8ª. A unidade original do homem e da mulher na humanidade – 07/11/1979

1. As palavras do livro do Gênesis Não é conveniente que o homem esteja sói são quase um prelúdio da narrativa da criação da mulher. Com esta narrativa, o sentimento da solidão original entra a fazer parte do significado da unidade original, cujo ponto-chave parecem ser precisamente as palavras de Gênesis 2, 24, a que se refere Cristo na sua conversa com os fariseus: O homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão os dois uma só carneii. Se Cristo, referindo-se ao “princípio”, cita estas palavras, convém-nos precisar o significado dessa unidade original, que mergulha as raízes no fato da criação do homem como macho e fêmea.

A narrativa do capítulo primeiro do Gênesis não conhece o problema da solidão original do homem: o homem, de fato, desde o princípio, é “macho e fêmea”. O texto javista do capítulo segundo, pelo contrário, autoriza-nos em certo modo a pensar primeiramente apenas no homem, na medida em que, mediante o corpo, ele pertence ao mundo visível, mas ultrapassando-o; depois, faz-nos pensar no mesmo homem, mas através da duplicidade do sexo. Corporeidade e sexualidade não são simplesmente idênticos. Embora o corpo humano, na sua constituição normal, traga em si os sinais do sexo e seja, por sua natureza, masculino ou feminino, todavia o fato de o homem ser “corpo” pertence à estrutura do sujeito pessoal mais profundamente que o fato de ele ser na sua constituição somática também macho ou fêmea. Por isso, o significado da solidão original, que pode referir-se simplesmente ao “homem”, é substancialmente anterior ao significado da unidade original; esta última, de fato, baseia-se na masculinidade e na feminilidade, quase como sobre duas diferentes “encarnações”, isto é, sobre dois modos de “ser corpo” do mesmo ser humano, criado à imagem de Deusiii.

2. Seguindo o texto javista, no qual a criação da mulher foi descrita separadamenteiv, devemos ter diante dos olhos, ao mesmo tempo, aquela “imagem de Deus” da primeira narrativa da criação. A segunda narrativa conserva, na linguagem e no estilo, todas as características do texto javista. O modo de narrar concorda com o modo de pensar e de falar da época a que o texto pertence. Pode-se dizer, segundo a filosofia contemporânea da religião e da linguagem, que se trata duma linguagem mítica. Neste caso, na verdade, o termo “mito” não designa conteúdo fabuloso, mas simplesmente um modo arcaico de exprimir um conteúdo mais profundo. Sem qualquer dificuldade, sob o estrato da antiga narração, descobrimos aquele conteúdo, verdadeiramente admirável no que diz respeito às qualidades e à condensação das verdades que nele estão encerradas. Acrescentemos que a segunda narrativa da criação do homem conserva, até certo ponto, uma forma de diálogo entre o homem e Deus-Criador, o que se manifesta sobretudo naquele período em que o homem (‘adam) é definitivamente criado como macho e fêmea (‘is-‘issah)1. A criação efetua-se simultaneamente, por assim dizer, em duas dimensões: a ação de Deus-Javé, ao criar, desenvolve-se em correlação com o processo da consciência humana.

3. Assim, pois, Deus-Javé diz: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a elev. E ao mesmo tempo o homem confirma a própria solidãovi. A seguir lemos: Então o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homemvii. Tomando em consideração o caráter próprio da linguagem, é preciso antes de tudo reconhecer que muito nos faz pensar aquele torpor do Gênesis, no qual, por obra de Deus-Javé, o homem cai em preparação para o novo ato criador. Sob o contexto da mentalidade contemporânea, habituada —graças à análise do subconsciente— a ligar ao mundo do sono conteúdos sexuais, aquele torpor pode suscitar uma associação particular2. Todavia a narrativa bíblica parece ir além do subconsciente humano. E se admitirmos uma significativa diversidade de vocabulário, podemos concluir que o homem (‘adam) cai naquele “torpor” para acordar “macho” e “fêmea”. De fato, pela primeira vez encontramos em Gn 2, 23 a distinção ‘is-‘issah. Talvez portanto a analogia do sono indique aqui não tanto um passar da consciência à subconsciência, quanto um específico regresso ao não-ser (o sono tem em si um elemento de aniquilamento da existência consciente do homem), ou seja, ao momento que antecede a criação, para que dele, por iniciativa criadora de Deus, o “homem” solitário possa ressurgir na sua dupla unidade de macho e fêmea3.

