103ª. O matrimônio como sacramento esclarece o significado esponsal e redentor do amor – 15/12/1982

1. O Autor da Epístola aos Efésios, como já vimos, fala de um “grande mistério”, unido ao sacramento primordial mediante a continuidade do plano salvífico de Deus. Também ele se refere ao “princípio”, como fizera Cristo no colóquio com os fariseusi, citando as mesmas palavras: “Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne”ii. Aquele “grande mistério” é, sobretudo, o mistério da união de Cristo com a Igreja, que o Apóstolo apresenta à semelhança da união dos cônjuges: “Digo-o em relação a Cristo e à Igreja”iii. Encontramo-nos no âmbito da grande analogia, em que o matrimônio como sacramento, por um lado, é pressuposto e, por outro, redescoberto. É pressuposto como sacramento do “princípio” humano, unido ao mistério da criação. E é por outro lado redescoberto como fruto do amor esponsal de Cristo e da Igreja, ligado com o mistério da Redenção.

2. O Autor da Epístola aos Efésios, dirigindo-se diretamente aos cônjuges, exorta-os a plasmar a sua relação recíproca no modelo da união esponsal de Cristo e da Igreja. Pode-se dizer que —pressupondo a sacramentalidade do matrimônio no seu significado primordial— lhes prescreve que aprendam novamente este sacramento da união esponsal de Cristo e da Igreja: “Maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja e por ela Se entregou, para a santificar…”iv. Este convite, dirigido pelo Apóstolo aos cônjuges cristãos, tem a sua plena motivação enquanto eles, mediante o matrimônio como sacramento, participam do amor salvífico de Cristo, que se exprime ao mesmo tempo como amor esponsal d’Ele com a Igreja. À luz da Epístola aos Efésios —precisamente mediante a participação deste amor salvífico de Cristoé confirmado e, ao mesmo tempo, renovado o matrimônio como sacramento do “princípio” humano, isto é, sacramento em que o homem e a mulher, chamados a tornarem-se “uma só carne”, participam do amor criador de Deus mesmo. E participam dele, quer pelo fato de que, sendo criados à imagem de Deus, foram chamados em virtude desta imagem a uma particular união (communio personarum), quer porque esta mesma união foi desde o princípio abençoada com a bênção da fecundidadev.

3. Toda esta estrutura originária e estável do matrimônio como sacramento do mistério da criação —segundo o “clássico” texto da Epístola aos Efésiosvi— renova-se no mistério da Redenção, quando aquele mistério assume o aspecto da gratificação esponsal da Igreja por parte de Cristo. Aquela forma originária e estável do matrimônio, renova-se quando os esposos o recebem como sacramento da Igreja, alcançando a nova profundidade da gratificação do homem por parte de Deus, que se desvelou e abriu com o mistério da Redenção, quando “Cristo amou a Igreja, e por ela Se entregou, para a santificar…”vii. Renova-se aquela imagem originária e estável do matrimônio como sacramento, quando os cônjuges cristãos —conscientes da autêntica profundidade da “redenção do corpo”— se unem “no temor de Cristo”viii.

4. A imagem paulina do matrimônio, inscrita no “grande mistério” de Cristo e da Igreja, aproxima a dimensão redentora do amor da dimensão esponsal. Em certo sentido, une estas duas dimensões numa só. Cristo tornou-se esposo da Igreja, uniu-se a ela como sua esposa, porque “Se entregou por ela”ix. Mediante o matrimônio como sacramento (como um dos sacramentos da Igreja) ambas as dimensões do amor, a esponsal e a redentora, juntamente com a graça do sacramento, penetram na vida dos cônjuges. O significado esponsal do corpo na sua masculinidade e feminilidade, que se manifestou pela primeira vez no mistério da criação no quadro da inocência original do homem, é relacionado, na imagem da Epístola aos Efésios, com o significado redentor, e deste modo confirmado e, em certo sentido, “novamente criado”.

