53ª. A vida segundo o o Espírito fundada na verdadeira liberdade – 14/01/1981

1. São Paulo escreve na Epístola aos Gálatas: “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade, pois toda a lei se encerra num só preceito: amarás ao teu próximo como a ti mesmo”i. Há uma semana, detivemo-nos neste enunciado; todavia, retomamo-lo hoje, em relação com o argumento principal das nossas reflexões.

Se bem que a passagem citada se refira primeiramente ao assunto da justificação, todavia o Apóstolo tende explicitamente aqui para fazer compreender a dimensão ética da contraposição “corpo-espírito”, isto é, entre a vida segundo a carne, e a vida segundo o espírito. E, exatamente aqui, toca ele o ponto essencial, desvelando quase as mesmas raízes antropológicas do ethos evangélico. Se, de fato, “toda a Lei” (lei moral do Antigo Testamento) “encontra a sua plenitude” no mandamento da caridade, a dimensão do novo ethos evangélico não é senão apelo dirigido à liberdade humana, apelo à sua plena prática e, em certo sentido, à mais plena “utilização” da potencialidade do espírito humano.

2. Poderia parecer que Paulo contrapõe somente a liberdade à Lei e a Lei à liberdade. Todavia, uma análise aprofundada do texto demonstra que São Paulo na Epístola aos Gálatas sublinha, primeiro que tudo, a subordinação ética da liberdade àquele elemento em que se completa toda a Lei, ou seja, ao amor, que é o conteúdo do maior mandamento do Evangelho. “Cristo libertou-nos para que ficássemos livres”, exatamente no sentido em que Ele nos manifestou a subordinação ética (e teológica) da liberdade à caridade e relacionou a liberdade com o mandamento do amor. Entender assim a vocação à liberdade (“Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade”ii) significa configurar o ethos, em que se realiza a vida “segundo o Espírito”. Existe, de fato, também o perigo de entender a liberdade de modo errôneo, e Paulo aponta-o com clareza, escrevendo no mesmo contexto: “Não tomeis a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade”iii.

3. Por outras palavras: Paulo coloca-nos de sobreaviso a respeito da possibilidade de usarmos mal da liberdade, uso em contraste com a libertação do espírito humano realizada por Cristo, a qual contradiga a liberdade com que “Cristo nos libertou”. De fato, Cristo realizou e manifestou a liberdade que encontra a plenitude na caridade, a liberdade graças à qual somos “servos uns dos outros”; por outras palavras: a liberdade que se torna fonte de “obras” novas e de “vida” segundo o Espírito. A antítese e, em certo modo, a negação de tal uso da liberdade dão-se quando ela se torna para o homem “pretexto para servir a carne”. A liberdade torna-se, então, fonte de “obras” e de “vida” segundo a carne. Deixa de ser a autêntica liberdade, para a qual “Cristo nos libertou” e torna-se “pretexto para servirmos a carne”, fonte (ou instrumento) de um especial “jugo” por parte da soberba da vida, concupiscência dos olhos e da concupiscência da carne. Quem deste modo vive “segundo a carne“, isto é, se sujeita —ainda que de modo não de todo consciente— à tríplice concupiscência, e em particular a concupiscência da carne, deixa de ser capaz daquela liberdade para a qual “Cristo nos libertou”; deixa também de ser idôneo para o verdadeiro dom de si, que é fruto e é expressão de tal liberdade. Deixa, além disso, de ser capaz daquele dom, que está organicamente relacionado com o significado esponsal do corpo humano, de que tratamos nas precedentes análises do Livro do Gênesisiv.

