83ª. «Agradar a Deus» síntese teológica da santidade – 30/06/1982

1. São Paulo, explicando no capítulo 7 da sua primeira Epístola aos Coríntios a questão do matrimônio e da virgindade (ou seja, da continência por amor do Reino de Deus), procura motivar a causa por que faz “bem” aquele que escolhe o matrimônio e quem, pelo contrário, se decide a uma vida na continência, ou seja, na virgindade, faz “melhor”. Escreve, de fato, assim: “Digo-vos, irmãos, que o tempo é breve. O que importa é que também aqueles que têm mulheres vivam como se as não tivessem…”; e depois: “aqueles que compram, como se não possuíssem; e os que se servem do mundo, como se dele se não servissem, porque a aparência deste mundo passa. E bem quisera eu que estivésseis sem cuidados”i.

2. As últimas palavras do texto citado demonstram que Paulo se refere, na sua argumentação, também à própria experiência, pelo que a sua argumentação se torna mais pessoal. Não só formula o princípio e procura motivá-lo como tal, mas liga-se às reflexões e às convicções pessoais, nascidas da prática do conselho evangélico do celibato. Da sua força persuasiva testemunham todas as expressões e locuções. O Apóstolo não só escreve aos seus Coríntios: “Quisera que todos os homens fossem como eu”ii, mas vai além, quando, com referência aos homens que contraem o matrimônio, escreve: “Todavia, esses tais terão tribulações na carne, e eu queria poupar-vos a elas”iii. Aliás, essa sua convicção pessoal estava já expressa nas primeiras palavras do Capítulo 7 da sua epístola, referindo, fosse embora para a modificar, esta opinião dos Coríntios: “Quanto às coisas que me escrevestes, penso ser bom que o homem se abstenha de mulher…”iv.

3. É lícito pormo-nos a pergunta: que “tribulações na carne” tinha Paulo no pensamento? Cristo falava só dos sofrimentos (ou sejam, “aflições”), que experimenta a mulher quando deve dar “à luz a criança”, sublinhando, todavia, a alegriav com que ela se deleita, como compensação desse sofrer, depois do nascimento do filho: a alegria da maternidade. Paulo, pelo contrário, escreve sobre as “tribulações do corpo”, que esperam os cônjuges. Expressará isto uma aversão pessoal do Apóstolo no que se refere ao matrimônio? Nesta observação realista é necessário ver uma justa advertência para aqueles que —como por vezes os jovens— julgam que a união e a convivência conjugal devem trazer-lhes só felicidade e alegria. A experiência da vida demonstra que os cônjuges ficam não raras vezes desiludidos naquilo que mais esperavam. A alegria da união traz consigo também aquelas “tribulações na carne”, de que escreve o Apóstolo na epístola aos Coríntios. Estas são muitas vezes “tribulações” de natureza moral. Se ele pretende dizer com isto que o verdadeiro amor conjugal —precisamente aquele em virtude do qual “o homem se une à sua mulher e os dois são uma só carne”vié também um amor difícil, sem dúvida mantém-se no terreno da verdade evangélica e não há qualquer razão para descobrir nisso sintomas da atitude que, mais tarde, devia caracterizar o maniqueísmo.

4. Cristo, nas Suas palavras acerca da continência por amor do Reino de Deus, não procura de qualquer modo encaminhar os ouvintes para o celibato ou para a virgindade, indicando-lhes “as tribulações” do matrimônio. Percebe-se, antes, que Ele procura pôr em relevo diversos aspectos, humanamente penosos, vindos da decisão em favor da continência: quer a razão social, quer as razões de natureza subjetiva, levam Cristo a dizer do homem, que toma tal decisão, que ele se faz “eunuco”, isto é, que voluntariamente abraça a continência. Mas, precisamente graças a isto, compreende-se muito claramente todo o significado subjetivo, a grandeza e a excepcionalidade de tal decisão: o significado de uma resposta pensada a um dom particular do Espírito.

5. Não diversamente entende o conselho de continência São Paulo, na epístola aos Coríntios, mas exprime-o de modo diverso. Na verdade, escreve: “Digo-vos, irmãos, que o tempo é breve…”vii, e pouco depois: “A aparência deste mundo passa”viii. Esta verificação acerca da caducidade da existência humana e da transitoriedade do mundo temporal, em certo sentido acerca da acidentalidade de tudo o que é criado, deve fazer que “aqueles que têm mulheres, vivam como se as não tivessem”ix, e, ao mesmo tempo, preparar o terreno para o ensinamento sobre a continência. No centro do seu raciocínio, de fato, Paulo coloca a frase-chave que pode ser unida ao enunciado de Cristo, único no seu gênero, sobre o tema da continência por amor do Reino de Deusx.

