96ª. A analogia do amor esponsal indica o carácter “radical” da graça – 29/09/1982

1. Na Epístola aos Efésiosi —como nos Profetas do Antigo Testamento (p. ex. em Isaías)— encontramos a grande analogia do matrimônio ou do amor esponsal entre Cristo e a Igreja.

Que função realiza esta analogia quanto ao mistério revelado na Antiga e na Nova Aliança? A esta pergunta é necessário responder pouco a pouco. Primeiro que tudo, a analogia do amor conjugal ou esponsal ajuda a penetrar na essência mesma do mistério. Ajuda a compreendê-lo até certo ponto —entende-se de modo analógico. É óbvio que a analogia do amor terrestre, humano, do marido para com a mulher, do amor humano esponsal, não pode oferecer compreensão adequada e completa daquela realidade absolutamente transcendente, que é o mistério divino, tanto no ocultar-se de há séculos em Deus, como na sua realização “histórica” no tempo, quando “Cristo amou a Igreja e Se deu a si mesmo por ela”ii. O mistério permanece transcendente a respeito desta analogia como alusão a qualquer outra analogia, com que procuramos exprimi-lo em linguagem humana. Contemporaneamente, todavia, tal analogia oferece a possibilidade de certa “penetração” cognoscitiva na essência mesma do mistério.

2. A analogia do amor esponsal consente-nos compreender em certo modo o mistério —que de há séculos está escondido em Deus, e que no tempo foi realizado por Cristo— com o amor, próprio de um total e irrevocável dom de si por parte de Deus ao homem, em Cristo. Trata-se do “homem” na dimensão pessoal e, ao mesmo tempo, comunitária (esta dimensão comunitária é expressa no livro de Isaías e nos Profetas como “Israel”, na Epístola aos Efésios como “Igreja”; pode-se dizer: povo de Deus da Antiga e da Nova Aliança). Acrescentamos que em ambas as concepções, a dimensão comunitária é posta, em certo sentido, no primeiro plano, mas não tanto que vele totalmente a dimensão pessoal que, por outro lado, pertence simplesmente à essência mesma do amor esponsal. Em ambos os casos, temos antes que tratar com uma significativa “redução da comunidade à pessoa”1: Israel e a Igreja são considerados como esposa-pessoa por parte do esposo-pessoa (“Javé” e “Cristo”). Todo o “eu” concreto deve encontrar-se a si mesmo naquele bíblico “nós”.

3. Assim, portanto, a analogia de que tratamos permite compreender, em certo grau, o mistério revelado do Deus vivo, que é Criador e Redentor (e, enquanto tal, é, ao mesmo tempo, Deus da Aliança); consente-nos compreender esse mistério à maneira de um amor esponsal, assim como consente compreendê-lo também à maneira de um amor “misericordioso” (segundo o texto do Livro de Isaías), ou ao modo de um amor “paterno” (segundo a Epístola aos Efésios, principalmente no cap. 1). Os modos supramencionados de compreender o mistério são, sem mais dizer, analógicos. A analogia do amor esponsal contém em si uma característica do mistério, que não é diretamente posta em relevo nem pela analogia do amor misericordioso nem pela analogia do amor paterno (ou de qualquer outra analogia usada na Bíblia, a que poderíamos ter-nos referido).

4. A analogia do amor dos esposos (do amor esponsal) parece pôr em relevo sobretudo o momento do dom de si mesmo por parte de Deus ao homem, “de há séculos” escolhido em Cristo (literalmente: a “Israel”, à “Igreja”) —dom total (ou, antes, “radical”) e irrevocável no seu caráter essencial, ou seja, como dom. Este dom é certamente “radical” e por isso “total”. Não se pode falar aqui da “totalidade” em sentido metafísico. O homem, com efeito, como criatura não é capaz de “acolher” o dom de Deus na plenitude transcendental da sua dignidade. Tal “dom total” (não criado) é só participado pelo próprio Deus na “trinitária comunhão das Pessoas”. Pelo contrário, o dom de si mesmo por parte de Deus ao homem, de que fala a analogia do amor esponsal, pode ter só a forma da participação na natureza divinaiii, como foi esclarecido com grande precisão pela teologia. Apesar disto, segundo tal medida, o dom feito ao homem por parte de Deus em Cristo é um dom “total”, ou seja, “radical”, como indica precisamente a analogia do amor esponsal: é, em certo sentido, “tudo” o que Deus “pôde” dar de si mesmo ao homem, consideradas as faculdades limitadas do amor-criatura. Deste modo, a analogia do amor esponsal indica o caráter “radical” da graça: de toda a ordem da graça criada.

