35ª. O conteúdo do mandamento “Não cometer adultério” – 13/08/1980

1. A análise da afirmação de Cristo durante o Sermão da Montanha, afirmação que se refere ao “adultério”, e ao “desejo” a que Ele chama “adultério cometido no coração”, é necessário desenvolvê-la partindo das primeiras palavras. Cristo diz: “Ouvistes que foi dito: não cometerás adultério…”i. Tem na mente o mandamento de Deus, aquele que no Decálogo se encontra no sexto lugar, e faz parte da chamada segunda Tábua da Lei, que Moisés obtivera de Deus-Javé.

Coloquemo-nos primeiro no ponto de vista dos ouvintes diretos do Sermão da Montanha, daqueles que ouviram as palavras de Cristo. São filhos e filhas do povo eleito —povo que do próprio Deus-Javé tinha recebido a “Lei”, tinha recebido também os “Profetas” que repetidamente, através dos séculos, tinham censurado exatamente a relação mantida com aquela Lei, as múltiplas transgressões dela. Também Cristo fala de semelhantes transgressões. Mas ainda fala mais de uma tal interpretação humana da Lei, em que se apaga e desaparece o justo significado do bem e do mal, especificamente querido pelo Divino Legislador. A lei, de fato, é sobretudo meio —meio indispensável— para que “superabunde a justiça” (palavras de Mt 5, 20, na antiga tradição). Cristo quer que essa justiça “supere a dos escribas e dos fariseus”. Não aceita a interpretação que através dos séculos eles foram dando ao conteúdo autêntico da Lei, pois submeteram em certa medida tal conteúdo, ou seja, o desígnio e a vontade do Legislador, às desvariadas fraquezas e aos limites da vontade humana, derivadas precisamente da tríplice concupiscência. Era esta uma interpretação casuística, que se tinha sobreposto à original visão do bem e do mal, ligada com a Lei do Decálogo. Se Cristo tende à transformação do ethos, fá-lo sobretudo para recuperar a clareza fundamental da interpretação: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: Não vim revogá-la mas completá-la”ii. Condição do completamento é a justa compreensão. E isto aplica-se, além do mais, ao mandamento “não cometer adultério”.

2. Quem segue nas páginas do Antigo Testamento a história do povo eleito desde os tempos de Abraão, encontrará abundantes fatos que atestam como este mandamento era posto em prática e como, em seguida a tal prática, era elaborada a interpretação casuística da lei. Primeiro que tudo, é sabido que a história do Antigo Testamento é teatro da sistemática defecção perante a monogamia: o que, para se compreender a proibição “não cometer adultério”, devia ter significado fundamental. O abandono da monogamia, especialmente no tempo dos Patriarcas, tinha sido ditado pelo desejo da prole, de numerosa prole. Este desejo era tão profundo, e a procriação, como fim essencial do matrimônio, tão evidente, que as esposas, que amavam os maridos, quando não estavam em condições de lhes dar prole, pediam de sua iniciativa aos maridos, pelos quais eram amadas, que tomassem “sobre os próprios joelhos”, ou seja, acolhessem a prole dada à vida por outra mulher, por exemplo, pela serva, isto é, pela escrava. Assim foi no caso de Sarai a respeito de Abraãoiii, ou no de Raquel a respeito de Jacóiv. Estas duas narrações refletem o clima moral em que era praticado o Decálogo. Explicam o modo em que o ethos israelita estava preparado para acolher o mandamento “não cometer adultério”, e que aplicação encontrava tal mandamento na mais antiga tradição deste povo. A autoridade dos patriarcas era, de fato, a mais alta em Israel e possuía caráter religioso. Estava estreitamente ligada à Aliança e à Promessa.

3. O mandamento “não cometer adultério” não mudou esta tradição. Tudo indica que o seu posterior desenvolvimento não se limitava aos motivos (sobretudo excepcionais) que tinham guiado o comportamento de Abraão e Sarai, ou de Jacó e Raquel. Se tomamos como exemplo os representantes mais ilustres de Israel depois de Moisés —os reis de Israel, Davi e Salomão— a descrição da vida deles mostra que se estabelece a poligamia efetiva, isto indubiamente por motivos de concupiscência.

Na história de Davi, que também tinha duas mulheres, deve chamar a atenção não só o fato de ter tomado a mulher de um súdito seu, mas também a clara consciência de ter cometido adultério. Este fato, assim como a penitência do rei, são descritos de modo pormenorizado e sugestivov. Por adultério entende-se só a posse das mulheres de outrem, ao passo que não o é a posse de outras mulheres como esposas, ao lado da primeira. Toda a tradição da Antiga Aliança indica que à consciência das gerações que se foram seguindo no povo eleito, ao ethos delas, não se juntou nunca a exigência efetiva da monogamia, como conseqüência essencial e indispensável do mandamento “não cometer adultério”.

4. Nesta perspectiva, é preciso também entender todos os esforços que tendem a introduzir o conteúdo específico do mandamento “não cometer adultério” no quadro da legislação promulgada. Confirmam-no os Livros da Bíblia, em que se encontra amplamente registrado o conjunto de tal legislação vétero-testamentária. Se se toma em consideração a letra de tal legislação, resulta que esta se empenha em lutar com o adultério, de modo decidido e sem contemplações, usando meios radicais, incluída a pena de mortevi. Fá-lo, porém, sustentando a poligamia efetiva, ao menos de modo indireto. Assim, portanto, o adultério é combatido só nos limites estabelecidos e no âmbito das premissas definitivas, que determinam a forma essencial do ethos vétero-testamentário. Por adultério entende-se aí sobretudo (e talvez exclusivamente) a infração do direito de propriedade do homem quanto a qualquer mulher que seja a própria mulher legal (ordinariamente: uma entre muitas); não se entende, porém, o adultério como aparece do ponto de vista da monogamia estabelecida pelo Criador. Reparemos agora ter feito Cristo referência ao “princípio” precisamente a respeito deste argumentovii.

5. Muito significativa é, além disso, a circunstância em que toma Cristo a parte da mulher surpreendida em adultério e a defende da lapidação. Diz aos acusadores: “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra”viii. Quando eles deixam cair no chão as pedras e se afastam, diz à mulher: “Vai e doravante não tornes a pecar”ix. Cristo identifica, portanto, claramente o adultério com o pecado. Quando, pelo contrário, se dirige àqueles que desejavam lapidar a mulher adúltera, não apela para as prescrições da lei israelita, mas exclusivamente para a consciência. O discernimento do bem e do mal inscrito nas consciências humanas pode mostrar-se mais profundo e mais correto do que o conteúdo de uma norma.

Como vimos, a história do Povo de Deus na Antiga Aliança (que procuramos explicar só por meio de alguns exemplos) decorria, em notável medida, fora do conteúdo normativo encerrado por Deus no mandamento “não cometer adultério”; passava, por assim dizer, ao lado dele. Cristo deseja corrigir estes erros. Eis a razão das palavras por Ele pronunciadas no Sermão da Montanha.

iMt 5, 27.

iiMt 5, 17.

iii Cf. Gn 16, 2.

iv Cf. Gn 30, 3.

v Cf. 2Sm 11, 2-27.

vi Cf. Lv 20, 10; Dt 22, 22.

vii Cf. Mt 19, 8.

viiiJo 8, 7.

ixJo 8, 11.