40ª. O desejo, redução intencional do horizonte da mente e do coração – 17/09/1980

1. Durante a última reflexão, perguntamo-nos o que é o “desejo”, de que fala Cristo no Sermão da Montanhai. Recordemo-nos que Ele, falando assim, se referia ao mandamento “Não cometerás adultério”. O mesmo “desejar” (precisamente: “olhar para desejar”) é definido como “adultério cometido no coração”. Isto dá muito que pensar. Nas precedentes reflexões, dissemos ter querido Cristo, ao exprimir-se daquele modo, indicar aos seus ouvintes o distanciamento do significado esponsal do corpo, distanciamento experimentado pelo homem (no caso, o varão), quando ele dá para a concupiscência da carne com um ato interior do “desejo.” O distanciamento do significado esponsal do corpo ao mesmo tempo traz consigo um conflito com sua dignidade de pessoa: um autêntico conflito de consciência.

A esta altura, manifesta-se que o significado bíblico (portanto, também teológico) do “desejo” é diverso do puramente psicológico. O psicólogo descreverá o “desejo” como intensa orientação para o objeto, por causa do seu peculiar valor: no caso aqui considerado, pelo seu valor “sexual”. Quanto parece, encontraremos tal definição na maior parte das obras dedicadas a semelhantes temas. Todavia, a descrição bíblica, mesmo sem desvalorizar o aspecto psicológico, põe em relevo sobretudo o ético, uma vez que há um valor que é lesado. O “desejo” é, diria, o engano do coração humano quanto à perene chamada do homem e da mulher —chamada que foi revelada no mistério mesmo da criação— à comunhão através de um dom recíproco. Assim, pois, quando Cristo, no Sermão da Montanhaii, faz referência “ao coração” ou ao homem interior, as suas palavras não deixam de estar carregadas daquela verdade acerca do “princípio”, com a qual, respondendo aos fariseusiii, Ele relacionara todo o problema do homem, da mulher e do matrimônio.

2. A perene chamada, de que procuramos fazer a análise seguindo o Livro do Gênesis (sobretudo, Gn 2, 23-25) e, em certo sentido, a perene atração recíproca da parte do homem para a feminilidade e da parte da mulher para a masculinidade, é convite por meio do corpo, mas não é o desejo no sentido das palavras de Mateus 5, 27-28. O “desejo”, como atuação da concupiscência da carne (mesmo e sobretudo no ato puramente interior), diminui o significado do que eram —e substancialmente não deixam de ser— aquele convite e aquela recíproca atração. O eterno “feminino” (“das ewig weibliche”), assim como, aliás, o eterno “masculino”, mesmo no plano da historicidade, tende a libertar-se da pura concupiscência, e procura um lugar de afirmação ao nível próprio do mundo das pessoas. Dá disso testemunho aquela vergonha original, de que fala Gênesis 3. A dimensão da intencionalidade dos pensamentos e dos corações constitui um dos principais filões da universal cultura humana. As palavras de Cristo no Sermão da Montanha confirmam precisamente tal dimensão.

3. Apesar disto, estas palavras exprimem claramente que o “desejo” faz parte da realidade do coração humano. Quando afirmamos que o “desejo“, quanto à original atração recíproca da masculinidade e da feminilidade, representa uma “redução”, temos na mente uma “redução” intencional, quase uma restrição ou fechamento do horizonte do espírito e do coração. Uma coisa, de fato, é ter consciência de que o valor do sexo faz parte de toda a riqueza de valores, com que ao varão aparece o ser feminino; e outra coisa é “reduzir” toda a riqueza pessoal da feminilidade àquele único valor, isto é, ao sexo, como objeto idôneo à satisfação da própria sexualidade. O mesmo raciocínio se pode fazer quanto ao que é a masculinidade para a mulher, se bem que as palavras de Mateus 5, 27-28 se refiram diretamente só à outra relação. A “redução” intencional é, como se vê, de natureza sobretudo axiológica. Por um lado, a eterna atração do homem para a feminilidadeiv liberta nele —ou talvez, deveria libertar— uma gama de desejos espirituais-carnais de natureza, sobretudo, pessoal e “de comunhão” (cf. a análise do “princípio”), aos quais corresponde uma proporcional hierarquia de valores. Por outra parte, o “desejo” limita tal gama, ofuscando a hierarquia dos valores que marca a atração perene da masculinidade e da feminilidade.

4. O desejo faz que no interior, isto é, no “coração”, no horizonte interior do homem e da mulher, se ofusque o significado do corpo, próprio da pessoa. A feminilidade cessa deste modo de ser para a masculinidade, sobretudo, sujeito; deixa de ser uma específica linguagem do espírito; perde o caráter de sinal. Cessa, diria, de trazer sobre si o estupendo significado esponsal do corpo. Cessa de estar colocado no contexto da consciência e da experiência de tal significado. O “desejo” que nasce da mesma concupiscência da carne, desde o primeiro momento da existência no interior do homem —da existência no seu “coração”—, passa em certo sentido ao lado de tal contexto (poder-se-ia dizer, com uma imagem, que passa sobre as ruínas do significado esponsal do corpo e de todos os seus elementos subjetivos), e em virtude da própria intencionalidade axiológica tende diretamente para um fim exclusivo: para satisfazer só a necessidade sexual do corpo, como próprio objeto.

5. Tal redução intencional e axiológica pode verificar-se, segundo as palavras de Cristov, já no âmbito do “olhar” ou, antes, no âmbito de um ato puramente interior expresso pelo olhar. O olhar, em si mesmo, é ato cognoscitivo. Quando na sua estrutura interior entra a concupiscência, o olhar toma caráter de “conhecimento desejoso”. A expressão bíblica “Olha para desejar” pode indicar quer um ato cognoscitivo, de que se serve o homem desejando (isto é, conferindo-lhe o caráter próprio do desejo tendente para um objeto), quer um ato cognoscitivo que desperta o desejo no outro sujeito e sobretudo na sua vontade e no seu “coração”. Como se vê, é possível atribuir uma interpretação intencional a um ato interior, tendo presente um ou outro pólo da psicologia do homem: o conhecimento ou o desejo entendido como appetitus. (O appetitus é alguma coisa mais ampla que o “desejo”, porque indica tudo o que se manifesta no sujeito como “aspiração”, e, como tal, orienta-se sempre para um fim, isto é, para um objeto conhecido sob o aspecto do valor). Todavia, uma adequada interpretação das palavras de Mateus 5, 27-28 requer que —através da intencionalidade própria do conhecimento ou do appetitus— avistemos alguma coisa mais, isto é, a intencionalidade da existência mesma do homem em relação com o outro homem; no nosso caso: do homem em relação com a mulher e da mulher em relação com o homem.

A este assunto convir-nos-á voltar. Concluindo a reflexão de hoje, é necessário ainda acrescentar que naquele “desejo”, no “olhar para desejar”, de que trata o Sermão da Montanha, a mulher, para o homem que “olha” assim, deixa de existir como sujeito da eterna atração e começa a ser apenas objeto de concupiscência carnal. A isto está ligado o profundo desprendimento interno que falamos já na precedente reflexão.

iMt 5, 27-28.

iiMt 5, 27-28.

iii Cf. Mt 19, 8.

iv Cf. Gn 2, 23.

vMt 5, 27-28.