A questão do pudor sob a visão personalista de Karol Wojtyla na obra Amor e Responsabilidade.

BACHARELANDO EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ E LICENCIANDO EM FILOSOFIA PELA FACULDADE CATÓLICA DE FORTALEZA 

Francisco Deusimar Andrade Albuquerque

A questão do pudor sob a visão personalista de Karol Wojtyla na obra Amor e Responsabilidade¹

 

Resumo:   A  questão  do  pudor  pode  ser  analisada por diversas matrizes, psicológica, moral, religiosa, pedagógica, etc. Contudo, o objetivo da análise do pudor, na questão filosófica, não pode restringir-se a uma visão setorizada – essa não é a função da filosofia. Nessa perspectiva, a visão fenomenológica de Karol Wojtyla, a partir de uma matriz personalista, traz um bom arcabouço para uma discussão séria e abrangente sobre a temática. O pudor, contudo, aponta para uma visão mais abrangente sobre a sexualidade e afetividade, manifestadas na pessoa humana – e parece-lhe apontar para um sentido que não se restringe ao biológico, nem ao passional, muito menos ao simplesmente simbólico. No centro da discussão personalista de Wojtyla encontra-se a pessoa, como valor inexorável e inalienável. Partindo do imperativo categórico kantiano, há afirmação de que a pessoa nunca pode ser usada como meio, mas sempre como um fim. Na visão antropológica do Autor, isso leva a uma implicação concreta de que a pessoa nunca pode ser usada como objeto de prazer – isso feriria a dignidade própria da pessoa. Há assim, uma negação clara a qualquer tipo de ética utilitarista, pois esta centra-se no prazer, não na pessoa. Ademais dessa afirmação negativa, há a afirmação positiva que a pessoa só pode ser objeto de amor. Precisamente o amor pode ter uma força impulsora, sem desconsiderar o valor da pessoa. O pudor, assim concebido, é como que o movimento natural da pessoal para defender a sua própria dignidade, diante dos outros, que podem concebê-la como simples objeto (de prazer).

 

Palavras chave: Karol Wojtyla, Pudor, Sexualidade, Personalismo, Fenomenologia.

 

1. Introdução. 

Karol Wojtyla não fora somente um papa – um grande papa na opinião de alguns – mas fora uma marca forte no ambiente filosófico especialmente por ser uma expressão forte do personalismo, usando-se de um método de pesquisa fenomenológico e uma interpretação dialética da realidade. É preciso ter claro esses três âmbitos de pesquisa do Autor para entender sua maneira de filosofar e seus postulados, especialmente os de antropologia filosófica, que será explanado no presente trabalho.

Do personalismo, buscará o valor inexorável e inviolável da pessoa como crédito último e máximo da busca filosófica. O homem, ou mais especificamente a pessoa, nunca pode estar em segundo plano, nunca pode ser um meio, não pode ser relegado o segundo cargo na filosofia hodierna. Ela deve ser sempre a finalidade última. Veja-se que a obra Amor e responsabilidade irá exatamente, a partir dessa matriz personalista, analisar a moralidade da vida sexual com base nesse forte pressuposto, que é uma variável da ética kantiana: “O homem nunca pode ser usado como um meio, sempre será um fim das tuas atitudes”.

Karol Wojtyla se apresenta como um filósofo que procura investigar criticamente sobre um fato, ao invés de agir como um “confessor da fé”. É fiel ao método filosófico e não trai-o em sua pesquisa, sempre fiel ao que se apresenta, ao que se mostra. Suas fundamentações são reais e acessíveis a muitos, basta um olhar atento. Pode-se falar claramente que sua sinceridade é fruto natural da fenomenologia com a qual busca os conceitos filosóficos adequados ao factual.

Durante seu processo de pesquisa, também, não se iguala a um idealista (ou espiritualista) ao ponto de negar o corpo; mas também não se deixará levar por uma ética utilitarista, onde o paradigma de validade ética e moral é o prazer, o sensível. Não negará o corpo, não negará os fenômenos psicológicos, mas integrá-lo-ás dialeticamente no conceito de espírito. Assim, seu conceito de espírito está ligado necessariamente à imanência, mas aponta para uma transcendência, e não se identifica com o que comumente se entende por espírito no sentido religioso. É fácil ver sua fidelidade ao conceito tradicional de espírito dos fenomenólogos: sendo ligados à razão e a liberdade.

