27ª. Radical mudança do significado da nudez original – 14/05/1980

1. Já falamos da vergonha que surgiu no coração do primeiro homem, varão e mulher, ao mesmo tempo que o pecado. A primeira frase da narrativa bíblica a este respeito soa assim: “Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, prenderam folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas como se fossem cinturões”i. Essa passagem, que fala da vergonha recíproca do homem e da mulher como sintoma da queda (status naturae lapsae), deve ser considerada no seu contexto. A vergonha naquele momento toca o grau mais profundo e parece transtornar os fundamentos mesmos da existência de ambos. “Nessa altura, aperceberam-se de que o Senhor Deus percorria o jardim pela suavidade do entardecer, e o homem e a sua mulher logo se esconderam do Senhor Deus, por entre o arvoredo do jardim”ii. A necessidade de se esconderem indica que no profundo da vergonha sentida um pelo outro, como fruto imediato da árvore do conhecimento do bem e do mal se produziu um sentimento de medo diante de Deus: medo precedentemente desconhecido. “O Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: ‘Onde estás?’. Ele respondeu: ‘Ouvi o ruído dos Teus passos no jardim, e, cheio de medo, porque estou nu, escondi-me”iii. Certo medo pertence sempre à essência mesma da vergonha; apesar disso, a vergonha original revela de modo particular o seu caráter: estou “cheio de medo, porque estou nu”. Damo-nos conta que entra aqui em jogo alguma coisa mais profunda que a vergonha mesma corporal, ligada a uma recente tomada de consciência da própria nudez. O homem procura cobrir com a vergonha da própria nudez a origem autêntica do medo, indicando preferentemente o efeito dele, para não chamar pelo nome àquilo que o provocou. E é então que Deus Javé o faz em sua vez: “Quem te disse que estavas nu? Comeste, porventura, algum dos frutos da árvore que te proibi comer?”iv.

2. Perturbadora é a precisão daquele diálogo, perturbadora é a precisão de toda a narrativa. Ela manifesta a superfície das emoções do homem ao viver os acontecimentos, de maneira que desvela ao mesmo tempo a profundidade dos mesmos. Em tudo isto, a “nudez” não tem apenas significado literal, não se refere só ao corpo, não é origem de uma vergonha referida só ao corpo. Na realidade, através da “nudez”, manifesta-se o homem destituído da participação no Dom, o homem alienado daquele Amor que tinha sido a fonte do dom original, fonte da plenitude do bem destinado à criatura. Este homem, segundo as fórmulas do ensino teológico da Igreja1, foi privado dos dons sobrenaturais e preternaturais, que faziam parte da sua “dotação” antes do pecado; além disso, sofreu um dano no que pertence à natureza mesma, à humanidade na plenitude original “da imagem de Deus”. A tríplice concupiscência não corresponde à plenitude daquela imagem, mas precisamente aos danos, às deficiências e às limitações que apareceram com o pecado. A concupiscência explica-se como carência, a qual enterra porém as raízes na profundidade original do espírito humano. Se queremos estudar este fenômeno nas suas origens, isto é no limiar das experiências do homem “histórico”, devemos tomar em consideração todas as palavras que Deus-Javé dirigiu à mulherv e ao homemvi, e devemos ainda examinar o estado da consciência de ambos; e é o texto javista que expressamente no-lo facilita. Já antes chamamos a atenção para a especificidade literária do texto a tal respeito.

3. Que estado de consciência pode manifestar-se nas palavras “cheio de medo, porque estou nu, escondi-me”? A que verdade interior correspondem? Que significado do corpo testemunham? Certamente este novo estado difere muito do original. As palavras de Gn 3, 10 afirmam diretamente uma mudança radical do significado da nudez original. No estado da inocência original a nudez, como observamos precedentemente, não exprimia carência, mas representava a plena aceitação do corpo em toda a sua verdade humana e portanto pessoal. O corpo, como expressão da pessoa, era o primeiro sinal da presença do homem no mundo visível. Nesse mundo, o homem era capaz, desde o princípio, de distinguir-se a si mesmo, como que individuar-se —isto é confirmar-se como pessoa— mesmo através do próprio corpo. Este, de fato, tinha sido, por assim dizer, marcado como fator visível da transcendência, em virtude da qual o homem, enquanto pessoa, supera o mundo visível dos seres vivos (animalia). Nesse sentido, o corpo humano era desde o princípio testemunha fiel e verificação sensível da “solidão” original do homem no mundo, tornando-se ao mesmo tempo, mediante a sua masculinidade e feminilidade, um límpido elemento da sua doação recíproca na comunhão das pessoas. Assim, o corpo humano levava em si, no mistério da criação, um sinal indúbio da “imagem de Deus” e constituía também a fonte específica da certeza daquela imagem, presente em todo o ser humano. A aceitação original do corpo era, em certo sentido, a base da aceitação de todo o mundo visível. E, por sua vez, era para o homem garantia do seu domínio sobre o mundo e sobre a terra, que deveria sujeitarvii.

