47ª. «Eros» e «Ethos» encontraram-se e frutificam no coração humano – 05/11/1980

1. Durante as nossas reflexões semanais sobre as palavras de Cristo no Sermão da Montanha, em que Ele, ao referir-se ao mandamento “não cometer adultério”, compara a “concupiscência” (“o olhar concupiscente”) ao “adultério cometido no coração”, procuramos responder à pergunta: estas palavras acusam apenas o “coração” humano, ou principalmente são um apelo que lhe é dirigido? Apelo, compreende-se, caráter ético; apelo importante e essencial para o próprio ethos do Evangelho. Respondemos que as palavras acima mencionadas são sobretudo um apelo.

Ao mesmo tempo, procuramos aproximar as nossas reflexões dos “itinerários” que percorre, no seu âmbito, a consciência dos homens contemporâneos. Já no precedente ciclo das nossas considerações nos referimos ao “eros“. Este termo grego que da mitologia passou para a filosofia, depois para a língua literária e por fim para a língua falada, contrariamente à palavra ethos, é estranho e desconhecido na linguagem bíblica. Se nas presentes análises dos textos bíblicos usamos o termo ethos, conhecido pelos Setenta e pelo Novo Testamento, fazemo-lo em conseqüência do significado geral que ele adquiriu na filosofia e na teologia, abraçando no seu conteúdo as complexas esferas do bem e do mal, dependentes da vontade humana e submetidas às leis da consciência e da sensibilidade do “coração” humano. O termo “eros“, além de ser nome próprio da personagem mitológica, tem nos escritos de Platão um significado filosófico1, que parece ser diferente do significado comum e também daquele que, habitualmente, lhe é atribuído na literatura. Obviamente, devemos aqui tomar em consideração a vasta gama de significados, que se diferenciam entre si de modo não claramente definido, no que diz respeito quer à personagem mitológica, quer ao conteúdo filosófico, quer sobretudo ao ponto de vista “somático” ou “sexual”. Tendo em conta uma gama tão vasta de significados, é conveniente avaliar, de modo igualmente diferenciado, o que se põe em relação com o “erosi e é definido como “erótico”.

2. Segundo Platão, o “eros” representa a força interior, que impele o homem para tudo o que é bom, verdadeiro e belo. Esta “atração” indica, em tal caso, a intensidade de um ato subjetivo do espírito humano. No significado comum, pelo contrário —como também na literatura—, esta “atração” parece ser antes de tudo de natureza sensual. Ele suscita a recíproca tendência de ambos, homem e mulher, à aproximação, à união dos corpos, àquela união de que fala Gênesis 2, 24. Trata-se aqui de responder à pergunta se o “eros” apresenta o mesmo significado que existe na narração bíblica (sobretudo em Gn 2, 23-25), a qual sem dúvida atesta a recíproca atração e perene estimulação da pessoa humana —através da masculinidade e da feminilidade— para aquela “unidade da carne” que, ao mesmo tempo, deve realizar união-comunhão das pessoas. É precisamente por esta interpretação do eros (e juntamente da sua relação com o ethos) que adquire importância fundamental também o modo em que entendemos a “concupiscência”, de que se fala no Sermão da Montanha.

3. Segundo parece, a linguagem comum toma sobretudo em consideração aquele significado da “concupiscência” que precedentemente definimos como “psicológico” e que poderia também ser denominado “sexológico”: isto com base em premissas, que se limitam antes de tudo à interpretação naturalista, “somática” e sensualista do erotismo humano. (Não se trata aqui, de modo algum, de diminuir o valor das pesquisas científicas neste campo, mas desejar-se chamar a atenção para o perigo da redutibilidade e do exclusivismo). Pois bem, em sentido psicológico e sexológico, a concupiscência indica a subjetiva intensidade de tender para o objeto por causa do seu caráter sexual (valor sexual). Aquele tender tem a sua subjetiva intensidade devido à específica “atração” que estende o seu domínio sobre a esfera emotiva do homem e envolve a sua “corporeidade” (a sua masculinidade ou feminilidade somática). Quando, no Sermão da Montanha, ouvimos falar da “concupiscência” do homem que “olha para a mulher, desejando-a”, estas palavras —entendidas em sentido “psicológico” (sexológico)— referem-se à esfera dos fenômenos, que na linguagem comum são precisamente qualificados “eróticos”. Nos limites do enunciado de Mateus 5, 27-28, trata-se apenas do ato interior, ao passo que “eróticos” são definidos sobretudo aqueles modos de agir e de recíproco comportamento do homem e da mulher, que são manifestação exterior própria de tais atos interiores. Nada menos, parece estar fora de qualquer dúvida que —raciocinando assim— deve colocar-se quase o sinal de igualdade entre “erótico” e aquilo que “deriva do desejo” (e serve para satisfazer a concupiscência mesma da carne). Se assim fosse, então, as palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28, exprimiriam um juízo negativo sobre aquilo que é “erótico” e, dirigidas ao coração humano, constituiriam contemporaneamente uma severa advertência contra o “eros“.

4. Todavia, já dissemos brevemente que o termo “eros” tem muitas tonalidades semânticas. E, por conseguinte, querendo definir a relação do enunciado do Sermão da Montanhaii com a ampla esfera dos fenômenos “eróticos”, isto é, daquelas ações e daqueles comportamentos recíprocos mediante os quais o homem e a mulher se aproximam e se unem a ponto de serem “uma só carne”iii, é preciso ter em conta a multiplicidade das tonalidades semânticas do “eros“. Parece possível, de fato, que no âmbito do conceito de “eros” —considerando o seu significado platônico— se encontre o lugar para aquele ethos, para aqueles conteúdos éticos e indiretamente também teológicos, os quais, durante as nossas análises, foram salientados pelo apelo de Cristo ao coração humano no Sermão da Montanha. Também o conhecimento das multíplices tonalidades semânticas do “eros” e daquilo que, na experiência e descrição diferenciada do homem, em várias épocas e em vários pontos de longitude e de latitude geográfica e cultural, é definido como “erótico”, pode ajudar a compreender a específica e complexa riqueza do “coração”, para o qual Cristo apelou no seu enunciado de Mateus 5, 27-28.

