109ª. O amor humano no plano divino – 23/05/1984

1. Durante o Ano Santo suspendi o desenvolvimento do tema do amor humano no plano divino. Quereria, agora, concluir aquele assunto com algumas considerações sobretudo acerca do ensinamento da Humanae vitae, citando algumas reflexões sobre o Cântico dos Cânticos e o Livro de Tobias. Parece-me, de fato, que aquilo que tenciono expor nas próximas semanas constitui como o coroamento do que expliquei.

O tema do amor esponsal, que une o homem e a mulher, liga em certo sentido esta parte da Bíblia com toda a tradição da “grande analogia”, que, através dos escritos dos Profetas, convergiu no Novo Testamento e, em particular, na Epístola aos Efésiosi, cuja explicação interrompi no início do Ano Santo.

Tornou-se objeto de numerosos estudos exegéticos, comentários e hipóteses. Em relação ao seu conteúdo, aparentemente “profano”, as posições foram diversas: enquanto por um lado se desaconselhava muitas vezes a sua leitura, pelo outro foi a fonte de que se serviram os maiores escritores místicos, e os versículos do Cântico dos Cânticos foram inseridos na Liturgia da Igreja1.

De fato, embora a análise do texto deste Livro nos obrigue a colocar o seu conteúdo fora do âmbito da grande analogia profética, todavia não é possível separá-lo da realidade do sacramento primordial. Não é possível relê-lo senão segundo aquilo que está escrito nos primeiros capítulos do Gênesis, como testemunho do “princípio” —daquele “princípio” a que se referiu Cristo no decisivo colóquio com os fariseusii2. O Cântico dos Cânticos encontra-se, certamente, na esteira daquele sacramento, em que, através da “linguagem do corpo”, é constituído o sinal visível da participação do homem e da mulher na aliança da graça e do amor, oferecida por Deus ao homem. O Cântico dos Cânticos demonstra a riqueza desta “linguagem”, cuja primeira expressão está já no Gênesis 2, 23-25.

2. Logo os primeiros versículos do Cântico nos introduzem imediatamente na atmosfera de todo o “poema”, em que o esposo e a esposa parecem mover-se no círculo traçado pela irradiação do amor. As palavras dos esposos, os seus movimentos, os seus gestos, correspondem à moção interior dos corações. Só através do prima de tal moção é possível compreender a “linguagem do corpo”, em que se efetua aquela descoberta a que o primeiro homem deu expressão diante daquela que tinha sido criada como “uma auxiliar adequada”iii, e que tinha sito tirada, como narra o texto bíblico, de uma das suas “costelas” (a “costela” parece também indicar o coração).

Esta descoberta —já analisada com base em Gênesis 2— no Cântico dos Cânticos reveste-se de toda a riqueza da linguagem do amor humano. O que no capítulo 2 do Gênesisiv foi expresso apenas em poucas palavras, simples e essenciais, aqui desenvolve-se como num amplo diálogo ou, antes, um dueto, em que as palavras do esposo se entrelaçam com as da esposa e se completam reciprocamente. As primeiras palavras do homem no Gênesis, cap. 2, 23, ao ver a mulher criada por Deus, exprimem a maravilha e a admiração, melhor, o sentido de fascínio. E um tal fascínio —que é maravilha e admiração— escorre de uma forma mais ampla através dos versículos do Cântico dos Cânticos. Escorre em onda plácida e homogênea desde o início até ao fim do poema.

3. Mesmo uma análise sumária do texto do Cântico dos Cânticos permite sentir exprimir-se naquele fascínio recíproco a “linguagem do corpo”. Tanto o ponto de partida como o ponto de chegada deste fascínio —recíproca maravilha e admiração— são, de fato, a feminilidade da esposa e a masculinidade do esposo na experiência direta da sua visibilidade. As palavras de amor, pronunciadas por ambos, concentram-se, portanto, no “corpo”, não só porque ele constitui por si mesmo fonte de recíproco fascínio, mas também e sobretudo porque sobre ele se detém direta e imediatamente aquela atração pela outra pessoa, pelo outro “eu” —feminino ou masculino— que no impulso interior do coração gera o amor.

O amor, além disso, produz uma particular experiência do belo, que se concentra naquilo que é visível, mas envolve contemporaneamente a pessoa toda. A experiência do belo gera o prazer, que é recíproco.