5. Quanto acima parece que se pode dizer com referência à primeira função da nossa grande analogia, que passou dos escritos dos Profetas do Antigo Testamento à Epístola aos Efésios, onde, como já foi notado, sofreu uma significativa transformação. A analogia do matrimônio, como realidade humana, em que é encarnado o amor esponsal, ajuda, em certo grau e em certo modo, a compreender o mistério da graça como realidade eterna em Deus e como fruto “histórico” da redenção da humanidade em Cristo. Todavia, dissemos precedentemente que esta analogia bíblica não só “explica” o mistério, mas que, por outro lado, o mistério define e determina o modo adequado de compreender a analogia, e precisamente esta sua componente, em que os autores bíblicos vêm “a imagem e semelhança” do mistério divino. Assim, portanto, a comparação do matrimônio (por causa do amor esponsal) com a relação de “Javé-Israel” na Antiga Aliança e de “Cristo-Igreja” na Nova Aliança decide, ao mesmo tempo, acerca do modo de compreender o próprio matrimônio e determina este modo.

6. Esta é a segunda função da nossa grande analogia. E, na perspectiva desta função, aproximamo-nos, de fato, do problema “sacramento e mistério”, ou seja, em sentido geral e fundamental, do problema da sacramentalidade do matrimônio. Isto parece especialmente motivado à luz da análise da Epístola aos Efésiosiv. Apresentando, de fato, a relação de Cristo com a Igreja à imagem da união esponsal do marido e da mulher, o Autor desta Epístola fala do modo mais geral e, ao mesmo tempo, fundamental, não só do realizar-se do eterno mistério divino, mas também do modo como aquele mistério se expressou na ordem visível, do modo em que se tornou visível e, por isto, entrou na esfera do Sinal.

7. Com o termo “sinal” entendemos aqui, simplesmente, a “visibilidade do Invisível”. O mistério de há séculos oculto em Deus —ou seja, invisível— tornou-se visível primeiro que tudo no mesmo acontecimento histórico de Cristo. E a relação de Cristo com a Igreja, que na Epístola aos Efésios é definida como “mysterium magnum“, constitui o cumprimento e a concretização da visibilidade do mesmo mistério. Por outro lado, o fato de o Autor da Epístola aos Efésios comparar a indissolúvel relação de Cristo com a Igreja, com a relação entre o marido e a mulher, isto é, com o matrimônio —fazendo, ao mesmo tempo, referência às palavras do Gênesisv, que com o ato criador de Deus instituem originalmente o matrimônio—, leva a nossa reflexão para aquilo que foi apresentado já precedentemente no contexto do mistério mesmo da história teológica do homem.

Pode-se dizer que o sinal visível do matrimônio “in principio”, enquanto ligado ao sinal visível de Cristo e da Igreja no vértice da economia salvífica de Deus, transpõe o eterno plano de amor para a dimensão “histórica” e disso constitui o fundamento de toda a ordem sacramental. Particular mérito do Autor da Epístola aos Efésios está em ter aproximado estes dois sinais, fazendo deles o único grande sinal —isto é, um grande sacramento (sacramentum magnum).

1 Não se trata só da personificação da sociedade humana, que estabelece um fenômeno bastante comum na literatura mundial, mas de uma “corporate personality” específica da Bíblica, marcada por uma relação contínua e recíproca do indivíduo com o grupo (cf. H. Whoeler Robinson, The Hebrew conception of corporate personality, BZAW 66, 1936, pp. 49-62; cf. também J. L. McKenzie, Aspects of Old Testament Thought, em: The Jerome Biblical Commentary, vol. 2, Londres 1970, p. 748).

i 5, 22-33.

iiEf 5, 25.

iii Cf. 2Pd 1, 4.

iv 5, 22-33.

v 2, 24.