Tendo firmes esses conceitos, na obra de Karol, têm-se bem mais claro qual é o papel (fundamental) do estudo do pudor. Este não é simplesmente a manifestação exterior de uma vergonha ou um de uma cristalização cultural. Para Wojtyla, o pudor aponta para uma determinada metafísica: ou seja, é revelador de um caráter do homem que não se satisfaz complemente com o simplesmente saciável, com o simplesmente corporal, como o simplesmente psicológico. Delimitado entre o entendimento da psicologia masculina e feminina, o autor revela o caráter “supra psicológico” da intuição do pudor.

 

2. O aspecto negativo do pudor.

À primeira vista, o pudor sexual pode apresentar-se como uma negação da sexualidade, ou das manifestações sexuais, vê-se isso fortemente impregnado em muitas culturas por uma tendência um tanto puritana, no sentido original do termo. Ou ainda, ver-se-á o pudor como uma normal social regimentada, que deve ser preservado por simples respeito à tradição (familiar, religiosa, social, etc.).

Algumas moças, talvez creditem seu pudor, ou as manifestações de pudicícia ao temor de si, perante a sexualidade do homem. Alguns tantos rapazes tenham também a manifestação do pudor, como vergonha da sua sexualidade manifesta e passional, diante a um estimulo ou de uma mulher.

Assim, é claro e evidente que o pudor apresenta um caráter um tanto negativo: “não mostre isso”, “não faça aquilo na frente de outros”, “esconda isso aos olhares dos outros”, e assim por diante. Contudo, será que o pudor não revela nada a mais na psicologia e na constituição ontológica do homem? Ou será simplesmente um regimento social, onde se precisa libertar para chegar a um novo nível de moralidade?

Após a “revolução sexual” há um crescente ojeriza a qualquer manifestação de pudicícia, sendo essa sempre associada a repressão e controle – vê-se isso forte em vários dos filósofos contemporâneos: Nistzsche, Focault, Guatarri, Freud, etc. A liberalismo sexual tornou-se como que um grito de guerra de grande parte dos movimentos de esquerda, sendo quase um pressuposto básico, em contraposição a qualquer “medida reacionária” da Igreja, do Estado, da sociedade capitalista, dos padrões sociais estabelecidos (…). Mas será que a questão do pudor refere-se simplesmente a um jogo de poder e controle?

Esse modus pensandi progressista revela um aspecto positivo que talvez fosse necessário trazer logo à questão: “o sexo, a sexualidade não é algo mal! A sociedade até hoje pregou que isso era ruim, que era demoníaco, que era vergonhoso”. Contudo essa não é a resposta final do pudor.

“Não se pode simplificar excessivamente o problema afirmando que só se esconde o que se considera um mal; temos muitas vezes ‘vergonha’ do bem, por exemplo duma boa ação. Pode ser que neste caso o pudor não se refira tanto ao bem mesmo, mas ao fato de exteriorizar o que deveria permanecer oculto: é essa exteriorização que se considera um mal. Assim se pode dizer que o pudor aparece no momento em que, aquilo que deveria permanecer interior, por motivo da sua essência ou da sua finalidade, deixa a interioridade da pessoa para se manifestar no exterior dum outro modo ou doutro.” (KAROL, 1979, p.163).

 

3. O aspecto positivo do pudor.

Além dessas manifestações exteriores do pudor, que são completamente visíveis e analisáveis é necessário ver que o pudor revela algo na pessoa que está para além desse fenômeno, dessa manifestação – que pode parecer fria e seca. O pudor parece revelar algo de tão profunda na pessoa, que ela é inalienável e inviolável, parece que o pudor é a uma manifestação da essência da pessoa (cf. KAROL, 1979, p.167).

Diante dessa manifestação de escondimento ou de afastamento de algo que lhe pareça invasivo não revela uma simples vergonha perante o sexo, ou perante o sensual – já que isso lhe causa naturalmente (e instintivamente) interesse. Caso isso fosse uma regra, revelaria uma contradição paradoxal na psicologia humana.

“O pudor é o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada na suas expressões, nem ameaçada em seu ser pelos sentimento que assumiria a sua existência, uma vez que esta totalmente se manifestasse. O pudor físico não traduz a impureza do corpo, mas antes significa que eu sou infinitamente mais do que esse corpo olhado e alcançado. O pudor dos sentimento revela que cada um deles me limita e me trai. Ambos são sinal de que não sou simples joguete nas mãos da natureza ou dos outros. Não fico envergonhado por ser essa nudez ou esse personagem, mas por parecer não ser mais do que isso. O contrário do pudor é a vulgaridade, o consentimento em não ser mais do que oferece a aparência imediata quando se exibe perante os olhares públicos.” (MOUNIER, 2004, p.59-60).

