97ª. O matrimônio é parte integrante do sacramento da criação – 06/10/1982

96. O matrimônio é parte integrante do sacramento da criação

1. Prosseguimos a análise do clássico texto do capítulo 5 da Epístola aos Efésios, versículos 22, 33. A este propósito é preciso citar algumas frases contidas numa das análises precedentes dedicadas a este tema: “O homem aparece no mundo visível como a mais alta expressão do dom divino, pois inclui em si a dimensão interior do dom. E com esta traz ao mundo a sua particular semelhança com Deus, graças à qual ele transcende e domina também a sua “visibilidade” no mundo, a sua corporeidade, a sua masculinidade ou feminilidade, e a sua nudez. Reflexo desta semelhança é também a consciência primordial do significado esponsal do corpo, consciência penetrada pelo mistério da inocência original”i. Estas frases resumem em poucas palavras o resultado das análises centralizadas nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis, em relação com as palavras com as quais Cristo, no seu colóquio com os fariseus sobre o tema do matrimônio e da sua indissolubilidade, fez referência ao “princípio”. Outras frases da mesma análise põem o problema do sacramento primordial: “Assim, nesta dimensão, constitui-se um primordial sacramento, entendido como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o mundo invisível oculto em Deus desde a eternidade. E este é o mistério da Verdade e do Amor, o mistério da vida divina, da qual o homem participa realmente… é a inocência original que inicia esta participação…”ii.

2. É necessário rever o conteúdo destas afirmações à luz da doutrina paulina expressa na Epístola aos Efésios, tendo presente sobretudo a passagem do capítulo 5, 22-33, situada no contexto complexivo de toda a Epístola. De resto, a Epístola autoriza-nos a fazê-lo, porque o Autor mesmo no capítulo 5, versículo 31, faz referência ao “princípio”, e precisamente às palavras da instituição do matrimônio no Livro do Gênesisiii. Em que sentido podemos entrever nestas palavras um enunciado sobre o sacramento, sobre o sacramento primordial? As precedentes análises do “princípio” bíblico levaram-nos gradualmente a isto, em consideração do estado da original gratificação do homem na existência e na graça, que foi o estado de inocência e de justiça originais. A Epístola aos Efésios leva-nos a aproximarmo-nos de tal situação —ou seja, do estado do homem antes do pecado original— do ponto de vista do mistério escondido desde a eternidade em Deus. De fato, lemos nas primeiras frases da Epístola que “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo… do alto dos céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. N’Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos Seus olhos”iv.

3. A Epístola aos Efésios abre diante de nós o mundo sobrenatural do mistério eterno, dos desígnios eternos de Deus Pai a respeito do homem. Estes desígnios precedem a “criação do mundo”, por conseguinte também a criação do homem. Ao mesmo tempo, aqueles desígnios divinos começam a realizar-se já em toda a realidade da criação. Se ao mistério da criação pertence também o estado da inocência original do homem criado, como varão e mulher, à imagem de Deus, isto significa que o dom primordial, conferido ao homem por parte de Deus, encerrava já em si o fruto da eleição, de que lemos na Epístola aos Efésios: “N’Ele nos escolheu para sermos santos e imaculados diante dos Seus olhos”v. Isto precisamente parecem salientar as palavras do Livro do Gênesis, quando o Criador-Eloim encontra no homem —varão e mulher— presente “diante dos Seus olhos”, um bem digno de regozijo: “Deus, vendo toda a Sua obra, considerou-a muito boa”vi. Só depois do pecado, depois da ruptura da aliança original com o Criador, o homem sente a necessidade de se esconder “do Senhor Deus”: “ouvi o ruído dos Teus passos no jardim, e, cheio de medo, porque estou nu, escondi-me”vii.

4. Pelo contrário, antes do pecado, o homem trazia na sua alma o fruto da eterna eleição em Cristo, Filho eterno do Pai. Mediante a graça desta eleição, o homem, varão e mulher, era “santo e imaculado” diante dos olhos de Deus. Aquelas primordiais (ou originais) santidade e pureza exprimiam-se também no fato de que, embora ambos estivessem “nus… não sentiam vergonha”viii, como já procuramos pôr em evidência nas precedentes análises. Confrontando o testemunho do “princípio”, relatado nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis, com o testemunho da Epístola aos Efésios, é preciso deduzir que a realidade da criação do homem era já permeada pela perene eleição do homem em Cristo: chamada para a santidade mediante a graça de adoção como filhos (“predestinou-nos para sermos Seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por Sua livre vontade, para fazer resplandecer a Sua maravilhosa graça, pela qual nos tornou agradáveis em Seu amado Filho”ix).

