5ª. O significado da solidão original do homem – 10/10/1979

1. Na última reflexão do presente ciclo, chegamos, a partir das palavras do livro do Gênesis, a uma conclusão preliminar sobre a criação do homem como macho e fêmea. O Senhor Jesus referiu-se a essas palavras, ou seja, ao “princípio”, em seu diálogo sobre a indissolubilidade do matrimônioi. Entretanto, a conclusão a que chegamos não termina ainda a série de nossas análises. Devemos, de fato, reler a narração do primeiro e do segundo capítulo do Livro do Gênesis num contexto mais amplo, que nos permitirá estabelecer uma série de significados do texto antigo a que Cristo se referiu. Hoje refletiremos portanto sobre o significado da solidão original do homem.

2. As seguintes palavras do Gênesis nos dão diretamente o ponto de partida para tal reflexão: Não é bom que o homem [macho] esteja só, vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda.ii É Deus-Javé que pronuncia estas palavras. Elas fazem parte da segunda narrativa da criação do homem e portanto provêm da tradição javista. Como já recordamos precedentemente, é significativo que, no texto javista, a narrativa da criação do homem (macho) seja uma passagem por si só, completaiii, que precede a narrativa da criação da primeira mulheriv. É, além disso, significativo que o primeiro homem (‘adam), criado do “pó da terra”, só depois da criação da primeira mulher seja definido como “macho” (‘is). Assim, portanto, quando Deus-Javé pronuncia as palavras a respeito da solidão, refere-as à solidão do “homem” enquanto tal, e não só à do macho1.

É difícil porém, só com base neste fato, chegar a conclusões de maior alcance. Apesar disso, o contexto completo dessa solidão, de que fala Gênesis 2, 18, pode convencer-nos que estamos lidando com a solidão do “homem” (macho e fêmea) e não apenas da solidão do homem-macho, causada pela falta da mulher. Parece, por conseguinte, com base no contexto inteiro, que esta solidão tem dois significados: um derivado da própria natureza do homem, isto é, da sua humanidade (o que é evidente na narrativa de Gn 2), e o outro derivado da relação entre macho e fêmea, e de certo modo, isso é evidente com base no primeiro significado. Uma análise detalhada da descrição parece confirmá-lo.

3. O problema da solidão manifesta-se somente no contexto da segunda narrativa da criação do homem. A primeira narrativa não menciona esse problema. Nela, o homem é criado em um só ato como “macho e fêmea” (“Deus criou o ser humano à sua imagem … Homem e mulher ele os criou.v). A segunda narrativa – que, segundo já mencionamos, fala primeiramente sobre a criação do homem (macho),  e só depois sobre a criação da mulher a partir da “costela” do macho – concentra a nossa atenção no fato de que “o homem está só”, e isto apresenta-se como uma questão antropológica fundamental que é, de certo modo, anterior à questão levantada pelo fato de o ser humano ser macho e fêmea. Essa questão é anterior, não apenas no sentido cronológico, mas principalmente no sentido existencial: é anterior “por sua própria natureza”. Esse é o modo como a questão da solidão do ser humano se apresentará do ponto de vista da teologia do corpo, se conseguirmos fazer uma análise profunda da segunda narrativa da criação em Gênesis 2.

4. A afirmação de Deus-Javé, “não é bom que o homem esteja só”, aparece não só no contexto imediato da decisão de criar a mulher (“vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”), mas também no contexto mais amplo de motivos e circunstâncias, que explicam mais profundamente o sentido da solidão original do homem. O texto javista liga a criação do homem acima de tudo com a necessidade de “cultivar a terra”vi, e isso parece corresponder ao chamado a encher e dominar a terravii encontrado na primeira narrativa. Depois disso, a segunda narrativa da criação fala de o homem ser colocado no “jardim do Éden”, e deste modo introduz-nos ao estado de sua felicidade original. Até este momento, o homem é objeto da ação criadora de Deus-Javé, que ao mesmo tempo, como legislador, estabelece as condições da primeira aliança com o homem. Este ato divino já sublinha a subjetividade do homem. A subjetividade encontra nova expressão quando o Senhor Deus “formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e apresentou-os ao homem [macho] para ver como os chamariaviii. Portanto, o primeiro significado da solidão original do homem é definido com base em um específico “teste”, ou exame, a que se submete o homem diante de Deus (e em certo modo também diante de si mesmo). Por meio desse “teste”, o homem toma consciência da própria superioridade, ou seja, de não poder colocar-se em igualdade com nenhuma outra espécie de seres vivos sobre a terra. Na verdade, como diz o texto, o homem impôs os nomes dos animais, de modo que “cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse”ix. “E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens, mas não encontrou uma auxiliar similar a si mesmo”x.