“Ó mais bela das mulheres…”v, diz o esposo, e ressoam-lhe as palavras da esposa: “Sou morena, mas formosa, filhas de Jerusalém”3. As palavras do encanto masculino repetem-se continuamente, reaparecem em todos os cinco cânticos do poema. A elas fazem eco expressões semelhantes da esposa.

4. Trata-se de metáforas que hoje podem surpreende-nos. Muitas delas foram tiradas da vida dos pastores; e outras parecem indicar o estado regal do esposo4. A análise daquela linguagem poética deve deixar-se aos peritos. O fato mesmo de usar a metáfora demonstra como, no nosso caso, a “linguagem do corpoprocura apoio e confirmação em todo o mundo visível. Esta é sem dúvida uma “linguagem” que se relê contemporaneamente com o coração e com os olhos do esposo, no ato de especial concentração sobre todo o “eu” feminino da esposa. Este “eu” fala-lhe através de cada traço feminino, suscitando aquele estado de alma, que pode ser definido fascínio, encanto. Este “eu” feminino exprime-se quase sem palavras; todavia, a “linguagem do corpo” expressa sem palavras encontra vivo eco nas palavras do esposo, no seu falar cheio de transporte poético e de metáforas, que testemunham a experiência do belo, um amor de prazer. Se as metáforas do Cântico procuram para este belo uma analogia nas diversas coisas do mundo visível (neste mundo, que é o “mundo próprio” dos esposos), ao mesmo tempo parecem indicar a insuficiência de cada uma delas em particular: “Toda és formosa, ó amiga minha, e não há mancha em ti”vi: —com esta frase, o esposo termina o seu canto, deixando todas as metáforas, para se dedicar à única, mediante a qual a “linguagem do corpo” parece exprimir aquilo que é mais próprio da feminilidade e o todo da pessoa.

 

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1 “O Cântico deve, portanto, ser tomado por aquilo que é de modo manifesto: um canto de amor humano”. Esta frase de J. Winandy, OSB, exprime a convicção de exegetas cada vez mais numerosos (J. Winandy, Le Cantique des Cantiques, Poème d’amour mué en écrit de Sagesse, Maredsous 1960, p. 26).

M. Dubarle acrescenta: “A exegese católica, que algumas vezes apelou para o sentido óbvio dos textos bíblicos para textos de grande importância dogmática, não deveria abandoná-lo com ligeireza quando se trata do Cântico”. Referindo-se à frase de G. Gerleman, Dubarle continua: “O Cântico celebra o amor do homem e da mulher sem lhe unir algum elemento mitológico, mas considerando-o simplesmente no seu nível e na sua especificidade. Encontra-se implicitamente, sem insistências didáticas, o equivalente da fé javeísta (dado que as potências sexuais não eram postas sob o patrocínio das divindades estrangeiras e não eram atribuídas a Javé mesmo, que aparecia como transcendente a este âmbito). O poema estava, pois, em tácita harmonia com as convicções fundamentais da fé de Israel.

“A mesma atitude aberta, objetiva, não expressamente religiosa em relação à beleza física e ao amor sexual encontrava-se nalguma narração do documento javeísta. Estas diversas semelhanças mostram que o pequeno livro não está tão isolado no conjunto da literatura bíblica como às vezes foi afirmado” (A. M. Dubarle, Le Cantique des Cantiques dans l’exégèse récente, em: Aux grands carrejours de la Révélation et de l’exégèse de L’Ancien Testament, Recherches bibliques VIII, Louvain 1967, pp. 149, 151).

2 Isto não exclui, evidentemente, a possibilidade de falar de um “significado mais pleno” no Cântico dos Cânticos.

Cf., p. ex.: “Os amantes no êxtase do amor parecem ocupar e preencher todo o livro, como protagonistas únicos… Portanto, Paulo, lendo as palavras do Gênesis ‘Por isso, o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e passarão os dois a ser uma só carne’ (Ef 5, 31) não nega o sentido real e imediato das palavras que se referem ao matrimônio humano; mas a este primeiro sentido acrescenta um mais profundo com uma referência imediata: ‘Digo-o em relação a Cristo e à Igreja’: confessando que ‘é grande este mistério’ (Ef 5, 32).

