38ª. O significado do adultério transferido do corpo para o coração – 03/09/1980

1. No Sermão da Montanha, Cristo limita-se a recordar o mandamento “Não cometerás adultério”, sem julgar sobre o assunto do comportamento dos seus ouvintes. O que dissemos antes a respeito deste tema provém de outras fontes (sobretudo da conversa de Cristo com os fariseus, em que apelou para o “princípio”i). No Sermão da Montanha, Cristo omite esse juízo ou, antes, pressupõe-no. O que dirá na segunda parte do enunciado, que principia com as palavras “Eu, porém, digo-vos…” será alguma coisa mais que a polêmica com os “doutores da Lei”, ou seja, com os moralistas da Torá. E será também alguma coisa mais a respeito do ethos vétero-testamentário. Será passagem direta ao ethos do novo. Cristo parece deixar de parte todas as disputas acerca do significado ético do adultério sobre o plano da legislação e da casuística, em que a relação essencial interpessoal do marido e da mulher tinha sido notavelmente ofuscada pela relação objetiva de propriedade —e adquire outra dimensão. Cristo diz: “Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração”1. Assim, portanto, “o adultério cometido no coração” é em certo sentido contraposto ao “adultério cometido no corpo”.

Devemos interrogar-nos sobre as razões por que é deslocado o ponto de gravidade do pecado, e perguntar-nos, além disso, qual é o autêntico significado da analogia: se de fato o “adultério”, segundo o seu significado fundamental, pode ser somente um “pecado cometido no corpo”, em que sentido aquilo que o homem comete no coração merece também ser chamado adultério? As palavras, com que põe Cristo o fundamento do novo ethos, exigem por seu lado um profundo radicar-se na antropologia. Antes de responder a estas perguntas, detenhamo-nos algum tanto na expressão que, segundo Mateus 5, 27-28, efetua em certo modo a transferência ou a deslocação do significado do adultério do “corpo” para o “coração”. São palavras que se referem ao desejo.

2. Cristo fala da concupiscência: “todo aquele que olhar desejando-a”. Precisamente, esta expressão requer uma análise particular para se compreender o enunciado na sua integridade. É preciso aqui referirmo-nos à precedente análise, que tendia, diria eu, a reconstruir a imagem “do homem da concupiscência” já nos inícios da históriaii. Aquele homem de quem fala Cristo no Sermão da Montanha —o homem que olha “para desejar”— é indubitavelmente homem de concupiscência. Precisamente por este motivo, porque participa da concupiscência do corpo, “deseja” e “olha para desejar”. A imagem do homem da concupiscência, reconstruída na fase precedente, ajudar-nos-á agora a interpretar o “desejo” de que fala Cristo segundo Mateus 5, 27-28. Trata-se aqui não só de uma interpretação psicológica, mas, ao mesmo tempo, de uma interpretação teológica. Cristo fala dentro do contexto da obra da salvação. Estes dois contextos em certo modo sobrepõem-se e compenetram-se reciprocamente: isto tem significado essencial e constitutivo para todo o ethos do Evangelho e em particular para o conteúdo do verbo “desejar” ou “olhar para desejar”.

3. Servindo-se de tais expressões, o Mestre primeiro apela para a experiência daqueles que o estavam a ouvir diretamente, e depois apela também para a experiência e para a consciência do homem de todos os tempos e lugares. De fato, apesar de a linguagem evangélica ter força comunicativa universal, todavia para um ouvinte direto, cuja consciência tinha sido formada pela Bíblia, o “desejo” devia ligar-se a numerosos preceitos e admoestações, presentes antes de tudo nos Livros de caráter sapiencial, nos quais apareciam repetidas advertências sobre a concupiscência do corpo e também conselhos dados com o fim de preservar dela.

4. Como é sabido, a tradição sapiencial tinha particular interesse para a ética e para os bons costumes da sociedade israelita. O que nestas advertências e conselhos, presentes por exemplo no Livro dos Provérbiosiii ou do Eclesiásticoiv ou mesmo do Coeletv, nos impressiona de modo imediato é certa unilateralidade deles, pois as admoestações são sobretudo dirigidas aos homens. Isto pode significar que sejam para eles particularmente necessárias. Quanto à mulher, é verdade que nestas advertências e conselhos ela aparece mais freqüentemente como ocasião de pecado ou mesmo como sedutora de que é preciso fugir. É, todavia, necessário reconhecer que tanto o Livro dos Provérbios quanto o Livro do Eclesiástico, além da advertência de precaver-se da mulher e da sedução da sua fascinação que levam o homem a pecarvi, fazem também o elogio da mulher que é “perfeita” companheira de vida do próprio maridovii, e também louvam a beleza e a graça de uma mulher virtuosa, que sabe tornar feliz o marido.