Não se compreenderia adequadamente o pudor sem entender que a pessoa tem uma interioridade que só a ela lhe pertence, um algo de incomunicável, uma verdade e dignidade que não se traduz (cf. KAROL, 1979, p.164). Não se fala em incomunicável no sentido de não se conseguir traduzir um pensamento ou uma ação no mundo exterior. Esse não é o sentido. É, para, além disso, a afirmação enfática de que aquilo que é dito, ou vivenciado concretamente não traduz completamente o que se passa na interioridade de um ser humano, de uma pessoa.

Assim a afirmação do pudor na vivência atual não pode ser entendida como uma fuga do amor, ou do sexo em sentido estrito. Do contrário, é uma prevenção, para que aquele que seja visto na sua intimidade não possa ser tratada simplesmente como aquilo que se apresenta. “Estou nu/nua diante de ti, mas sou muito mais do que isso! Sou uma pessoa, uma interioridade!”. É uma reafirmação enfática do pressuposto de Wojtyla: a pessoa nunca pode ser usada como um meio (de prazer no caso), mas sempre como um finalidade (o amor, somente).

“A necessidade espontânea de esconder os valores sexuais é uma maneira natural de permitir que se descubram os valores da própria pessoa. O valor da pessoa está intimamente ligado à sua inviolabilidade, pelo fato de ser alguma coisa mais do que um objeto de prazer. O pudor sexual é um movimento instintivo de defesa, que protege este estado de coisas, portanto também o valor da pessoa. Mas não se trata apenas de protegê-lo. Trata-se de revelar esse valor precisamente em relação com os valores sexuais que lhe estão ligados na pessoa. O pudor não revela o valor da pessoa de modo abstrato, como um valor teórico que só pode ser apreendido através da razão; pelo contrário, põe-no em evidência de modo vivo e concreto ligado aos valores do sexo, se bem que ao mesmo tempo superior a eles.” (KAROL, 1979, p.168).

O pudor, assim, é um movimento natural que aponta para uma determinada metafísica da pessoa: “sou além dessa natureza visível”. Ele não se identifica de maneira simples com o uso de vestidos longos ou de determinada indumentárias, nem mesmo identifica a falta de pudor com a nudez parcial ou integral (cf. KAROL, 2004, p.165). A manifestação do pudor ou da impudicícia é algo que faz referência à pessoa, por exemplo, os animais não sentem pudor. As próprias crianças parecem imunes a essa manifestação do pudor, isso não tanto pela falta de influência cultural que lhe exerce, como podem afirmar alguns, mas principalmente por que em si não são formados, ainda, os valores sexuais. Quando isso ocorrer, o pudor se manifestará como uma exigência de sua personalidade nascente (cf. KAROL, 1979, p.165).

É necessário ir além de um conceito simples de pudor, pois é fácil ver que esse anda lado a lado com o encobrir certas partes do corpo, mas esse não constitui sua essência. Por isso, apesar de se ver em várias culturas manifestações de nudez parcial ou integral, isso não relativiza, nem marginaliza o valor do pudor, como manifestação da interioridade da pessoa.

“No vestir não há nada de impudico a não ser aquilo que ao sublinhar o sexo, o faz de tal maneira que contribua claramente para ofuscar o valor mais essencial da pessoa e inevitavelmente acabe por provocar uma reação à pessoa como a um possível objeto de prazer em razão do seu sexo impedindo assim a reação à pessoa enquanto objeto possível de amor, graças ao seu valor de pessoa.

O princípio é simples e evidente, mas a sua aplicação concreta depende dos indivíduos, dos ambientes e da sociedade. O vestuário é sempre um problema social, é, portanto, uma função dos costumes (sãos e malsãos). Simplesmente é preciso sublinhar que as considerações de natureza estética, embora aqui possam parecer decisivas, não são as únicas a ter em conta nem   o podem ser: ao lado delas existem considerações de natureza moral.”

(KAROL, 1979, p.178)

 

4. As diferenças psicológicas do homem e da mulher.

Como a questão do pudor não se resume simplesmente às indumentárias, mas revela algo para além do acessível para a pessoa; também é necessário levar me conta as diferenças psicológicas que movem o homem e a mulher na análise do pudor e das suas manifestações nos diferentes sexos. Assim, podem-se ver claras diferenças no vestir dos homens e das mulheres, sua própria fisiologia parece o exigir. Mas, para além dessas diferenças fisiológicas, por que parece a mulher ser mais “casta” que o homem? Ao mesmo tempo, sente em si um desejo mais forte de ressaltar determinados traços de feminilidades?