6. Enquanto Cristo coloca em relevo a grandeza da renúncia, inseparável de tal decisão, Paulo demonstra sobretudo como é necessário entender o “Reino de Deus”, na vida do homem que renunciou ao matrimônio em vista dele. E enquanto o tríplice paralelismo do enunciado de Cristo atinge o ponto culminante no verbo que significa a grandeza da renúncia assumida voluntariamente (“e há aqueles que se fizeram eunucos a si mesmos por amor do Reino dos Céus”xi), Paulo define a situação com uma só palavra: “quem não está casado” (àgamos); mais adiante, pelo contrário, exprime todo o conteúdo da expressão “Reino dos Céus” numa explêndida síntese. Diz, com efeito: “O solteiro cuida do modo como há-de agradar ao Senhor”xii.

Todas as palavras desse enunciado merecem especial análise.

7. O contexto do verbo “preocupar-se” ou “procurar” no Evangelho de Lucas, discípulo de Paulo, indica que verdadeiramente é preciso procurar só o Reino de Deusxiii, o que forma “a parte melhor”, o unum necessariumxiv. E o próprio Paulo fala diretamente da sua “preocupação por todas as Igrejas”xv, da busca de Cristo mediante a solicitude pelos problemas dos irmãos, pelos membros do Corpo de Cristoxvi. Já deste contexto se conclui todo o vasto campo da “preocupação”, à qual o homem não casado pode dedicar totalmente o seu pensamento, a sua fadiga e o seu coração. O homem, de fato, pode “preocupar-se” só daquilo que verdadeiramente tem a peito.

8. No enunciado de Paulo, quem não é casado, preocupa-se com as coisas do Senhor (tà toù kyriou). Com esta concisa expressão, Paulo abraça toda a realidade objetiva do Reino de Deus. “Do Senhor é a terra e tudo o que ela contém”, dirá ele mesmo pouco depois nesta epístolaxvii.

O objeto da solicitude do cristão é o mundo todo! Mas Paulo, com o nome de “Senhor”, qualifica, antes de tudo, Jesus Cristoxviii, e por isso “as coisas do Senhor” significam, em primeiro lugar, “o Reino de Cristo”, o Seu Corpo que é a Igrejaxix e tudo quanto contribui para o Seu crescimento. De tudo isto preocupa-se o homem não casado e por isso Paulo, sendo no pleno sentido da palavra “apóstolo de Jesus Cristo”xx e ministro do Evangelhoxxi, escreve aos Coríntios: “Quisera que todos os homens fossem como eu”xxii.

9. Todavia, o zelo apostólico e a atividade mais frutuosa não são ainda tudo o que encerra a motivação paulina da continência. Poder-se-ia mesmo dizer que a sua raiz e nascente se encontra na segunda parte da frase, que demonstra a realidade subjetiva do Reino de Deus: “O solteiro cuida do modo como há-de agradar ao Senhor”. Esta verificação abraça todo o campo da relação pessoal do homem com Deus. “Agradar a Deus” —a expressão encontra-se em antigos livros da Bíbliaxxiii— é sinônimo de vida na graça de Deus, e exprime a atitude daquele que procura Deus, ou seja, de quem se comporta segundo a Sua vontade, de maneira que Lhe seja agradável. Num dos últimos livros da Sagrada Escritura, esta expressão torna-se síntese teológica da santidade. São João aplica-a uma só vez a Cristo: “Eu sempre faço o que é do Seu (isto é, do Pai) agrado”xxiv. São Paulo observa na epístola aos Romanos: Cristo “não procurou o que Lhe era agradável”xxv.

Entre estas duas verificações, inclui-se tudo quanto constitui o significado do “agradar a Deus”, entendido no Novo Testamento como seguir as pisadas de Cristo.

10. Parece que ambas as partes da expressão paulina se sobrepõem: na verdade, preocupar-se com o que “pertence ao Senhor”, deve “agradar ao Senhor”. Por outro lado, aquele que agrada a Deus não pode fechar-se em si mesmo, mas abre-se ao mundo, a tudo o que há-de ser reconduzido a Cristo. Estes são, evidentemente, só dois aspectos da mesma realidade de Deus e do Seu Reino. Paulo, contudo, devia distinguí-los, para demonstrar mais claramente a natureza e a possibilidade da continência “por amor do Reino dos Céus”.

Procuraremos voltar ainda a este tema.

i1Cor 7, 29.30-32.

ii1Cor 7, 7.

iii1Cor 7, 28.

iv1Cor 7, 1.

v Cf. Jo 16, 21.

vi Cf. Gn 2, 24.

vii1Cor 7, 29.

viii 7, 31.

ix1Cor 7, 29; Cf. 7, 31.

x Cf. Mt 19, 12.

xiMt 19, 12.

xii1Cor 7, 32.

xiii Cf. Lc 12, 31.

xiv Cf. Lc 10, 41.

xv2Cor 11, 18.

xvi Cf. Fl 2, 20-21; 1Cor 12, 25.

xvii1Cor 10, 26; Cf. Sl 23/24, 1.

xviii Cf. por exemplo Fl 2, 11.

xix Cf. Cl 1, 18.

xx1Cor 1, 1.

xxi Cf. Cl 1, 23.

xxii1Cor 7, 7.

xxiii Cf., por exemplo, Dt 13, 19.

xxivJo 8, 29.

xxvRm 15, 3.