4. Deste modo, a doutrina paulina acerca da pureza, doutrina em que encontramos o fiel e autêntico eco do Sermão da Montanha, consente-nos ver a “pureza de coração” evangélica e cristã, numa perspectiva mais ampla, e sobretudo permite-nos relacioná-la com a caridade em que toda “a lei encontra a sua plenitude”. Paulo, de modo análogo ao usado por Cristo, conhece um significado duplo da “pureza” (e da “impureza”): sentido genérico e sentido específico. No primeiro caso, é “puro” tudo o que é moralmente bom; “impuro”, pelo contrário, o que é moralmente mau. Afirmam-no com clareza as palavras de Cristo segundo Mateus 15, 18-20, citadas precedentemente. Nos enunciados de Paulo acerca das “obras da carne”, que ele contrapõe ao “fruto do Espírito”, encontramos a base para análogo modo de entender este problema. Entre as “obras da carne” Paulo coloca o que é moralmente mau, ao passo que todo o bem moral é relacionado com a vida “segundo o Espírito”. Assim, uma das manifestações da vida “segundo o Espírito” é o comportamento conforme àquela virtude, que Paulo, na Epístola aos Gálatas, parece definir sobretudo indiretamente, mas de que fala de modo direito na Primeira Epístola aos Tessalonicenses.

5. Nos trechos da Epístola aos Gálatas, que já anteriormente submetemos a análise pormenorizada, o Apóstolo menciona, em primeiro lugar, entre as “obras da carne”, “a prostituição, a impureza e a desonestidade”; todavia, em seguida, quando a estas obras contrapõe “o fruto do Espírito” não fala diretamente da “pureza”, mas nomeia só o domínio de si”, a enkráteia. Este “domínio” pode-se reconhecer como virtude que diz respeito à continência quanto a todos os desejos dos sentimentos, sobretudo na esfera sexual; contrapõe-se, portanto, à “prostituição, à impureza e à desonestidade” e também à “embriaguez” e às “orgias”. Poder-se-ia portanto admitir que o “domínio de si” paulino contém o que é expresso no termo “continência” ou “temperança”, correspondente ao termo latino temperantia. Em tal caso, encontrar-nos-íamos diante do conhecido sistema das virtudes, que a teologia posterior, em particular a escolástica, irá buscar, em certo sentido, à ética de Aristóteles. Todavia, Paulo certamente não se serve, no seu texto, deste sistema. Dado que por “pureza” se deve entender o justo modo de tratar a esfera sexual segundo o estado pessoal (e não necessariamente um abster-se absoluto da vida sexual), então indubiamente tal “pureza” é incluída no conceito paulino de “domínio” ou enkráteia. Por isso, no âmbito do texto paulino, encontramos só uma genérica e indireta menção da pureza, tanto quanto a tais “obras da carne”, como “prostituições, impureza e desonestidade”, o autor contrapõe o “fruto do Espírito” —isto é, obras novas, em que se manifesta “a vida segundo o Espírito”. Pode deduzir-se que uma destas obras novas é precisamente a “pureza”: isto é, aquela que se contrapõe à “impureza” e também à “prostituição” e à “desonestidade”.

6. Mas já na primeira Epístola aos Tessalonicenses, Paulo escreve sobre este assunto de modo explícito e inequívoco. Lemos nela: “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação: que eviteis a impureza, que cada um de vós saiba possuir o seu corpo1 com santidade e honra, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como fazem os gentios que não conhecem a Deus”v. E depois: “Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade. Quem desprezar esses preceitos, não despreza a um homem, mas a Deus que vos dá o Seu Espírito Santo”vi. Embora ainda neste texto tenhamos de contar com o significado genérico da “pureza”, identificada neste caso com a “santificação” (pois se nomeia a “impureza” como antítese da “santificação”), apesar disso, todo o contexto indica claramente de que “pureza” ou de que “impureza” se trata, isto é, em que consiste o que Paulo chama aqui “impureza”, e em que modo a “pureza” contribui para a “santificação” do homem.

E por isso, nas reflexões sucessivas, convirá retomar o texto da primeira Epístola aos Tessalonicenses, agora mesmo citado.

1 Sem entrar nas discussões particularizadas dos exegetas, é necessário todavia assinalar que a expressão grega tò heautoû skeûos pode referir-se também à esposa (cf. 1Pd 3, 7).

iGl 5, 13-14.

iiGl 5, 13.

iiiGl 5, 13.

iv Cf. Gn 2, 23-25.

v1Ts 4, 3-5.

vi1Ts 4, 7-8.