41ª. A concupiscência afasta o homem e a mulher das perspectivas pessoais e «de comunhão» – 24/09/1980

1. No Sermão da Montanha, Cristo diz: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no coração”i. Algum tempo há que procuramos penetrar no significado desta afirmação, analisando-lhe cada elemento para compreendermos melhor o conjunto do texto.

Quando Cristo fala do homem, que “olha com desejo”, não indica só a dimensão da intencionalidade do “olhar”, portanto do conhecimento concupiscente, a dimensão “psicológica”, mas indica também a dimensão da intencionalidade da existência mesma do homem. Isto é, demonstra quem “é” ou antes em que “se torna”, em relação ao homem, a mulher para quem ele “olha com concupiscência”. Neste caso, a intencionalidade do conhecimento determina e define a intencionalidade mesma da existência. Na situação descrita por Cristo, aquela dimensão parte unilateralmente do homem, que é sujeito, para a mulher, tornada objeto (isto, porém, não quer dizer que tal dimensão seja apenas unilateral); por agora não invertamos a situação analisada, nem a estendamos a ambas as partes, a ambos os sujeitos. Detenhamo-nos na situação traçada por Cristo, sublinhando que se trata de um ato “puramente interior”, escondido no coração e fixo na soleira do olhar.

Basta verificar que em tal caso a mulher —que, por motivo da subjetividade pessoal, existe perenemente “para o homem”, considerando que também ele, pelo mesmo motivo, exista “para ela”— fica privada do significado da sua atração enquanto pessoa, a qual, mesmo sendo própria do “eterno feminino”, ao mesmo tempo para o homem torna-se só objeto: começa, isto é, a existir intencionalmente como objeto de potencial satisfação da necessidade sexual inerente à sua masculinidade. Embora o ato seja completamente interior, encerrado no “coração” e expresso só pelo “olhar”, nele dá-se já uma mudança (subjetivamente unilateral) da intencionalidade mesma da existência. Se assim não fosse, se não se tratasse de mudança tão profunda, não teriam sentido as palavras seguintes da mesma frase: “Já cometeu adultério com ela no seu coração”ii.

2. Aquela mudança da intencionalidade da existência, mediante a qual certa mulher começa a existir para certo homem não como sujeito de chamada e de atração pessoal ou sujeito “de comunhão”, mas exclusivamente como objeto de potencial satisfação da necessidade sexual, atua-se no “coração” porque se atuou na vontade. A mesma intencionalidade cognoscitiva não quer dizer ainda escravização do “coração”. Só quando a redução intencional, explicada precedentemente, arrasta a vontade ao seu horizonte limitado, quando lhe desperta a decisão de um relacionamento com outro ser humano (no nosso caso: com a mulher) segundo a escala dos valores própria da “concupiscência”, só então pode-se dizer que o “desejo” se apoderou também do “coração”. Só quando a “concupiscência” se apodera da vontade, é possível dizer que ela domina a subjetividade da pessoa e está na base da vontade e da possibilidade de escolher e decidir, através do que —em virtude da autodecisão ou autodeterminação— é estabelecido o modo mesmo de existir nas relações com outra pessoa. A intencionalidade de tal existência adquire então plena dimensão subjetiva.

3. Só então —quer dizer, a partir daquele momento subjetivo e no seu prolongamento subjetivo— é possível confirmar o que lemos, por exemplo, no Eclesiásticoiii acerca do homem dominado pela concupiscência, o que lemos em descrições ainda mais eloqüentes na literatura mundial. Então, podemos ainda falar daquele “constrangimento” mais ou menos completo, que noutras passagens é chamado “constrangimento do corpo” e leva consigo a perda da “liberdade do dom”, conatural à profunda consciência do significado esponsal do corpo, de que falamos também nas precedentes análises.

4. Quando falamos do “desejo” como transformação da intencionalidade de uma existência concreta, por exemplo do homem, para quem (segundo Mt 5, 27-28) certa mulher se torna só objeto de potencial satisfação da “necessidade sexual” inerente à sua masculinidade, não se trata de nenhum modo de pôr em questão aquela necessidade, como dimensão objetiva da natureza humana acompanhada pela finalidade procriativa que lhe é própria. As palavras de Cristo no Sermão da Montanha (em todo o seu amplo contexto) estão longe do maniqueísmo, como o está também a autêntica tradição cristã. Neste caso, não podemos, portanto, levantar objeções do gênero. Trata-se, pelo contrário, do modo de existir do homem e da mulher como pessoas, ou seja, daquele existir num recíproco “para”, o qual —mesmo com base naquilo que, segundo a dimensão objetiva da natureza humana, é definível como “necessidade sexual”— pode e deve servir à construção da unidade “de comunhão” nas suas relações recíprocas. Tal, de fato, é o significado fundamental próprio da perene e recíproca atração da masculinidade e da feminilidade, contida na realidade mesma da constituição do homem como pessoa, corpo e sexo juntamente.

5. À união ou “comunhão” pessoal, a que o homem e a mulher são reciprocamente chamados “desde o princípio”, não corresponde, pelo contrário está em contraste, a possível circunstância de uma das duas pessoas existir só como sujeito de satisfação da necessidade sexual, e a outra se tornar exclusivamente objeto de tal satisfação. Além disso, não corresponde a tal unidade de “comunhão” —pelo contrário, opõe-se-lhe— o caso de ambos, homem e mulher existirem reciprocamente como objeto de satisfação da necessidade sexual, e cada um por sua parte ser só sujeito daquela satisfação. Tal “redução” de tão rico conteúdo na recíproca e perene atração das pessoas humanas, na sua masculinidade ou feminilidade, não corresponde precisamente à “natureza” da atração de que se trata. Tal “redução”, de fato, apaga o significado pessoal e “de comunhão”, precisamente do homem e da mulher, através do qual, segundo Gênesis 2, 24, “o homem… se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne”. A “concupiscência” afasta a dimensão intencional da recíproca existência do homem e da mulher das perspectivas pessoais e “de comunhão”, próprias da perene e recíproca atração entre os dois, reduzindo-a e, por assim dizer, impelindo-a para dimensões utilitaristas, em cujo âmbito o ser humano “se serve” do outro ser humano, “usando-o” só para satisfazer as próprias “necessidades”.

6. Parece podermos precisamente reencontrar tal conteúdo, carregado de experiência interior humana própria de épocas e ambientes diferentes, na concisa afirmação de Cristo no Sermão da Montanha. Ao mesmo tempo, não se pode em nenhum caso perder de vista o significado que tal afirmação atribui à “interioridade” do homem, à integral dimensão do “coração” como dimensão do homem interior. Aqui está o núcleo mesmo da transformação do ethos, para a qual tendem as palavras de Cristo segundo Mateus 5, 27-28, expressas com vigorosa energia e ao mesmo tempo, com admirável simplicidade.

iMt 5, 27-28.

iiMt 5, 28.

iii 23, 17-22.