88ª. O mistério de Cristo na Igreja e o chamamento a sermos imitadores de Deus – 04/08/1982

1. Na reflexão precedente citei o capítulo quinto da Epístola aos Efésios (vv. 22-23). Ora, depois do olhar introdutório para este texto “clássico”, convém examinar o modo como tal passagem —tão importante, seja para o mistério da Igreja, seja para a sacramentalidade do matrimônio— está enquadrado no contexto imediato de toda a epístola.

Sabendo, embora, que existe uma série de problemas discutidos entre os Biblistas a respeito dos destinatários, da paternidade e também da data da sua composição, é necessário verificar que a Epístola aos Efésios tem uma estrutura muito significativa. O Autor inicia esta epístola apresentando o eterno plano da salvação do homem em Jesus Cristo.

“… Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo… n’Ele nos escolheu… para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos na caridade, predestinando-nos para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por Sua livre vontade, para fazer resplandecer a Sua maravilhosa graça, pela qual nos tornou agradáveis em Seu amado Filho. É n’Ele que temos a redenção pelo Seu sangue, a remissão dos pecados segundo a riqueza da Sua graça… para ser realizado o Seu beneplácito ao completarem-se os tempos: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas…”i.

O Autor da Epístola aos Efésios, depois de apresentar com palavras cheias de gratidão um plano que, desde a eternidade, está em Deus e, ao mesmo tempo, se realiza já na vida da humanidade, pede ao Senhor que os homens (e diretamente os destinatários da epístola) conheçam plenamente Cristo, como cabeça: “… constituiu-o chefe de toda a Igreja, que é o Seu corpo e o complemento d’Aquele que preenche tudo em todos”ii. A humanidade pecadora é chamada a uma vida nova em Cristo, no qual os pagãos e os judeus devem unir-se como num temploiii. O Apóstolo é pregoeiro do mistério de Cristo entre os pagãos, a quem sobretudo se dirige na sua epístola, dobrando “os joelhos diante do Pai” e pedindo que lhes conceda, “segundo as riquezas da Sua glória, que sejam poderosamente fortalecidos pelo Seu Espírito quanto ao crescimento do homem interior”iv.

2. Depois deste tão profundo e sugestivo desvelar do mistério de Cristo na Igreja, o Autor passa, na segunda parte da epístola, a diretrizes mais particularizadas, que visam a definir a vida cristã como vocação que brota do plano divino, de que falamos precedentemente, isto é, do mistério de Cristo na Igreja. Também aqui o Autor toca diversas questões sempre importantes para a vida cristã. Exorta a que se conserve a unidade, sublinhando, ao mesmo tempo, que tal unidade se constrói sobre a multiplicidade e diversidade dos dons de Cristo. A cada um é dado um dom diverso, mas todos, como cristãos, devem “revestir-se do homem novo, criado em conformidade com Deus, na justiça e na santidade verdadeiras”v. Com isto, está ligado um chamamento categórico para debelar os vícios e adquirir as virtudes correspondentes à vocação que todos obtiveram em Cristovi. O Autor escreve: “Sede imitadores de Deus, como muito amados. Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo que nos amou e por nós se entregou… em sacrifício”vii.

3. No capítulo quinto da Epístola aos Efésios estes chamamentos tornam-se ainda mais particularizados. O Autor condena severamente os abusos pagãos, escrevendo: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como Filhos da luz”viii. E depois: “Não sejais imprudentes, mas procurai conhecer qual é a vontade de Deus. E não vos embriagueis com vinho (referência ao Livro dos Provérbios 23, 31)… mas enchei-vos do Espírito, recitando entre vós, salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vossos corações”ix. O Autor da epístola quer explicar com estas palavras o clima de vida espiritual, que deveria animar todas as comunidades cristãs. Nesta altura, passa à comunidade doméstica, isto é, à família Escreve de fato: “Enchei-vos do Espírito… dando sempre graças por tudo a Deus Pai em nome do Senhor nosso Jesus Cristo. Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo”x. E assim entramos precisamente naquela passagem da epístola, que será tema da nossa particular análise. Poderemos verificar facilmente uma coisa: o conteúdo essencial deste texto “clássico” aparece no cruzamento dos dois principais fios condutores de toda a epístola aos Efésios: o primeiro, o do mistério de Cristo que, como expressão do plano divino para a salvação do homem, se realiza na Igreja; o segundo, o da vocação cristã como modelo de vida de cada batizado e de cada comunidade, correspondente ao mistério de Cristo, ou seja, ao plano divino para a salvação do homem.

4. No contexto imediato da passagem citada, o Autor da epístola procura explicar de que modo a vocação cristã assim concebida deve realizar-se e manifestar-se nas relações entre todos os membros de uma família; portanto, não só entre o marido e a mulher (de que trata precisamente a passagem do capítulo 5, 22-23 por nós escolhida), mas também entre os pais e os filhos. O Autor escreve: “Filhos, obedecei aos vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra teu pai e tua mãe —que é o primeiro mandamento que tem uma promessa— para que sejas feliz e tenhas uma vida longa sobre a terra. E vós, pais, não exaspereis os vossos filhos, mas educai-os na disciplina e correção segundo o Senhor”xi. Em seguida, fala-se dos deveres dos servos para com os seus senhores e, vice-versa, dos senhores para com os servos, isto é, quanto aos escravosxii, o que é referido também às diretrizes quanto à família em sentido lato. Ela, de fato, era constituída não só pelos pais e pelos filhos (segundo o suceder-se das gerações), mas pertenciam a ela em sentido lato também os servos de ambos os sexos: escravos e escravas.

5. Assim, portanto, o texto da Epístola aos Efésios, que nos propomos fazer objeto de uma aprofundada análise, encontra-se no imediato contexto dos ensinamentos sobre as obrigações morais da sociedade familiar (as chamadas “Haustaflen” ou códigos domésticos segundo a definição de Lutero). Análogas instruções encontramos também noutras epístolas (por exemplo, na dirigida aos Colossenses, 3, 18-4, e na Primeira de Pedro 2, 13-3, 7). Mais ainda, tal contexto imediato faz parte do nosso texto, pois também o “clássico” texto por nós escolhido trata dos recíprocos deveres dos maridos e das mulheres. Todavia, é preciso notar que a passagem 5, 22-23 da Epístola aos Efésios está centrada de per si exclusivamente nos cônjuges e no matrimônio, e tudo quanto diz respeito à família também em sentido lato encontra-se já no contexto. Antes, porém, de nos aplicarmos a uma análise aprofundada do texto convém acrescentar que a epístola inteira acaba com um estupendo incitamento à batalha espiritualxiii, com breves recomendaçõesxiv e um voto finalxv. Esse apelo para a batalha espiritual parece estar logicamente fundado na argumentação de toda a epístola. É, por assim dizer, a explícita realização dos seus principais fios condutores.

Tendo, assim, diante dos olhos a estrutura complexa de toda a Epístola aos Efésios, procuraremos na primeira análise esclarecer o significado das palavras: “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo”xvi, dirigidas aos maridos e às mulheres.

iEf 1, 3.4-7.10.

ii 1, 22-23.

iii Cf. 2, 11-21.

iv 3, 14.16.

v 4, 24.

vi Cf. 4, 25-32.

vii 5, 1-2.

viii 5, 8.

ix 5, 17-19.

x 5, 18-21.

xi 6, 1-4.

xii Cf. 6, 5-9.

xiii Cf. 6, 10-20.

xiv Cf. 6, 21-22.

xv Cf. 6, 23-24.

xvi 5, 21.