“A mulher santa e honesta é graça inestimável; / a alma casta não tem preço. / Como o sol que se levanta nas alturas de Deus, / assim é a beleza de uma mulher virtuosa, ornamento da sua casa. / Como a lâmpada que brilha no candelabro sagrado, assim é a beleza do rosto numa figura majestosa. / Como colunas de ouro sobre alicerces de prata, / assim são, sobre as suas plantas, os pés esbeltos da mulher ponderada… / A graça de uma mulher cuidadosa deleita o marido, / e o seu bom proceder revigora-lha os ossos”viii.

5. Na tradição sapiencial, uma freqüente admoestação contrasta com este elogio da mulher-esposa, e é a que se refere à beleza e à graça da mulher que não é a própria esposa, a qual forma causa de tentação e ocasião de adultério: “Não cobice o teu coração a sua formosura…”ix. No Eclesiásticox a mesma advertência é expressa de modo mais peremptório:

“Afasta os teus olhos da mulher bela, / e não olhes com insistência para a formosura alheia. / Muitos pereceram por causa da beleza feminina, / e por ela se acende o fogo do desejo”xi.

O sentido dos textos sapienciais tem dominante significado pedagógico. Ensinam a virtude e procuram proteger a ordem moral, referindo-se à lei de Deus e à experiência tomada em sentido lato. Além disso, distinguem-se pelo particular conhecimento do “coração” humano. Diremos que desenvolvem uma específica psicologia moral, mesmo sem caírem no psicologismo. Em certo sentido, estão perto daquele apelo de Cristo ao “coração”, que Mateus nos transmitiuxii, embora não se possa afirmar que revelem tendência para transformar o ethos de maneira fundamental. Os autores destes Livros utilizam o conhecimento da interioridade humana para ensinar a moral sobretudo no âmbito do ethos historicamente em ato e por eles substancialmente confirmado. Às vezes, algum deles, como por exemplo Coelet, sintetiza essa confirmação com a própria “filosofia” da existência humana, o que, porém, se influi no método com que formula advertências e conselhos, não muda a fundamental estrutura-base da apreciação ética.

6. Para tal transformação do ethos será necessário esperar até ao Sermão da Montanha. Apesar disso, aquele conhecimento muito perspicaz da psicologia humana, presente na tradição “sapiencial”, não estava certamente destituído de significado para o círculo daqueles que escutavam pessoal e imediatamente este sermão. Se, em virtude da tradição profética, estes ouvintes estavam em certo sentido preparados para compreender de modo adequado o conceito de “adultério”, também em virtude da tradição “sapiencial” estavam preparados para compreender as palavras que se referem ao “olhar concupiscente” ou ao “adultério cometido no coração”.

À análise da concupiscência no Sermão da Montanha, convir-nos-á voltar mais adiante.

1Mt 5, 28: diante deste passo vem sempre ao espírito a antiga tradução “tornou-a já adúltera no seu coração”, versão que, talvez melhor que o texto atual, exprime o fato de tratar-se de puro ato interior e unilateral.

i Cf. Mt 19, 8; Mc 10, 6.

ii Cf. Gn 3.

iii Cf. por ex., Prov 5, 3-6.15-20; 6, 24; 7, 27; 21, 9.19; 22, 14; 30, 20.

iv Cf. por ex., Eclo 7, 19.24-26; 9, 1-9; 23, 22-27; 25, 13; 26, 18; 36, 21-25; 42, 6.9-14.

v Cf. por ex., Ecle 7, 26-28; 9, 9.

vi Cf. Prov 5, 1-6; 6, 24-29; Eclo 26, 9-12.

vii Cf. Prov 31, 10 ss.

viiiEclo 26, 15-18, 13.

ixProv 6, 25.

x Cf. 9, 1-9.

xiEclo 9, 8-9.

xii Cf. 5, 27-28.