Para entender melhor esse sentimento nas manifestações psicológica das pessoas masculinas ou femininas, é necessário entender um pouco sobre a ordem dos valores de ambos os sexos e tentar defini-los como uma ordem de sentidos para aplicar a tais casos.

A mulher, por sua característica psico-afetiva natural, apresenta-se muito mais ligada aos sentimentos do que ao corpo em si. Assim “ela é mais casta, porque é mais sensível aos valores da pessoa, a uma certa masculinidade psíquica (embora exista sempre uma influência da masculinidade física)” (KAROL, 1979, p.166, grifo do autor). Acrescido a isso tem um fator sensual que lhe é muito próprio: as mulheres tem uma grande área erógena, assim tornando-a mais mórbida no sentido de sua sensualidade, sendo ela muito mais ligada a um corpo simbólico muito específico – vê-se esse estado de morbidez (e lentidão na excitação) facilmente durante as relações sexuais: o homem chega ao clímax com muito mais rapidez.

O homem, por outra via, apresenta-se fortemente ligado ao corpo, e sente em si uma sensualidade muito forte. Não sente tão forte um “medo” diante da sensualidade da mulher, mas antes uma vergonha despertada em si, em vista dos valores sexuais ligado ao corpo e à fonte de prazer (cf. KAROL, 1979, p.166). Isso também é corroborado pelo fator passivo de seus valores sexuais e à pequena quantidade de zone erógena do homem. Assim, os valores sexuais nos homens são de manifestações apresentam-se rápidas, intensas, mas com pouco caráter simbólico – ou seja, não é fator principal na valoração da pessoa.

No âmbito das vestimentas isso leva a uma conclusão preclara: o homem, por sentir em si já muito forte a sua própria sensualidade, não tende a afirmar os seus valores sexuais de maneira tão extenuante como as mulheres. Isso não leva em si um caráter de valoração positivo ao homem, e nem um caráter de valoração negativo à mulher; mas é necessário entender essas diferenças psicológicas – para ser possível se levar em conta, filosoficamente, uma ordem de moral e ética nas relações entre homens e mulheres.

“O pudor não é só uma resposta a uma reação sensual e sexual ao corpo enquanto objeto possível de prazer, uma contra-reação, mas é também, e sobretudo, uma exigência interior de impedir que a mulher reaja ao corpo do homem de como incompatível com o valor do homem como pessoa. Aqui precisamente nasce a pudicícia, por outras palavras, uma disposição constante para evitar o que é impudico”. (KAROL, 1979, p.166-167).

Levado em conta tais disposições, é importante analisar como essas manifestações pudicas são absorvidas na ordem do amor – e só podem ser absorvidas na ordem do amor. “Se esta é a atitude daqueles que se amam, já não tem motivo nenhum para sentir vergonha da sua vida sexual, pois já não têm que temer que essa vida ofusque os valores das pessoas, nem atente contra a sua inalienabilidade e inviolabilidade.” (KAROL, 1979, p.172). Diante da postura de um amor verdadeiro, não de uma simples paixão, mas de um amor que engaja a vida, o pudor vai “desaparecendo”, pois vais sendo absorvido no amor, pois perde a sua força objetiva (não ser usada como objeto de prazer, não ser tratado como simples corpo). A própria atitude do amor desencoraja a vergonha ou o medo (cf. KAROL, 1979, p.171).

Deve-se ter em conta que esse amor não é um simples sentimentalismo, opinião muito em voga hodiernamente – onde seria justificado as uniões sexuais pelo simples fato de sentir um “sentimento de amor”, ainda que seja recíproco. Esse não justificaria a atitude sexual, ademais, manifesta-se sempre com vergonha e pudicícia, pois não é garantido por amor verdadeiro de vontade (cf. KAROL, 1979, p.173).

Dentro de uma relação estável e garantida, pelo matrimônio, há uma coerência entre a castidade e a pudicícia, pois aos poucos vai perdendo sua força objetiva de existir: se tem uma confiança de que não será considerada como simples objeto de amor, não será descaracterizada. Isso vai acontecendo, proporcionalmente, na medida em que a pessoa amada, também ama e, o mais importante, está disposta a dar-se (cf. KAROL, 1979, p.171).