5. Isto é importante a respeito do matrimônio, da vocação cristã dos maridos e das esposas. O texto da Epístola aos Efésiosx dirige-se diretamente a eles e fala sobretudo a eles. Todavia, aquela relação do significado esponsal do corpo com o seu significado “redentor” é igualmente essencial e válida para a hermenêutica do homem em geral: para o problema fundamental da compreensão dele e da autocompreensão do seu ser no mundo. É óbvio que não podemos excluir deste problema o interrogativo sobre o sentido de ser corpo, sobre o sentido de ser, enquanto corpo, homem e mulher. Estes interrogativos foram postos, pela primeira vez, em relação com a análise do “princípio” humano, no contexto do Livro do Gênesis. Foi aquele contexto humano mesmo, em certo sentido, a exigir que o fossem. Igualmente, requer o “clássico” texto da Epístola aos Efésios. E se o “grande mistério” da união de Cristo com a Igreja nos obriga a relacionar o significado esponsal do corpo com o seu significado redentor, em tal relação os cônjuges encontram a resposta ao interrogativo sobre o sentido se “ser corpo”, e não só eles, embora se dirija sobretudo a eles este texto da Epístola do Apóstolo.

6. A imagem paulina do “grande mistério” de Cristo e da Igreja fala indiretamente também da “continência por amor do Reino dos Céus”, em que ambas as dimensões do amor, esponsal e redentor, se unem reciprocamente num modo diverso do matrimonial, segundo diversas proporções. Não é, porventura, aquele amor esponsal, com o qual Cristo “amou a Igreja” —sua esposa—, “e por ela Se entregou” igualmente a mais plena encarnação do ideal da “continência por amor do Reino dos Céusxi? Não encontram apoio precisamente nela todos aqueles —homens e mulheres— que, escolhendo o mesmo ideal, desejam ligar a dimensão esponsal do amor com a dimensão redentora, segundo o modelo de Cristo mesmo? Eles desejam confirmar com a sua vida que o significado esponsal do corpo —da sua masculinidade ou feminilidade—, profundamente inscrito na estrutura essencial da pessoa humana, foi aberto de um modo novo, por parte de Cristo e com o exemplo da sua vida, à esperança unida à redenção do corpo. Assim, portanto, a graça do mistério da Redenção frutifica também —aliás, frutifica de modo particular— com a vocação para a continência “por amor do Reino dos Céus”.

7. O texto da Epístola aos Efésiosxii não se refere a isto explicitamente. É dirigido aos cônjuges e construído segundo a imagem do matrimônio, que através da analogia explica a união de Cristo com a Igreja: união no amor redentor e esponsal ao mesmo tempo. Não é, porventura, precisamente este amor que, como expressão viva e vivificante do mistério da Redenção, ultrapassa o círculo dos destinatários da Epístola circunscritos pela analogia do matrimônio para englobar cada homem e, em certo sentido, toda a criação, como indica o texto paulino sobre a “redenção do corpo” na Epístola aos Romanosxiii? O sacramentum magum em tal sentido é nada menos que um novo sacramento do homem em Cristo e na Igreja: sacramento “do homem e do mundo”, tal como a criação do homem, varão e mulher, à imagem de Deus foi o sacramento originário do homem e do mundo. Neste novo sacramento da redenção está inscrito organicamente o matrimônio, tal como foi inscrito no sacramento originário da criação.

8. O homem, que “desde o princípio” é varão e mulher, deve procurar o sentido da sua existência e o sentido da sua humanidade chegando até ao mistério da criação através da realidade da Redenção. Ali encontra-se também a resposta essencial ao interrogativo sobre o significado do corpo humano, sobre o significado da masculinidade e da feminilidade da pessoa humana. A união de Cristo com a Igreja consente-nos compreender de que modo o significado esponsal do corpo se completa com o significado redentor, e isto nos diversos caminhos da vida e nas diversas situações: não só no matrimônio ou na “continência” (ou seja, virgindade ou celibato), mas também, por exemplo, no multiforme sofrimento humano, aliás: no próprio nascimento e morte do homem. Através do “grande mistério”, de que trata a Epístola aos Efésios, através da nova aliança de Cristo com a Igreja, o matrimônio é novamente inscrito naquele “sacramento do homem” que abarca o universo, no sacramento do homem e do mundo, que graças às forças da “redenção do corpo” se modela segundo o amor esponsal de Cristo e da Igreja até chegar à realização definitiva do reino do Pai.

O matrimônio como sacramento permanece parte viva e vivificante deste processo salvífico.

i Cf. Mt 19, 8.

iiGn 2, 24.

iiiEf 5, 32.

ivEf 5, 25-26.

v Cf. Gn 1, 28.

viEf 5, 21-33.

viiEf 5, 25-26.

viiiEf 5, 21.

ixEf 5, 25.

x 5, 21-33.

xi Cf. Mt 19, 12.

xii 5, 22-33.

xiii Cf. Rm 8, 23.