Seja como for, à luz do contexto de Gn 2, 18-20 nenhuma dúvida há de o homem cair naquele “torpor” com o desejo de encontrar um ser semelhante a si. Se podemos, por analogia com o sono, falar aqui também de sonho, devemos dizer que este arquétipo bíblico nos permite admitir como conteúdo daquele sonho um “segundo eu”, também ele pessoal e igualmente relacionado com o estado de solidão original, isto é, com todo aquele processo de estabelecimento da identidade humana relativamente ao conjunto dos seres vivos (animalia), na medida em que é um processo de “diferenciação” entre o homem e tal ambiente. Deste modo, o círculo da solidão do homem-pessoa quebra-se, porque o primeiro “homem” desperta do sono como “macho e fêmea”.

4. A mulher é feita “com a costela” que Deus-Javé tirara ao homem. Considerando o modo arcaico, metafórico e imaginoso, de exprimir o pensamento, podemos estabelecer tratar-se aqui de homogeneidade de todo o ser de ambos; tal homogeneidade diz respeito sobretudo ao corpo, à estrutura somática, e é confirmada também pelas primeiras palavras do homem à mulher recém-criada: Esta é realmente o osso dos meus ossos e a carne de minha carneviii4. Apesar disso, as palavras citadas referem-se também à humanidade do homem-macho. Devem ler-se no contexto das afirmações feitas antes da criação da mulher, nas quais, embora não existindo ainda a “encarnação” do homem, ela é definida como “auxiliar semelhante a ele”ix5. Assim pois, a mulher foi criada, em certo sentido, sobre a base da mesma humanidade. A homogeneidade somática, não obstante a diversidade da constituição ligada à diferença sexual, é tão evidente que o homem (macho), despertando do sono genético, a exprime imediatamente, ao dizer: Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homemx. Deste modo o homem (macho) manifesta pela primeira vez alegria e até exaltação, de que anteriormente não tinha motivo, por causa da falta dum ser semelhante a si. A alegria para com o outro ser humano, para o segundo “eu”, domina nas palavras que o homem (macho) pronuncia ao ver a mulher (fêmea). Tudo isto ajuda a estabelecer o significado pleno da unidade original. Poucas são aqui as palavras, mas cada uma tem um grande peso. Devemos portanto ter em conta —e fá-lo-emos em seguida— o fato de aquela primeira mulher, “criada com a costela tirada… ao homem” (macho), ser imediatamente aceita como auxiliar semelhante a ele.

A este mesmo tema, quer dizer, ao significado da unidade original do homem e da mulher na humanidade, voltaremos ainda na próxima meditação.

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1 O termo hebraico ‘adam exprime o conceito coletivo de espécie humana, isto é, o homem que representa a humanidade; (a Bíblia define o indivíduo usando a expressão “filho do homem”, ben-‘adam). A contraposição ‘is-‘issah sublinha a diversidade sexual (como em grego anér-gyné).

Depois da criação da mulher, o texto bíblico continua a chamar ao primeiro homem ‘adam (com o artigo definido, exprimindo assim a sua “corporate personality”), pois se tornou “pai da humanidade”, seu progenitor e representante, como depois Abraão foi reconhecido como “pai dos crentes” e Jacó foi identificado com Israel-Povo Eleito.

2 O torpor de Adão (em hebraico tardemah) é um sono profundo (latim sopor; inglês sleep), em que o homem cai sem conhecimento ou sonhos (a Bíblia tem outro termo para definir o sonho: halóm; cfr. Gn 15, 12; 1Sm 26, 12).

Freud examina o conteúdo dos sonhos (latim somnium, inglês dream), que formando-se com elementos psíquicos “recalcados no subconsciente” permitem, segundo a sua teoria, fazer surgir deles os conteúdos incônscios, que seriam, em última análise, sempre sexuais.

Esta idéia é naturalmente de todo alheia ao autor bíblico.

Na teologia do autor javista, o torpor, em que Deus fez cair o primeiro homem, sublinha a exclusividade da ação de Deus na obra da criação da mulher; o homem não teve nela nenhuma participação consciente. Deus serve-se da sua “costela” só para acentuar a natureza comum do homem e da mulher.