4. As palavras “cheio de medo, porque estou nu, escondi-me”viii testemunham mudança radical dessa relação. O homem perde, de alguma maneira, a certeza original da “imagem de Deus”, tal como expressa no seu corpo. Perde também, em certo modo, o sentido do seu direito a participar na percepção do mundo, da qual gozava no mistério da criação. Este direito encontrava fundamento no íntimo do homem, em ele mesmo participar na visão divina do mundo e da própria humanidade; o que lhe dava profunda paz e alegria em viver a verdade e o valor do próprio corpo, em toda a sua simplicidade, como lhe transmitira o Criador: “Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a muito boa”ix. As palavras de Gn 3, 10 “cheio de medo, porque estou nu, escondi-me” confirmam o desabar da aceitação original do corpo como sinal da pessoa no mundo visível. Ao mesmo tempo, parece também vacilar a aceitação do mundo material em relação com o homem. As palavras de Deus-Javé quase prenunciam a hostilidade do mundo, a resistência da natureza quanto ao homem e aos seus deveres, prenunciam a fadiga que provaria depois o corpo humano em contato com a terra por ele dominada: “Maldita seja a terra por tua causa! E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida. Produzir-te-ás espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde foste tirado”x. O termo de tal fadiga, de tal luta do homem com a terra, é a morte: “Tu és pó e em pó te hás-de tornar”xi.

Neste contexto, ou antes nesta perspectiva, as palavras de Adão em Gn 3, 10 “cheio de medo, porque estou nu, escondi-me” parecem exprimir a consciência de estar inerme, e o sentido de insegurança da sua estrutura somática diante dos processos da natureza, que operam com determinismo inevitável. Talvez nesta perturbadora enunciação se encontre implícita certa “vergonha cósmica”, em que se exprime o ser criado à “imagem de Deus” e chamado a subjugar a terra e a dominá-laxii, exatamente quando, no princípio das suas experiências históricas e de maneira muito explícita, é submetido à terra, especialmente na “parte” da sua constituição transcendente representada precisamente pelo corpo.

Urge interromper aqui as nossas reflexões sobre o significado da vergonha original no Livro do Gênesis. Retomá-las-emos daqui a uma semana.

1 O magistério da Igreja ocupou-se mais de perto destes problemas em três períodos, segundo as necessidades de cada época.

As declarações dos tempos das controvérsias com os pelagianos (V-VI séc.) afirmam que o primeiro homem, em virtude da graça divina, possuía “naturalem possibilitatem et innocentiam” (DS 239), chamada também “liberdade” (“libertas”, “libertas arbitrii”), (DS 371, 242, 383 e 622). Permanecia ele num estado que o Sínodo de Orange (a. 529) chama “integritas”.

“Natura humana, etiamsi in illa integritate, in qua condita est, permaneret, nullo modo se ipsam, Creatore suo non adiuvante, servaret…” (DS 389).

Os conceitos de “integritas” e, em especial, o de “libertas”, pressupõem a liberdade da concupiscência, embora os documentos eclesiásticos desta época não a mencionem de modo explícito.

O primeiro homem estava além disso livre da necessidade da morte (DS 222, 372 e 1511).

O Concílio Tridentino define o estado do primeiro homem, anterior ao pecado, como “santidade e justiça” (“sanctitas et iustitia” —DS 1511 e 1512) ou como “inocência” (“innocentia” —DS 1521).

As novas declarações nesta matéria defendem a absoluta gratuidade do dom original da graça, contra as afirmações dos jansenistas. A “integritas primae creationis” era uma elevação imerecida da natureza humana (“indebita humanae naturae exaltatio”) e não “o estado que lhe era devido por natureza” (“naturalis eius condicio” —DS 1926). Deus poderia, portanto, criar o homem sem estas graças e dons (DS 1955); isto não violaria a essência da natureza humana nem a privaria dos seus privilégios fundamentais (DS 1903-1907, 1909, 1921, 1923, 1924, 1926, 1955, 2434, 2437, 2616 e 2617).

Em analogia com os Sínodos antipelagianos, o Concílio Tridentino trata sobretudo do dogma do pecado original, inserindo no seu ensinamento os precedentes enunciados que vinham a propósito. Aqui, porém, foi introduzida certa precisação, que em parte mudou o conteúdo encerrado no conceito de “liberum arbitrium”. A “liberdade” ou “liberdade da vontade” dos documentos antipelagianos não significava possibilidade de escolha, relacionada com a natureza humana, portanto constante, mas referia-se só à possibilidade de realizar os atos meritórios, a liberdade que brota da graça e que o homem pode perder.

Ora, por causa do pecado, Adão perdeu o que não pertencia à natureza humana entendida no sentido estrito da palavra, isto é, “integritas”, “sanctitas”, “iustitia”. O “liberum arbitrium”, a liberdade da vontade, não foi tirada, mas enfraqueceu-se:

“… liberum arbitrium minime exstinctum… viribus licet attenuatum et inclinatum…” (DS 1521 —Trid. Sess. VI, Decr. de Iustificatione, C. 1).

Juntamente com o pecado aparecem a concupiscência e a inelutabilidade da morte:

“… primum hominem… cum mandatum Dei… fuisset transgressus, statim, sanctatem et iustitiam, in qua constitutus fuerat, amisisse incurrisseque per offensam praevaricationis huiusmodi iram et indignationem Dei atque ideo mortem… et cum morte captivitatem sub eius potestate, qui ‘mortis’ deinde ‘habuit imperium’… ‘totumque Adam per illam praevaricationis offensam secundum corpus et animam in deterius commutatum fuisse…'”(DS 1511, Trid. Sess. V. Decr. de pecc. orig. 1).

(Cfr. Mysterium Salutis, II, Einsiedeln-Zurich-Köln 1967, pp. 827-828: W. Seibel, “Der Mensh als Gottes übernatürliches Ebenbild und der Urstand des Menschan”).

iGn 3, 7.

iiGn 3, 8.

iiiGn 3, 9-10.

ivGn 3, 11.

vGn 3, 16.

viGn 3, 17-19.

vii Cfr. Gn 1, 28.

viiiGn 3, 10.

ixGn 1, 31.

xGn 3, 17-19.

xiGn 3, 19.

xii Cfr. Gn 1, 28.