“É um fato que as relações sexuais dos esposos não são simplesmente uma forma de impudicícia tornada legal graças ao ato do matrimônio, mas pelo contrário são conforme as exigências interiores do pudor (a não ser que sejam os esposos a torná-las impudicas com o seu modo de realizá-as”. (KAROL, 1979, p.171-172).

 

5. Questões do impudor.

Perante as explanações e delimitações feitas acima, de práxis, encontra-se duas muito semelhantes ainda que pareçam completamente opostas nas atitudes das pessoas. Primeiramente é necessário falar sobre aqueles que sentem em si a força da sensualidade como característica própria e tentam acentuá-la de maneira desproporcionada. Tornam-se ao olhos dos outros simples objetos de prazer, “pedaços ambulantes de luxuria e prazer”. De tal modo, que ficam descaracterizados em suas personalidades, em sentido estrito, se perdem – não sabem mais o valor pessoal que lhes é intrínseco. A medida do amor que recebe, é a medida da luxuria que proporciona. Está é uma pessoa que pode-se servir sem amar (cf. KAROL, 1979, p.176).

Por outro lado, encontra-se aqueles que são completamente pudibundos, ou seja, pessoas que descriminam qualquer manifestação erótica ou sensual – e o fazer, não pela justa medida do pudor, mas por mania de escondimento, ou medo excessivo da própria sensualidade e das dos outros. Wojtyla deixa bem claro o que se passa no interior dessas pessoas, e o porque disso não ser manifestação de pudor.

“Uma pessoa pudibunda, e que ao mesmo tempo se deixa levar pelo desejo de prazer, procura criar aparências de desinteresse ou falta de atrativo pelo sexual e chega até a condenar todas as manifestações sexuais, mesmo as mais naturais, e tudo o que diz relação ao sexo. Muitas vezes, aliás, semelhante atitude não é falso pudor, isto é, uma forma de hipocrisia, mas simplesmente uma espéciade prevenção e convicção de que tudo o que se refere ao sexo não pode deixar de ser objeto de prazer, que o sexo só pode fornecer ocasiões de prazer, e que jamais abrirá caminho ao amor. Esta opinião está eivda de maniqueísmo e está em desacordo co a maneira de ver os problemas do corpo e do sexo que encontramos no Génesis e sobretudo no Evangelho. O verdadeiro pudor dos atos de amor nunca se identifica com o falso pudor, mas é uma sã reação contra toda atitude que pretenda reduzir a pessoa à categoria dum objeto de prazer.” (KAROL, 1979, p.176).

Portanto, a formação dos costumes sexuais devem sempre levar em conta o valor da pessoa colocando isso como um valor absoluto: nunca usará de uma pessoa como um meio, mas sempre como um fim. A verdadeira aplicação do princípio levará as pessoas a entenderem o verdadeiro valor do pudor, em vista do valor da pessoa, e não ser cairá num puritanismo: severidade exagerada que leva a um falso pudor (cf. KAROL, 1979, p.177). Esse processo pode ser abastecido fortemente pela própria força da consciência e das aplicações morais práticas – mas, muito mais ainda, por meio de uma forte aplicação prática de um amor pessoal e positivo. Só isso é um garantia segura contra o impudor, que é uma despersonalização da sexualidade.

 

6. Pudor e Arte.

Resta ainda analisar quais as relações entre arte e pudor. Contudo, é necessário traçar uma linha tênue, que deve ser a da perspectiva da pessoa e do amor – pois este não descaracteriza a pessoa. No caso da arte, ela tenta sempre comunicar um aspecto do real, e sua particular finalidade é a beleza, enquanto contemplação e “surpresa”, não enquanto definição, pois esta é objeto da filosofia. Dentro dessa perspectiva, uma das realidades que é mais expressa pela arte, como um todo, é o corpo e o amor das pessoas (cf. KAROL, 1979, p.179).

A arte não só pode, mas deve fazer isso enquanto aspecto integrante e importante da vida da pessoa, e sua função é, numa determinada perspectiva, reproduzir o real – ainda que num caráter simbólico e cultural. “O corpo é uma parte autêntica da verdade sobre o homem, como os elementos sensuais e sexuais são uma parte autêntica do amor humano. Mas não é juto que esta parte oculte o conjunto, e é precisamente isso que muitas vezes sucede na arte.” (KAROL, 1979, p.180).