5. Se admitimos que o “eros” significa a força interior que “atrai” o homem para o verdadeiro, o bom e o belo, então, no âmbito deste conceito vê-se também abrir-se o caminho para aquilo que Cristo desejou exprimir no Sermão da Montanha. As palavras de Mateus 5, 27-28, se são “acusação” do coração humano, ao mesmo tempo são ainda mais um apelo dirigido a ele. Tal apelo é a categoria própria do ethos da redenção. A chamada para aquilo que é verdadeiro, bom e belo, significa contemporaneamente, no ethos da redenção, a necessidade de vencer o que deriva da tríplice concupiscência. Significa também a possibilidade e a necessidade de transformar aquilo que foi agravado pela concupiscência da carne. Além disso, se as palavras de Mateus 5, 27-28 representam tal chamada, então significam que, no âmbito do erótico, o “eros” e o “ethos” não divergem entre si, não se contrapõem reciprocamente, mas são chamados a encontrarem-se no coração humano, e, neste encontro, frutificar. Bem digno do “coração” humano é que a forma daquilo que é “erótico” seja ao mesmo tempo forma do ethos, ou seja, daquilo que é “ético”.

6. Tal afirmação é muito importante para o ethos e também para a ética. De fato, a este último conceito é muitas vezes ligado um significado “negativo”, porque a ética traz consigo normas, mandamentos e também proibições. Nós somos em geral propensos a considerar as palavras do Sermão da Montanha sobre a “concupiscência” (sobre “olhar, desejando”) exclusivamente como proibição —uma proibição na esfera do “eros” (isto é, na esfera “erótica”). E não raro contentamo-nos apenas com tal compreensão, sem procurar descobrir os valores verdadeiramente profundos e essenciais que esta proibição encerra, isto é, assegura. Ela não só os protege, mas torna-os até acessíveis e liberta-os se aprendemos a abrir-lhes o nosso “coração”.

No Sermão da Montanha, Cristo ensina-o e para tais valores dirige o coração do homem.

1 Segundo Platão, o homem, colocado entre o mundo dos sentidos e o mundo das Idéias, tem o destino de passar do primeiro para o segundo. O mundo das Idéias não está, porém, em grau de, sozinho, superar o mundo dos sentidos: pode fazer isto somente o Eros, congênito ao homem. Quando o homem começa a pressentir a existência das Idéias, devido à contemplação dos objetos existentes no mundo dos sentidos, recebe o impulso de Eros, isto é, do desejo das Idéias puras. Eros é de fato a orientação do homem “sensual” ou “sensível” para aquilo que é transcendente: a força que conduz a alma para o mundo das Idéias. No “Simpósio”, Platão descreve as etapas deste influxo de Eros: este eleva a alma do homem do belo de um só corpo àquele de todos os corpos, depois ao belo da ciência e, enfim, à mesma Idéia de Belo (cf. Simpósio, 211, República, 514).

Eros não é nem puramente humano nem divino: é algo de intermédio (daimonion) e de intermediário. A sua principal característica é a aspiração e o desejo permanentes. Até quando parece dar, Eros persiste como “desejo de possuir”, e, todavia, diferencia-se do amor puramente sensual, sendo o amor que tende para o sublime.

Segundo Platão, os deuses não amam porque não sentem desejos, uma vez que os seus desejos estão todos satisfeitos. Podem ser somente objeto, mas não sujeito de amor (Simpósio, 200-201). Não têm, portanto, uma direta relação com o homem; só a mediação de Eros consente um enlaçamento de uma relação (Simpósio, 203). Portanto, Eros é o caminho que conduz o homem para a divindade, mas não vice-versa.

A aspiração à transcendência é, por conseguinte, um elemento constitutivo da concepção platônica de Eros, concepção que supera o dualismo radical do mundo das Idéias e do mundo dos sentidos. Eros consente passar de um para o outro. Ele é, então, uma forma de fuga para além do mundo material, ao qual a alma é obrigada a renunciar, porque o belo do sujeito sensível tem valor apenas enquanto conduz mais para o alto.

Contudo, Eros permanece sempre, para Platão, o amor egocêntrico: ele tende a conquistar e possuir o objeto que, para o homem, representa um valor. Amar o bem significa desejar possuí-lo para sempre. O amor é, portanto, sempre um desejo de imortalidade e também isto demonstra o caráter egocêntrico do Eros (cf. A. Nygren, Éros et Agapé. La notion chrétienne de l’amour et ses transformations, I, Paris 1962, Aubier, pp. 180-200).

Para Platão, Eros é uma passagem da ciência mais elementar para aquela mais profunda; é, ao mesmo tempo, a aspiração a passar “daquilo que não existe”, e é o mal, para aquilo que “existe em plenitude”, e é o bem (cf. M. Scheler, Amour et connaissance, em: “Le sens de la souffrance, suivi de deux autres essais”, Paris, Aubier, s.d., p. 145).

i Cf. por exemplo, C. S. Lewis, Eros, em: “The Four Loves”, New York 1960 (Harcourt, Brace), pp. 131-133, 152, 159-160; P. Chauchard, Vices des vertus, vertus des vices, Paris 1965 (Mame), p. 147.

iiMt 5, 27-28.

iii Cf. Gn 2, 24.