1. Na reflexão precedente, começamos a analisar o significado da solidão original do homem. O ponto de partida foi-nos dado pelo texto javista, e em particular pelas seguintes palavras: Não é bom que o homem esteja só: vou fazer-lhe uma auxiliar semelhante a elei. A análise das passagens pertinentes do Livro do Gênesis (cap. 2) levou-nos já a conclusões surpreendentes no que diz respeito à antropologia, isto é, a ciência fundamental acerca do homem, contida neste Livro. De fato, em relativamente poucas frases, o antigo texto delineia o homem como uma pessoa com a subjetividade caracterizando a pessoa.
Quando Deus-Javé dá a este primeiro homem, assim formado, o mandamento que diz respeito a todas as árvores que crescem no “jardim do Éden”, acima de tudo a árvore do conhecimento do bem e do mal, isso adiciona o aspecto da escolha e da autodeterminação (ou seja, do livre arbítrio) aos contornos do homem acima descritos. Deste modo, a imagem do homem, como pessoa dotada de uma subjetividade própria, aparece diante de nós como acabada no seu primeiro esboço.
O conceito de solidão original inclui tanto a autoconsciência quanto a autodeterminação. O fato de o homem estar “só” encerra em si mesmo essa estrutura ontológica, e ao mesmo tempo, indica autêntica compreensão. Sem isto, não podemos compreender corretamente as palavras seguintes, que constituem o prelúdio da criação da primeira mulher: “vou fazer-lhe uma auxiliar”. Mas, sobretudo, sem aquele significado profundo da solidão original do homem, não se pode compreender nem interpretar corretamente a situação completa do homem, criado “à imagem de Deus”, que é a situação da primeira, ou melhor da primitiva Aliança com Deus.
2. Este homem, de quem a narrativa do capítulo primeiro diz que foi criado “à imagem de Deus”, manifesta-se, na segunda narrativa, como sujeito da Aliança, isto é, um sujeito constituído como pessoa, constituído à altura de “companheiro do Absoluto“, na medida em que deve discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. As palavras do primeiro mandamento de Deus-Javéii , que falam diretamente sobre a submissão e a dependência do homem-criatura ao seu Criador, revelam de modo indireto precisamente tal nível de humanidade, como sujeito da Aliança e “companheiro do Absoluto”. O homem está “só”: isto quer dizer que ele, através da própria humanidade, através daquilo que ele é, está ao mesmo tempo constituído numa única, exclusiva e irrepetível relação com o próprio Deus. A definição antropológica contida no texto javista aproxima-se, a seu modo próprio, daquilo que exprime a definição teológica do homem, que encontramos na primeira narrativa da criação (“Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança”iii).
3. O homem, assim formado, pertence ao mundo visível, é corpo entre corpos. Retomando e, de certo modo, reconstruindo o significado da solidão original, aplicamo-lo ao homem na sua totalidade. O corpo, mediante o qual o homem participa do mundo criado visível, torna-o ao mesmo tempo consciente de estar “só”. De outro modo não teria sido capaz de chegar a essa convicção a que, efetivamente, como lemos, chegouiv, se o seu corpo não o tivesse ajudado a compreendê-lo, tornando o fato evidente. A consciência da solidão poderia ter enfraquecido, precisamente por causa do próprio corpo. Baseando-se na experiência de seu próprio corpo, o homem, ‘adam, poderia ter chegado à conclusão de ser substancialmente semelhante aos outros seres vivos (animalia). Ao contrário, como lemos, ele não chegou a esta conclusão, pelo contrário chegou à convicção de que estava “só”. O texto javista nunca fala diretamente sobre o corpo; até mesmo quando diz que “o Senhor Deus formou o homem do pó da terra”, fala do homem e não do corpo. Apesar disso, a narração tomada no seu conjunto oferece-nos bases suficientes para perceber este homem, criado no mundo visível, exatamente como corpo entre corpos.
A análise do texto javista permite-nos também relacionar a solidão original do homem com a consciência do corpo, mediante a qual o homem se distingue de todos os animalia e “se separa” deles, e também mediante a qual ele é pessoa. Pode-se afirmar com certeza que o homem assim formado tem, ao mesmo tempo, o conhecimento e a consciência do sentido do próprio corpo. Além disso, ele o tem baseado na experiência da solidão original.
4. Tudo isto pode ser considerado uma implicação da segunda narrativa da criação do homem, e a análise do texto permite-nos desenvolvê-lo amplamente.
Quando no início do texto javista, ainda antes de se falar da criação do homem do “pó da terra”, lemos que “ninguém cultivava a terra e fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo”v, associamos corretamente este trecho ao da primeira narrativa, em que está expressa a ordem divina: enchei e dominai a terravi. A segunda narrativa alude de modo explícito ao trabalho que o homem realiza para cultivar a terra. Pode-se encontrar no próprio homem o primeiro meio fundamental para dominar a terra. O homem pode dominar a terra porque só ele — e nenhum outro ser vivo — é capaz de “cultivá-la” e transformá-la segundo as próprias necessidades (“fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo”). E então, este primeiro esboço de uma atividade especificamente humana parece fazer parte da definição do homem, tal como emerge da análise do texto javista. Por conseguinte, pode-se afirmar que tal esboço é intrínseco ao significado da solidão original e pertence àquela dimensão da solidão através da qual o homem tem sido desde o princípio, no mundo visível, um corpo entre corpos, e descobre o significado de sua própria corporeidade.
Sobre este assunto voltaremos na próxima reflexão.
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iGn 2, 18.
iiGn 2, 16-17.
iiiGn 1, 26.
iv Cfr. Gn 2, 20.
vGn 2, 5-6.
viGn 1, 28.