67ª. A perfeita realização da pessoa – 09/12/1981

1. “Na ressurreição nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos, mas serão como anjos de Deus no céu”i. “São semelhantes aos anjos, e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus”ii.

Procuremos compreender estas palavras de Cristo relativas à futura ressurreição, para delas tirarmos conclusões sobre a espiritualização do homem, diferente da espiritualização da vida terrena. Poder-se-ia aqui falar também de um perfeito sistema de forças nas relações recíprocas entre o que no homem é espiritual e o que é corpóreo. O homem “histórico”, em seguida ao pecado original, experimenta uma múltipla imperfeição deste sistema de forças, que se manifesta nas bem conhecidas palavras de São Paulo: “Outra lei vejo nos meus membros, a lutar contra a lei da minha razão”iii.

O homem “escatológico” estará livre dessa “oposição”. Na ressurreição o corpo voltará à perfeita unidade e harmonia com o espírito: o homem já não experimentará a oposição entre o que nele é espiritual e o que é corpóreo. A “espiritualização” significa não só que o espírito dominará o corpo, mas, diria, que ele penetrará inteiramente no corpo, e que as forças do espírito penetrarão nas energias do corpo.

2. Na vida terrena, o domínio do espírito sobre o corpo —e a simultânea subordinação do corpo ao espírito— pode, como fruto de um perseverante trabalho sobre nós mesmos, exprimir uma personalidade espiritualmente amadurecida; todavia, o fato de as energias do espírito conseguirem dominar as forças do corpo não tira a possibilidade mesma da recíproca oposição entre elas. Mas a “espiritualização”, a que aludem os Evangelhos sinóticosiv nos textos aqui analisados, encontra-se já fora de tal possibilidade. É, portanto, uma espiritualização perfeita, em que é completamente eliminada a possibilidade de “outra lei lutar contra a lei da… razão”v. Este estado que —como é evidente— se diferencia essencialmente (e não só quanto ao grau) daquilo que experimentamos na vida terrena, não significa, todavia, alguma “desencarnação” do corpo nem, por conseguinte, uma “desumanização” do homem. Antes, ao contrário, significa a sua perfeita “realização”. De fato, no ser composto, psicossomático, que é o homem, a perfeição não pode consistir numa recíproca oposição do espírito e do corpo, mas numa profunda harmonia entre eles, na salvaguarda do primado do espírito. No “outro mundo”, tal primado será realizado e manifestar-se-á numa perfeita espontaneidade, privada de qualquer oposição por parte do corpo. Todavia, isto não se entende como definitiva “vitória” do espírito sobre o corpo. A ressurreição consistirá na perfeita participação de tudo o que no homem é corpóreo naquilo que nele é espiritual. Ao mesmo tempo, consistirá na perfeita realização do que no homem é pessoal.

3. As palavras dos sinóticos asseguram que o estado do homem no “outro mundo” será não só estado de perfeita espiritualização, mas também de fundamental “divinização” da sua humanidade. Os “filhos da ressurreição” —como lemos em Lucas 20, 36— não só “são iguais aos anjos”, mas também “são filhos de Deus”. Pode-se tirar daí a conclusão de o grau de espiritualização, próprio do homem “escatológico”, ter a sua fonte no grau da sua “divinização”, incomparavelmente superior àquela que se pode conseguir na vida terrena. É necessário acrescentar que se trata não só de um grau diverso, mas em certo sentido doutro gênero de “divinização”. A participação na natureza divina, a participação na vida interior de Deus mesmo, penetração e permeação daquilo que é essencialmente humano por parte do que é essencialmente divino, atingirá, então, o seu auge, pelo qual a vida do espírito humano chegará a tal plenitude que antes lhe era absolutamente inacessível. Esta nova espiritualização será, portanto, fruto da graça, isto é, de Deus se comunicar, na sua mesma divindade, não só à alma, mas a toda a subjetividade psicossomática do homem. Falamos aqui da “subjetividade” (e não só da “natureza”), porque aquela divinização deve entender-se não só como um “estado interior” do homem (isto é: do sujeito), capaz de ver Deus “face a face”, mas também como nova formação de toda a subjetividade pessoal do homem à medida da união com Deus no Seu mistério trinitário e da intimidade com Ele na perfeita comunhão das pessoas. Esta intimidade —com toda a sua intensidade subjetiva— não absorverá a subjetividade pessoal do homem, antes, pelo contrário, fá-la-á ressaltar numa media incomparavelmente maior e mais plena.

4. A “divinização” no “outro mundo”, indicada pelas palavras de Cristo, trará ao espírito humano tal “gama de experiência” da verdade e do amor, que o homem nunca poderia atingir na vida terrena. Quando Cristo fala da ressurreição, demonstra ao mesmo tempo que nesta experiência escatológica da verdade e do amor, unida à visão de Deus “face a face”, participará também, a seu modo, o corpo humano. Quando Cristo diz que os que participarem na futura ressurreição não tomarão mulher nem maridovi, as Suas palavras —como já antes foi observado— afirmam não só o fim da história terrena ligada ao matrimônio e à procriação, mas parecem também desvelar o novo significado do corpo. É, porventura, possível, neste caso, pensar —a nível de escatologia bíblicano descobrimento do significado “esponsal” do corpo, sobretudo como significado “virginal” de ser, quanto ao corpo, homem ou mulher? Para responder a esta pergunta, que deriva das palavras referidas pelos sinóticos, convém penetrar mais a fundo na essência mesma do que será a visão beatífica do Ser Divino, visão de Deus “face a face” na vida futura. É necessário também deixarmo-nos guiar por aquela “gama de experiência” da verdade e do amor, que ultrapassa os limites das possibilidades cognoscitivas e espirituais do homem na temporalidade, e de que ele se tornará participante no “outro mundo”.

5. Esta “experiência escatológica” do Deus Vivo concentrará em si não só todas as energias espirituais do homem, mas, ao mesmo tempo, desvelar-lhe-á, de modo vivo e experimental, “o comunicar-se” de Deus a tudo o que é criado e, em particular, ao homem; o que é mais pessoal “dar-se”, na sua mesma divindade, ao homem: àquele ser, que desde o princípio traz em si a imagem e semelhança d’Ele. Assim, portanto, no “outro mundo” o objeto da “visão” será aquele mistério oculto da eternidade no Pai, mistério que no tempo foi revelado em Cristo, para completar-se incessantemente por obra do Espírito Santo; aquele mistério tornar-se-á, se assim nos podemos exprimir, o conteúdo da experiência escatológica e a “forma” da inteira existência humana na dimensão do “outro mundo”. A vida eterna deve entender-se em sentido escatológico, isto é, como plena e perfeita experiência daquela graça (charis) de Deus, da qual o homem se torna participante por meio da fé durante a vida terrena, e que, pelo contrário, deverá não só revelar-se àqueles que participarão do “outro mundo” em toda a sua penetrante profundidade, mas ser também experimentada na sua realidade beatificante.

Aqui suspendemos a nossa reflexão centrada sobre as palavras de Cristo relativas à futura ressurreição dos corpos. Nesta “espiritualização” e “divinização”, em que o homem participará na ressurreição, descobrimos —numa dimensão escatológica— as mesmas características que qualificavam o significado “esponsal” do corpo; descobrimo-lo no encontro com o mistério de Deus Vivo, que se desvela mediante a visão d’Ele “face a face”.

iMt 22, 30; analogamente Mc 12, 25.

iiLc 20, 36.

iiiRm 7, 23.

ivMt 22, 30; Mc 12, 25; Lc 20, 34-35.

v Cf. Rm 7, 23.

vi Cf. Mc 12, 25.