Alguns leitores do Cântico dos Cânticos lançaram-se a ler imediatamente nas suas palavras um amor desencarnado. Esqueceram os amantes, ou petrificaram-nos em ficções, em chave intelectual… multiplicaram as diminutas correspondências alegóricas em cada frase, palavra ou imagem… Não é este o caminho justo. Quem não crê no amor humano dos esposos, quem deve pedir perdão do corpo, não tem o direito de se elevar… Com a afirmação do amor humano, ao contrário, é possível descobrir nele a revelação de Deus” (L. Alonso-Schökel, Cantico dei Cantici – Introduzione, em: La Bibbia, Parola di Dio scritta per noi. Testo ufficiale della CEI, vol. II, Turim 1980, Marietti, pp. 425-427).

3 Para explicar a inclusão de um canto de amor no cânone bíblico, os exegetas judaicos já desde os primeiros séculos d.C. viram no Cântico dos Cânticos uma alegoria do amor de Javé para com Israel, ou uma alegoria da história do povo eleito, em que este amor se manifesta e, na Idade Média, a alegoria da Sabedoria divina e do homem que a procura.

A exegese cristã, desde os primeiros Padres, alargava tal idéia a Cristo e à Igreja (cf. Hipólito e Orígenes), ou à alma individual do cristão (cf. São Gregório de Nissa) ou a Maria (cf. Santo Ambrósio) e também à sua Imaculada Conceição (cf. Ricardo de San Vítor). São Bernardo via no Cântico dos Cânticos um diálogo da Palavra de Deus com a alma, e isto levou ao conceito de São João da Cruz sobre os esponsais místicos.

A única exceção, nesta longa tradição, foi, no século IV, Teodoro de Mopsuestia, que viu no Cântico dos Cânticos um poema, que canta o amor humano de Salomão pela filha do Faraó.

Lutero, por sua vez, referiu a alegoria a Salomão e ao seu reino. Nos últimos séculos, apareceram novas hipóteses. Considerou-se, por exemplo, o Cântico dos Cânticos como um drama da fidelidde mantida por uma esposa para com um pastor, apesar de todas as tentações, ou como um conjunto de cantos executados durante os ritos populares das núpcias ou mítico-rituais, que representavam o culto de Adonis-Tammuz. Viu-se, até, no Cântico, a descrição de um sonho, baseando-se quer nas idéias antigas sobre o significado dos sonhos, quer também na psicanálise.

No século XX, voltou-se às mais antigas tradições alegóricas (cf. Bea), vendo de novo no Cântico dos Cânticos a história de Israel (cf. Jouon, Ricciotti), e um midrash desenvolvido (como lhe chama Robert no seu comentário, que constitui uma “suma” da interpretação do Cântico).

Contemporaneamente, todavia, começou-se a ler o livro no seu significado mais evidente, como um poema que exalta o natural amor humano (cf. Rowley, Young, Laurin).

O primeiro a demonstrar de que modo tal significado se relaciona com o conteúdo bíblico do cap. 2 do Gênesis foi Karl Barth. Dubarle parte da premissa que um amor humano fiel e feliz revela ao homem os atributos do amor divino e Vanden Oudenrijn vê no Cântico dos Cânticos o antitipo daquele sentido típico que aparece na Epístola aos Efésios 5, 23. Murphy, excluindo toda a explicação alegórica e metafórica, salienta que o amor humano, criado e abençoado por Deus, pode ser tema de um livro bíblico inspirado.

D. Lys observa que o conteúdo do Cântico dos Cânticos é, ao mesmo tempo, sexual e sacral. Quando se prescinde da segunda característica, chega-se a tratar o Cântico como uma composição erótica puramente laica, e quando se ignora a primeira, cai-se no alegorismo. Só juntando estes dois aspectos é possível ler o livro de modo justo.

Ao lado das obras dos autores acima citados, e de modo especial no que se refere a um ensaio da história da exegese do Cântico dos Cânticos, cf. H. H. Rowley, The interpretation of the Song os Songs, em: The Servant of the Lord and other Essays on the Old Testament, Londres 1962, pp. 191-263; A.-M. Dubarle, Le Cantique des Cantiques dans l’exégèse de L’Ancien Testament, Recherches bibliques VIII, Louvain 1967, pp. 139-151; D. Lys, Le plus beau chant de la création. Commentaire du Cantique des Cantiques, Lectio divina 51, Paris 1968, Du Cerf, pp. 31-35; M. H. Pope, Song of Songs, The Anchor Bible, Garden City, N.Y. 1977, Doubleday, pp. 113-234.