Ora, não existe em si nenhum problema explicito da nudez, nem parcial nem integral, como já falado acima; mas deve-se ter um cuidado constante, primeiramente, para o enfoque que será dado, diante da perspectiva da arte, e depois para a postura daquele que é “atingido” pela arte diante o objeto visto. No primeiro caso é necessário notar que a tendência de supervalorizar os valores sexuais incutem que esse é o único valor da pessoa, sendo altamente nociva, pois atinge diretamente a manifestação simbólica do consciente (e inconsciente) do homem, destruindo a imagem do amor e a verdade mais profunda sobre o homem, ou seja, que ele é uma pessoa e não pode ser usada como um meio (cf. KAROL, 1979, p.180).

O segundo passo, que é a do observador da arte, é o cuidado e atenção interior para sempre evitar uma atitude impudica perante um corpo nu. Assim, vê-se claramente que as reações espontâneas da sensualidade nada têm a ver com o impudor; mas antes da categoria da vontade (uma categoria do espírito, correlata com a inteligência) onde a pessoa é reduzida, por causa do seu corpo, a objeto de prazer (cf. KAROL, 1979, p.179).

Assim a arte seria reintegrada na dinâmica natural da vida humana, sendo sempre assumida como uma manifestação e tradução do caráter supra utilitário da pessoa – a própria arte, por seu objeto e método de ação assim o exige do intelecto, pois não tem uma finalidade explicita, não é feita segundo padrões científicos, mas abastece-se do belo e da capacidade das pessoas de contemplar a beleza.

 

7. Conclusão.

O enquadramento do processo filosófico de Wojtyla na perspectiva personalista dá bem uma ênfase temática de toda a sua antropologia filosófica, com a justificação de seus modus pensandi de acordo com o princípio que o homem nunca pode ser interpretado ou colocado como classe segunda na ordem das prioridades da ação (moral). Partindo desse pressuposto, tenta fundamentar a validade das expressões de sexualidade e sensualidade na posição hodierna, onde tais princípios de moralidade são quase completamente colocados em segundo plano, por uma lógica relativista.

Assim, não traduz uma ética que seja “idealista”, no sentido de ser completamente contra o corpo; mas reintegra o corpo como uma categoria (e expressão) do ser humano, manifesto na pessoa. Ou seja, não se justificaria completamente o uso inapropriado do corpo, sem ter em vista a totalidade da existência da pessoa. Para além de uma ética utilitarista, pelo outro lado da via, tenta interpretar os anseios do coração do homem como não só um desejo de prazer, mas como um desejo profundo de amor – a única força que não desnaturaliza o coração do homem, na visão do autor. É necessário ver que há uma exigência de uma integração completa da pessoa nos diversos âmbitos de sua manifestação – pois o Karol não vê o homem como sendo um ser tripartido, mas uma só pessoa, que se manifesta em três níveis dialéticos.

Assim, chega a um propósito firme na sua revisão fenomenológica sobre a antropologia do homem: o homem transcende à realidade hodierna, factual e atual. Para além disso, mas perpassando pelo corpo e pela psiquê, existe em si um valor, um “algo mais”, um algo que não se sacia com o presente, nem com as coisas desse mundo. Isso é manifestado pelo pudor, que não é uma visão cristalizada em ritos ou premissas já pré-concebidas, mas na necessidade interior de o homem se defender de ser visto, ou usado, como simples objeto de prazer – uma alta defesa instintiva, por assim dizer.

Vemos, então, que Karol Wojtyla é muito feliz na sua pesquisa filosófica, pois apresenta ao homem não um recorte da realidade, onde pode ser compreendido e estudado a partir de um relativismo medíocre. Mas oferece ao homem uma oportunidade de saciar seu coração pela vivência concreta do amor, entendida a partir da lógica do dom – dom de si mesmo aos outros. Nesse pequeno recorte filosófico e moral sobre a sexualidade humana, pode-se inferir postura políticas e sociais muito mais sérias, partindo de um pressuposto personalista, sem cair numa visão inocente e idealizada de mundo. Acredito que o personalismo verdadeiro e autêntica seja uma resposta adequada às questões hodiernas no âmbito da sociologia, da política e da sexualidade.

 

8. Referências bibliográficas.

MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Tradução: Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro, 2004.

WOJTYLA, Karol. Amor e Responsabilidade. Tradução: Manuel Alves da Silva. Braga: Pax, 1979.

 

¹ Artigo publicado na revista Dialogando  http://revistadialogando.com.br/images/4._A_QUESTAO_DO_PUDOR_SOB_A_VISAO_PERSONALISTA_DE_KAROL_WOJTYLA_NA_OBRA_AMOR_E_RESPONSABILIDADE_p.55-66.pdf