3 “Torpor” (tardemah) é o termo que aparece na Sagrada Escritura, quando durante o sono ou diretamente depois dele hão-de dar-se acontecimentos extraordinários (cfr. Gn 15, 12; 1Sm 26, 12; Is 29, 10; 4, 13; 33, 15). Os Setenta traduzem tardemah por ektasis (êxtase).

No Pentateuco tardemah aparece ainda uma vez num contexto misterioso: Abraão, por ordem de Deus, preparou um sacrifício de animais, excluindo as aves de rapina.”Ao pôr do sol, apoderou-se dele um profundo sono (torpor); ao mesmo tempo sentiu-se apavorado e foi envolvido por densa treva…” (Gn 15, 12). Precisamente então começa Deus a falar e conclui com ele uma aliança, que é o ponto mais alto da revelação comunicada a Abraão.

Esta cena assemelha-se um tanto à do jardim do Getsêmani: Jesus “começou a sentir pavor e a angustiar-se…” (Mc 14, 33) e encontrou os Apóstolos “a dormir, devido à tristeza” (Lc 22, 45).

O autor bíblico admite no primeiro homem certo sentimento de carência e solidão (“não é conveniente que o homem esteja só”; “não encontrou para si uma auxiliar adequada”), de carência e solidão mas não de medo. Talvez esse estado provoque “um sono causado pela tristeza”, ou talvez, como em Abraão “por um pavor de não ser”; como no limiar da obra da criação “a terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo” (Gn 1, 2).

Seja como for, segundo ambos os textos, em que o Pentateuco, ou melhor, o Livro do Gênesis, fala do sono profundo (tardemah), realiza-se uma especial ação divina, isto é, uma “aliança” cheia de conseqüências para toda a história da salvação: Adão dá início ao gênero humano, Abraão ao Povo Eleito.

4 É interessante notar que para os antigos Sumérios o sinal cuneiforme para indicar o substantivo “costela” era o mesmo que indicava a palavra “vida”. Quanto, portanto, à narrativa javista, segundo certa interpretação de Gn 2, 21, Deus cobre a costela de carne (em vez de cicatrizar a carne no seu lugar) e deste modo “forma” a mulher, que tem origem da “carne e dos ossos” do primeiro homem (macho).

Na linguagem bíblica esta é uma definição de consangüineidade ou incorporação na mesma descendência (por exemplo, cfr. Gn 29, 14): a mulher pertence à mesma espécie do homem, distinguindo-se dos outros seres vivos anteriormente criados.

Na antropologia bíblica os “ossos” exprimem um elemento importantíssimo do corpo; dado que para os Hebreus não havia distinção clara entre “corpo” e “alma” (o corpo era considerado como manifestação exterior da personalidade), os “ossos” significavam simplesmente, por sinédoque, o “ser” humano (cfr., por exemplo, Sl 139, 15: “não te estavam escondidos os meus ossos”).

Pode-se portanto entender “osso dos ossos”, em sentido relacional, como o “ser vindo do ser”; “carne vinda da carne” signfica que, havendo embora características físicas diversas, a mulher apresenta a mesma personalidade que o homem possui.

No “canto nupcial” do primeiro homem, a expressão “osso dos ossos, carne da carne” é forma de superlativo, reforçado pela tríplice repetição: “esta”, “ela”, “a”.

5 É difícil traduzir exatamente a expressão hebraica cezer kenedô, que é traduzida de maneiras diversas nas línguas européias, por exemplo:

latim: “adiutorium ei conveniens sicut oportebat iuxta eum”

alemão: “eine Hilfe…, die ihm entspricht”

francês: “égal vis-à-vis de lui”

italiano: “un aiuto che gli sia simile”

espanhol: “como él que le ayude”

inglês: “a helper fit for him”

polaco: “odopowicdnia alla niego pomoc”

Como o termo “auxiliar” parece sugerir o conceito de “complementaridade” ou melhor de “correspondência exata”, o termo “semelhante” relaciona-se sobretudo com o de “semelhança”, mas em sentido diverso da semelhança do homem com Deus.

iGn 2, 18.

iiMt 19, 5.

iiiGn 1, 27.

ivGn 2, 21-22.

vGn 2, 18.

viGn 2, 20.

viiGn 2, 21-22.

viiiGn 2, 23.

ix Cfr. Gn 2, 18 e 2, 20.

xGn 2, 23.