4 Para explicar a inclusão de um canto de amor no cânone bíblico, os exegetas judaicos já desde os primeiros séculos d.C. viram no Cântico dos Cânticos uma alegoria do amor de Javé para com Israel, ou uma alegoria da história do povo eleito, em que este amor se manifesta e, na Idade Média, a alegoria da Sabedoria divina e do homem que a procura.

A exegese cristã, desde os primeiros Padres, alargava tal idéia a Cristo e à Igreja (cf. Hipólito e Orígenes), ou à alma individual do cristão (cf. São Gregório de Nissa) ou a Maria (cf. Santo Ambrósio) e também à sua Imaculada Conceição (cf. Ricardo de San Vítor). São Bernardo via no Cântico dos Cânticos um diálogo da Palavra de Deus com a alma, e isto levou ao conceito de São João da Cruz sobre os esponsais místicos.

A única exceção, nesta longa tradição, foi, no século IV, Teodoro de Mopsuestia, que viu no Cântico dos Cânticos um poema, que canta o amor humano de Salomão pela filha do Faraó.

Lutero, por sua vez, referiu a alegoria a Salomão e ao seu reino. Nos últimos séculos, apareceram novas hipóteses. Considerou-se, por exemplo, o Cântico dos Cânticos como um drama da fidelidde mantida por uma esposa para com um pastor, apesar de todas as tentações, ou como um conjunto de cantos executados durante os ritos populares das núpcias ou mítico-rituais, que representavam o culto de Adonis-Tammuz. Viu-se, até, no Cântico, a descrição de um sonho, baseando-se quer nas idéias antigas sobre o significado dos sonhos, quer também na psicanálise.

No século XX, voltou-se às mais antigas tradições alegóricas (cf. Bea), vendo de novo no Cântico dos Cânticos a história de Israel (cf. Jouon, Ricciotti), e um midrash desenvolvido (como lhe chama Robert no seu comentário, que constitui uma “suma” da interpretação do Cântico).

Contemporaneamente, todavia, começou-se a ler o livro no seu significado mais evidente, como um poema que exalta o natural amor humano (cf. Rowley, Young, Laurin).

O primeiro a demonstrar de que modo tal significado se relaciona com o conteúdo bíblico do cap. 2 do Gênesis foi Karl Barth. Dubarle parte da premissa que um amor humano fiel e feliz revela ao homem os atributos do amor divino e Vanden Oudenrijn vê no Cântico dos Cânticos o antitipo daquele sentido típico que aparece na Epístola aos Efésios 5, 23. Murphy, excluindo toda a explicação alegórica e metafórica, salienta que o amor humano, criado e abençoado por Deus, pode ser tema de um livro bíblico inspirado.

D. Lys observa que o conteúdo do Cântico dos Cânticos é, ao mesmo tempo, sexual e sacral. Quando se prescinde da segunda característica, chega-se a tratar o Cântico como uma composição erótica puramente laica, e quando se ignora a primeira, cai-se no alegorismo. Só juntando estes dois aspectos é possível ler o livro de modo justo.

Ao lado das obras dos autores acima citados, e de modo especial no que se refere a um ensaio da história da exegese do Cântico dos Cânticos, cf. H. H. Rowley, The interpretation of the Song os Songs, em: The Servant of the Lord and other Essays on the Old Testament, Londres 1962, pp. 191-263; A.-M. Dubarle, Le Cantique des Cantiques dans l’exégèse de L’Ancien Testament, Recherches bibliques VIII, Louvain 1967, pp. 139-151; D. Lys, Le plus beau chant de la création. Commentaire du Cantique des Cantiques, Lectio divina 51, Paris 1968, Du Cerf, pp. 31-35; M. H. Pope, Song of Songs, The Anchor Bible, Garden City, N.Y. 1977, Doubleday, pp. 113-234.

i Cf. Ef 5, 21-23.

ii Cf. Mt 19, 4.

iii Cf. Gn 2, 20 e 23.

iv Vv. 23-25.

vCt 1, 8.

viCt 4, 7.