18ª. A inocência original e o estado histórico do homem – 13/02/1980

1. A meditação de hoje pressupõe tudo quanto foi já conseguido nas várias análises feitas até agora. Estas brotaram da resposta dada por Jesus aos seus interlocutoresi, que lhe tinham feito uma pergunta sobre o matrimônio, sobre a indissolubilidade e a unidade. O Mestre tinha-lhes recomendado considerassem atentamente o que era “desde o princípio”. Exatamente por isto, no ciclo das nossas meditações até agora, procuramos descrever dalgum modo a realidade da união, ou melhor, da comunhão das pessoas, vivida “desde o princípio” pelo homem e pela mulher. Em seguida, tentamos penetrar no conteúdo do versículo conciso 25, de Gênesis 2: “Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha”.

Estas palavras fazem referência ao dom da inocência original, revelando-lhe o caráter de modo, por assim dizer, sintético. A teologia construiu sobre esta base a imagem global da inocência e da justiça original do homem, antes do pecado original, aplicando o método da objetivação, característico da metafísica e da antropologia metafísica. Na presente análise procuramos sobretudo tomar em consideração o aspecto da subjetividade humana; esta parece, aliás, encontrar-se mais perto dos textos originais, especialmente da segunda narrativa da criação, isto é, do texto javista.

2. Independentemente de certa diversidade de interpretação, parece bastante claro que a “experiência do corpo”, como a podemos ir buscar ao texto arcaico de Gn 2, 23 e mais ainda de Gn 2, 25, indica mais um grau de “espiritualização” do homem, diverso daquele que significa o mesmo texto depois do pecado originalii e nós conhecemos valendo-nos da experiência do homem “histórico”. É diversa medida de “espiritualização”, que encerra outra composição das forças interiores no próprio homem, quase outra relação corpo-alma, outras proporções internas entre sensibilidade, espiritualidade e afetividade, isto é, outro grau de sensibilidade interior perante os dons do Espírito Santo. Tudo isto condiciona o estado de inocência original do homem e ao mesmo tempo determina-o, permitindo-nos também compreender a narrativa do Gênesis. A teologia e, também, o magistério da Igreja deram a estas verdades fundamentais forma própria1.

3. Realizando a análise do “princípio” segundo a dimensão da teologia do corpo, fazemo-lo baseando-nos nas palavras de Cristo, com que Ele mesmo se referiu àquele “princípio”. Quando disse Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher?iii, ordenou-nos e sempre nos ordena que voltemos à profundidade do mistério da criação. E nós fazemo-lo, tendo plena consciência do dom da inocência original, própria do homem antes do pecado original. Embora uma intransponível barreira nos separe do que foi o homem então, como varão e mulher, mediante o dom da graça unida ao mistério da criação, e nos separe daquilo que ambos foram um para o outro, como dom recíproco, todavia procuramos compreender aquele estado de inocência original na sua ligação com o estado “histórico” do homem depois do pecado original: “Status naturae lapsae simul et redemptae”.

Por meio da categoria do “a posteriori histórico”, procuramos atingir o sentido original do corpo e alcançar o laço existente entre ele e a índole da inocência original na “experiência do corpo”, tal como ela se põe em evidência, de modo tão significativo, na narrativa do livro do Gênesis. Chegamos à conclusão que é importante e essencial precisar este laço, não só em relação com a “pré-história teológica” do homem, em que a convivência do homem e da mulher era quase completamente penetrada pela graça da inocência original, mas também em relação com a sua possibilidade de revelar-nos as raízes permanentes do aspecto humano e sobretudo teológico do ethos do corpo.

4. O homem entra no mundo e quase na mais íntima trama do seu futuro e da sua história, com a consciência do estado esponsal do próprio corpo, da própria masculinidade e feminilidade. A inocência original diz que essa significação é condicionada “eticamente” e além disso que, por seu lado, constitui o futuro do ethos humano. Isto é muito importante para a teologia do corpo: é a razão por que devemos construir esta teologia “desde o princípio”, seguindo cuidadosamente a indicação das palavras de Cristo.

No mistério da criação, o homem e a mulher foram dados pelo Criador, de modo particular, um ao outro, isto não só na dimensão daquele primeiro casal humano e daquela primeira comunhão de pessoas, mas em toda a perspectiva da existência do gênero humano e da família humana. O fato fundamental desta existência do homem em todas as etapas da sua história é que Deus “os criou homem e mulher”; de fato sempre os cria deste modo e sempre assim são. A compreensão dos significados fundamentais, encerrados no mistério mesmo da criação, como o significado esponsal do corpo (e dos fundamentais condicionamentos de tal significado), é importante e indispensável para conhecer quem é o homem e quem deve ser, e portanto como deveria modelar a própria atividade. A coisa essencial e importante para o futuro do ethos humano.

5. Gênesis 2, 24 verifica que os dois, homem e mulher, foram criados para o matrimônio: “Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher; e os dois serão uma só carne”. Deste modo abre-se grande perspectiva criadora: que é exatamente a perspectiva da existência do homem, a qual se renova continuamente por meio da “procriação” (poder-se-ia dizer da “autoprodução”). Tal perspectiva está profundamente radicada na consciência da humanidadeiv e também na particular consciência do significado esponsal do corpov. O homem e a mulher, antes de se tornarem marido e esposa (disso falará seguidamente em concreto Gn 4, 1), emergem do mistério da criação, primeiro, como irmão e irmã na mesma humanidade. A compreensão do significado esponsal do corpo, na sua masculinidade e feminilidade, revela o íntimo da sua liberdade, que é liberdade de dom. Daqui principia aquela comunhão de pessoas, em que ambos se encontram e se dão reciprocamente, na plenitude da sua subjetividade. Assim crescem ambos como pessoas-sujeitos, e crescem reciprocamente um para o outro também através dos corpos e através daquela “nudez” isenta de vergonha. Naquela comunhão de pessoas está profundamente assegurada toda a profundidade da solidão original do homem (do primeiro e de todos) e, ao mesmo tempo, tal solidão fica de modo maravilhoso penetrada e alargada pelo dom do “outro”. Se o homem e a mulher deixam de ser reciprocamente dom desinteressado, como o eram um para o outro no mistério da criação, então reconhecem “estar nus”vi. E então nascer-lhes-á no coração a vergonha daquela nudez, que não tinham sentido no estado de inocência original.

A inocência original manifesta e ao mesmo tempo constitui o ethos perfeito do dom.

A este assunto voltaremos ainda.

1 “Si quis non confitetur primum hominem Adam, cum mandatum Dei in paradiso fuisset transgressus, statim sanctitatem et iustitiam in qua constitutus fuerat amisisse… anathema sit” (Conc. Trident. Sess. V. can. 1, 2; DB. 788, 789).

“Protoparentes in statu sanctitatis et iustitiae constituti fuerunt. (…) Status iustitiae originalis, protoparentibus collatus, erat gratuitus et vere supernaturalis. (…) Protoparentes constituti sunt in statu naturae integrae, id est, immunes a concupiscentia, ignorantia, dolore et morte… singularique felicitate gaudebant. (…) Dona integritatis protoparentes collata erant gratuita et supernaturalia” (A. Tanquerey, Synopsis Theologiae Dogmaticae, Parisiis 1943, p. 534-549).

iMt 19, 3-9; Mc 10, 1-12.

iiGn 3.

iiiMt 19, 4.

iv Cfr. Gn 2, 23.

vGn 2, 25.

vi Cfr. Gn 3.