar muito essa implicação. É porém certo que tocamos aqui o problema central da antropologia. A consciência do corpo parece identificar-se neste caso com o descobrimento da complexidade da própria estrutura que, baseada numa antropologia filosófica, consiste afinal na relação entre a alma e o corpo. A narrativa javista com a própria linguagem (isto é, com a sua própria terminologia) exprime-o dizendo: O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo1. E precisamente este homem, “ser vivo”, distingue-se em seguida de todos os outros seres vivos do mundo visível. O que leva a concluir a existência deste “distinguir-se” do homem, é exatamente o fato de só ele ser capaz de “cultivar a terra”i e de “a dominar”ii. Pode-se dizer que a consciência da “superioridade”, inscrita na definição de humanidade, nasce desde o princípio baseada num atuar ou comportar-se tipicamente humano. Esta consciência traz consigo especial percepção do significado do próprio corpo, percepção que emerge precisamente do fato de que é tarefa do homem “cultivar a terra” e “dominá-la”. Tudo isto seria impossível sem uma intuição tipicamente humana do significado do próprio corpo.
2. Parece pois necessário falar antes de tudo deste aspecto, deixando para depois o problema da complexidade antropológica em sentido metafísico. Se a descrição original da consciência humana, indicada pelo texto javista, compreende, no conjunto da narrativa, também o corpo, se ela encerra quase o primeiro testemunho do descobrimento da própria corporeidade (e mesmo, como foi dito, a percepção do significado do próprio corpo), tudo isto se revela não com base em alguma análise metafísica primordial, mas com base na suficientemente clara subjetividade concreta do homem. O homem é um sujeito não só para a sua autoconsciência e autodeterminação, mas também com base no próprio corpo. A estrutura deste corpo é tal que lhe permite ser o autor duma atividade verdadeiramente humana. Nesta atividade o corpo exprime a pessoa. Ele é portanto, em toda a sua materialidade (“formou o homem do pó da terra”), quase penetrável e transparente, de maneira que evidencia quem é o homem (e quem deveria ser) graças à estrutura da sua consciência e da sua autodeterminação. Nisto se apoia a percepção fundamental do significado do próprio corpo, que não se pode deixar de descobrir ao analisar a solidão original do homem.
3. Ora, com tal compreensão fundamental do significado do próprio corpo, o homem, como sujeito da antiga Aliança com o Criador, é colocado diante do mistério da árvore do conhecimento. Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim, mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que o comerdes, certamente morrerásiii. O significado original da solidão do homem baseia-se em experimentar a existência, existência que ele obteve do Criador. Tal existência humana caracteriza-se precisamente pela subjetividade, que também inclui o significado do corpo. Mas o homem, que na sua consciência original conhece apenas a experiência do existir e portanto da vida, poderia ele compreender o que significou a palavra “morrerás”? Seria capaz de chegar a compreender o sentido desta palavra através da estrutura complexa da vida, que lhe foi dada quando “o Senhor Deus… lhe insuflou pelas narinas o sopro da vida…”? É necessário admitir que esta palavra, completamente nova, apareceu no horizonte da consciência do homem sem que ele jamais tivesse experimentado a realidade, e ao mesmo tempo esta palavra apareceu diante dele como radical antítese de tudo aquilo de que o homem fora dotado.
O homem ouviu pela primeira vez a palavra “morrerás”, sem ter com ela qualquer familiaridade na experiência feita até então; mas, por outro lado, não podia deixar de associar o significado da morte àquela dimensão de vida de que tinha gozado até esse momento. As palavras de Deus-Javé dirigidas ao homem confirmam uma dependência no existir, de tal modo que mostram o homem como um ser limitado e, por sua natureza, susceptível de não-existência. Estas palavras sugeriram o problema da morte de maneira condicional: “No dia em que o comerdes… morrerás”. O homem, que ouvira tais palavras, devia encontrar sua verdade na estrutura intrínseca da própria solidão. E, afinal, dependia dele, da sua decisão e livre escolha, se entraria também com a sua solidão no círculo da antítese que lhe revelara o Criador, juntamente com a árvore do conhecimento do bem e do mal, e assim tornaria própria a experiência do morrer e da morte. Ouvindo as palavras de Deus-Javé, deveria o homem compreender que a árvore do conhecimento lançara raízes não só no “jardim do Éden”, mas também na sua humanidade. Ele, além disso, deveria compreender que aquela árvore misteriosa escondia em si uma dimensão de solidão, até essa altura desconhecida, da qual o Criador o tinha dotado no âmbito do mundo dos seres vivos, aos quais ele, o homem —diante do Criador mesmo—, tinha “designado com nomes”, para chegar a compreender que nenhum deles lhe era semelhante.
4. Quando pois o significado fundamental do seu corpo já se encontrava estabelecido graças à distinção que o separava do resto das criaturas, quando por isso mesmo se tornara evidente que o “invisível” determina o homem mais que o “visível”, então apresentou-se diante dele a alternativa, íntima e diretamente ligada por Deus-Javé à árvore do conhecimento do bem e do mal. A alternativa entre a morte e a imortalidade, que deriva de Gn 2, 17, ultrapassa o significado essencial do corpo do homem, na medida em que inclui o significado escatológico não só do corpo, mas da humanidade mesma, distinta de todos os seres vivos, dos “corpos”. Esta alternativa refere-se contudo de modo particularíssimo ao corpo criado do “pó da terra”.
Para não prolongar mais esta análise, limitamo-nos a verificar que a alternativa entre a morte e a imortalidade entra, desde o princípio, na definição do homem e que pertence “desde o princípio” ao significado da sua solidão diante do próprio Deus. Este significado original da solidão, impregnado pela alternativa entre morte e imortalidade, tem ainda um significado fundamental para toda a teologia do corpo.
Com esta verificação concluímos por agora as nossas reflexões sobre o significado da solidão original do homem. Tal verificação, que deriva de modo claro e impressionante dos textos do Livro do Gênesis, leva também a refletir tanto sobre os textos como sobre o homem, que tem provavelmente consciência demasiado débil da verdade que lhe diz respeito e se encontra já expressa nos primeiros capítulos da Bíblia.
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1 A antropologia bíblica distingue no homem não tanto “o corpo” e “a alma” quanto “corpo” e “vida”.
O autor bíblico apresenta aqui a entrega do dom da vida mediante o “sopro”, que não deixa de ser propriedade de Deus: quando Deus o tira, o homem volta ao pó, do qual foi feito (cfr. Jó 34, 14-15; Sl 104, 29 s).
i Cfr. Gn 2, 5.
ii Cfr. Gn 1, 28.
iiiGn 2, 16-17.