5. O homem, varão e mulher, torna-se desde o “princípio” participante deste dom sobrenatural. Tal gratificação foi dada em consideração d’Aquele que desde a eternidade era “amado” como Filho, embora —segundo as dimensões do tempo e da história— ela tenha precedido a encarnação deste “amado Filho” e também a “redenção” que n’Ele temos “pelo Seu sangue”x. A redenção devia tornar-se a fonte da gratificação sobrenatural do homem depois do pecado e, em certo sentido, apesar do pecado. Esta gratificação sobrenatural, que se verificou antes do pecado original, isto é, a graça da justiça e da inocência originais —gratificação que foi fruto da eleição do homem em Cristo antes dos séculos— realizou-se precisamente em atenção a Ele, o único Amado, embora antecipando cronologicamente a sua vinda no corpo. Nas dimensões do mistério da criação, a eleição à dignidade de filhos adotivos foi própria apenas do “primeiro Adão”, isto é, do homem criado à imagem e semelhança de Deus, como varão e mulher.

6. Em que modo se verifica neste contexto a realidade do sacramento, do sacramento primordial? Na análise do “princípio”, de que há pouco foi citada uma passagem, dissemos que “o sacramento, como sinal visível, constitui-se com o homem, enquanto ‘corpo’, mediante a sua ‘visível’ masculinidade e feminilidade. O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele”xi.

Este sinal tem, além disso, uma sua eficácia, como ainda dizia: “A inocência original, ligada à experiência do significado esponsal do corpo” faz com que “o homem se sinta, no seu corpo de varão e de mulher, sujeito de santidade”xii. “Sente-se” e é-o desde o “princípio”. Aquela santidade conferida originariamente ao homem por parte do Criador pertence à realidade do “sacramento da criação”. As palavras do Gênesis 2, 24 “o homem unir-se-á à sua mulher; e os dois serão uma só carne”, pronunciadas com base nesta realidade originária em sentido teológico, constituem o matrimônio como parte integrante e, em certo sentido, central do “sacramento da criação“. Elas constituem —ou confirmam até talvez simplesmente o caráter da sua origem. Segundo estas palavras, o matrimônio é sacramento enquanto parte integral e, diria, ponto central do “sacramento da criação”. Neste sentido, é sacramento primordial.

7. A instituição do matrimônio, segundo as palavras de Gênesis 2, 24, exprime não só o início da fundamental comunidade humana que, mediante a força “procriadora” que lhe é própria (“crescei e multiplicai-vos”xiii), serve para continuar a obra da criação, mas, ao mesmo tempo, exprime a iniciativa salvífica do Criador, correspondente à eterna eleição do homem, de que fala a Epístola aos Efésios. Aquela iniciativa salvífica provém de Deus-Criador e a sua eficácia sobrenatural identifica-se com o ato mesmo da criação do homem no estado da inocência original. Neste estado, já desde o ato da criação do homem, frutificou a sua eterna eleição em Cristo. Deste modo, é preciso reconhecer que o originário sacramento da criação haure a sua eficácia do “amado Filho”xiv. Se depois se trata do matrimônio, pode-se deduzir que —instituído no contexto do sacramento da criação na sua globalidade, ou seja, no estado de inocência original— devia servir não só para prolongar a obra da criação, ou seja, da procriação, mas também para difundir sobre as gerações ulteriores dos homens o mesmo sacramento da criação, isto é, os frutos sobrenaturais da eterna eleição do homem por parte do Pai no eterno Filho: aqueles frutos, com que o homem foi gratificado por Deus no ato mesmo da criação.

A Epístola aos Efésios parece autorizar-nos a entender a tal modo o Livro do Gênesis e a verdade sobre o “princípio” do homem e do matrimônio ali contida.

iCom o sacramento do corpo o homem sente-se sujeito de santidade, Alocução da Audiência Geral de Quarta-Feira, 20 defevereiro de 1980, 3.

iiIbid, 4.

iiiGn 2, 24.

ivEf 1, 3-4.

vEf 1, 4.

viGn 1, 31.

viiGn 3, 10.

viiiGn 2, 25.

ixEf 1, 5-6.

xEf 1, 7.

xiCom o sacramento do corpo o homem sente-se sujeito de santidade, 4.

xiiIbid, 5.

xiiiGn 1, 28.

xiv Cf. Ef 1, 6, onde se fala da “graça que nos deu em seu amado Filho”