5. Toda esta parte do texto é, sem dúvida, uma preparação para a narrativa da criação da mulher. Não obstante, ela também possui seu próprio significado profundo, independentemente dessa criação. Portanto, o homem criado encontra-se, desde o primeiro momento da sua existência, diante de Deus em busca de seu próprio ser, por assim dizer; pode-se dizer, em busca de sua própria definição; hoje em dia se poderia dizer, em busca de sua própria “identidade”. A observação de que o homem “está só” no meio do mundo visível e, em especial, entre os seres vivos, tem nesta busca um significado negativo, na medida em que exprime o que ele “não é”. Apesar disso, a observação de que ele não pode se identificar essencialmente com o mundo visível dos outros seres vivos (animalia) tem, ao mesmo tempo, um aspecto positivo para esta busca primária: mesmo não sendo essa observação uma definição completa, constitui todavia um dos seus elementos. Se aceitamos a tradição aristotélica, na lógica e na antropologia, seria necessário definir este elemento como “genus próximo” (genus proximum)2.

6. O texto javista nos permite, todavia, descobrir ainda outros elementos desse admirável trecho, em que o homem se encontra só, diante de Deus, sobretudo para exprimir, através de uma primeira autodefinição, seu próprio autoconhecimento como primeira e fundamental manifestação de humanidade. O autoconhecimento anda de mãos dadas com o conhecimento do mundo, de todas as criaturas visíveis, de todos os seres vivos a que o homem deu nome para afirmar ante eles a própria dissimilaridade. Assim, portanto, a consciência revela o homem como o ser que possui o poder de conhecer a respeito do mundo visível. Com este conhecimento, que o faz sair, de certo modo, fora do próprio ser, o homem ao mesmo tempo revela-se a si mesmo em toda a peculiaridade do seu ser. Ele não está apenas essencialmente e subjetivamente só. A solidão, de fato, também significa a subjetividade do homem, a qual se forma através do autoconhecimento. O homem está só porque é “diferente” do mundo visível, do mundo dos seres vivos. Analisando o texto do Livro do Gênesis, tornamo-nos, em certo sentido, testemunhas do modo como o homem, com o primeiro ato de autoconsciência, “se distingue” ante Deus-Javé de todo o mundo dos seres vivos (animalia), como ele consequentemente se revela a si mesmo e ao mesmo tempo se afirma no mundo visível como “pessoa”. Aquele processo delineado de modo tão incisivo em Gênesis 2, 19-20, processo de busca duma definição de si mesmo, leva não só a indicar — voltando-nos novamente à tradição aristotélica— o “genus proximum”, que no capítulo 2º do Gênesis é expresso com as palavras “deu nome” (a que corresponde a “diferença específica” que é, segundo a definição de Aristóteles, noûs, zoón noetikón). Tal processo leva também à primeira delineação do ser humano como pessoa humana, com a subjetividade própria que caracteriza a pessoa.

Interrompemos aqui a análise do significado da solidão original do homem. Retoma-la-emos daqui a uma semana.

 

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1 O texto hebraico chama constantemente ao primeiro homem ha-‘adam, ao passo que o termo ‘is (“macho”) só é usado quando aparece o confronto com a ‘issa (“fêmea”).

Solitário estava pois “o homem” sem referência ao sexo.

Na tradução para algumas línguas européias, é difícil porém exprimir este conceito do Gênesis, porque “homem” e “macho” são definidos ordinariametne com um vocábulo único: “homo”, “uomo”, “homme”, “hombre”, “man”.

2 “An essencial (quidditive) definition is a statement which explains the essence or nature of things.

It will be essential when we can define a thing by its proximate genus and specific differentia.

The proximate genus includes within its comprehension all the essential elements of the genera above it and therefore includes all the beings that are cognate or similar in nature to the thing that is being defined; the specific differentia, on the other hand, brings in the distinctive element which separates this thing from all others of a similar nature, by showing in what manner it is different from all others, with which it might be erroneously identified.

“Man” is defined as a “rational animal”; “animal” is his proximate genus, “rational” is this specific differencia. the proximate genus “animal” includes within its comprehension all the essential elements of the genera above it, because an animal is a “sentient, living, material substance” (…) The specific differentia “rational” is the one distinctive essential element which distinguishes “man” and every other “animal”. It therefore makes him from every other “animal” and every other genus above animal, including plants, inanimate bodies and substance.

Furthermore, since the specific differentia is the distinctive element in the essence of man, it includes all the characteristic “properties” which lie in the nature of man as man, namely, power of speech, morality, government, religion, immortality, etc. —realitis which are absent in all other beings in this physical world” (C.N. Bittle, The Science of Correct Thinking, Logic, Milwaukee 1947, p. 73-74).

i Cfr. Mt 19, 3-9; Mc 10, 1-12.

iiGn 2, 18.

iiiGn 2, 7.

ivGn 2, 21-22.

vGn 1, 27.

viGn 2, 5.

vii Cfr. Gn 1, 28.

viiiGn 2, 19.

ixIbid.

xGn 2, 20.