76ª. Recíproca iluminação entre matrimônio e castidade – 31/03/1982

1. Continuemos a refletir sobre o tema do celibato e da virgindade por amor do Reino dos Céus, tomando como base o texto do Evangelho segundo Mateusi.

Falando da continência por amor do Reino dos Céus e fundando-a sobre o exemplo da própria vida, Cristo desejava, sem dúvida, que os Seus discípulos a entendessem sobretudo em relação com o “reino”, que Ele tinha vindo anunciar e para o qual indicava os caminhos seguros. A continência, de que falava, é precisamente um destes caminhos e, como resulta já do contexto do Evangelho de Mateus, é um caminho particularmente eficaz e privilegiado. De fato, aquela preferência dada ao celibato e à virgindade “por amor do reino” era novidade absoluta, relacionada com a tradição da Antiga Aliança, e tinha um significado determinante tanto para o ethos como para a teologia do corpo.

2. Cristo, no Seu enunciado, faz notar sobretudo a finalidade. Diz que o caminho da continência, de que Ele mesmo dá testemunho com a própria vida, não só existe e não só é possível, mas é particularmente valioso e importante “por amor do Reino dos Céus”. E assim deve ser, dado que o mesmo Cristo o escolheu para si. E se este caminho é tão valioso e importante, à continência por amor do Reino dos Céus deve pertencer um particular valor. Como já indicamos precedentemente, Cristo não encarava o problema ao mesmo nível e na mesma linha de raciocínio em que o punham os discípulos, quando diziam: “Se essa é a situação… não é conveniente casar-se”ii. As palavras destes escondiam no fundo certo utilitarismo. Cristo, pelo contrário, na sua resposta indicou indiretamente que, se o matrimônio, fiel à original instituição do Criador (recordemos que o Mestre exatamente a este ponto se referia ao “princípio”), possui uma sua plena congruência e valor para o Reino dos Céus, valor fundamental, universal e ordinário, por sua parte a continência possui para este reino um valor particular e “excepcional”. É óbvio que se trata da continência escolhida conscientemente por motivos sobrenaturais.

3. Se Cristo faz notar no seu enunciado, primeiro que tudo, a finalidade sobrenatural daquela continência, fá-lo em sentido não só objetivo, mas também explicitamente subjetivo, isto é, indica a necessidade de uma motivação tal que se refira, de modo adequado e pleno, à finalidade objetiva que é declarada pela expressão “por amor do Reino dos Céus”. Para realizar o fim de que se trata —isto é, para redescobrir na continência aquela particular fecundidade espiritual que provém do Espírito Santo— é necessário querê-la e escolhê-la em virtude de uma fé profunda, que não nos mostra só o reino de Deus na sua plenitude futura, mas nos consente e torna possível, de modo particular, indentificarmo-nos com a verdade e a realidade daquele reino, assim como ela é revelada por Cristo na Sua mensagem evangélica, e sobretudo com o exemplo pessoal da Sua vida e do Seu comportamento. Por isso, ficou dito acima: a continência “por amor do Reino dos Céus” —como indubitável sinal do “outro mundo”— leva em si sobretudo o dinamismo interior do mistério da redenção do corpoiii, e neste significado possui também a característica de uma particular semelhança com Cristo. Quem escolhe conscientemente tal continência, escolhe, em certo sentido, uma particular participação no mistério da redenção (do corpo); quer de modo particular completá-la, por assim dizer, na própria carneiv, encontrando nisto também a marca de uma semelhança com Cristo.

4. Tudo isto se refere à motivação da escolha (ou seja, à sua finalidade em sentido subjetivo): escolhendo a continência por amor do Reino dos Céus, o homem “deve” deixar-se guiar precisamente por tal motivo. Cristo, no caso em questão, não diz que o homem é obrigado a isso (de qualquer modo não se trata certamente do dever que deriva de um mandamento); todavia, sem dúvida, as suas concisas palavras sobre a continência por amor do Reino dos Céus põem em forte relevo precisamente a sua motivação. E elas encarecem-na (isto é, indicam a finalidade, de que o sujeito é consciente), tanto na primeira parte de todo o enunciado, quanto também na segunda, indicando que se trata aqui de um escolha particular: isto é, própria de uma vocação mais excepcional do que universal e ordinária. No princípio, na primeira parte do Seu enunciado, Cristo fala de um entendimento (“nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado”v); e trata-se não de uma “compreensão” em abstrato, mas sim tal que influi na decisão, na escolha pessoal, em que o “dom”, isto é, a graça, deve encontrar adequada ressonância na vontade humana. Tal “compreensão” envolve, portanto, a motivação. Em seguida, a motivação influi na escolha da continência, aceita depois de lhe ter compreendido o significado “por amor do Reino dos Céus”. Cristo, na segunda parte do Seu enunciado declara, portanto, que o homem “se torna” eunuco quando escolhe a continência por amor do Reino dos Céus e faz dela a fundamental situação ou estado de toda a própria vida terrena. Numa decisão tão consolidada subsiste a motivação sobrenatural, pela qual a decisão mesma foi originada. Subsiste renovando-se, diria, continuamente.

5. Já precedentemente nos aplicamos ao particular significado da última afirmação. Se Cristo, no caso citado, fala do “tornar-se” eunuco, não só põem em relevo o peso específico desta decisão, que se explica com o motivo nascido de uma fé profunda, mas não procura sequer esconder o trabalho, que tal decisão e as suas persistentes conseqüências podem ter para o homem, para as normais (e, aliás, nobres) inclinações da sua natureza.

A referência “ao princípio”, no problema do matrimônio, consentiu-nos descobrir toda a beleza original daquela vocação do homem, varão e mulher: vocação que provém de Deus e corresponde à dupla constituição do homem, e também ao chamamento à “comunhão das pessoas”. Pregando a continência por amor do Reino dos Céus, Cristo não só se pronuncia contra toda a tradição da Antiga Aliança, segundo a qual o matrimônio e a procriação eram, como dissemos, religiosamente privilegiados, mas pronuncia-se, em certo sentido, também em contraste com aquele “princípio”, a que Ele mesmo fez referência e ainda talvez por isto atenua as próprias palavras com aquela particular “regra de compreensão”, a que acima nos referimos. A análise do “princípio” (especialmente com base no texto javista) demonstrara, de fato, que, embora seja possível conceber o homem como solitário diante de Deus, todavia o mesmo Deus tirou-o desta “solidão” quando disse: “Não é conveniente que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”vi.

6. Assim, portanto, a duplicidade varão-mulher, própria da constituição mesma da humanidade e a unidade dos dois que se baseia nela, permanecem “desde o princípio”, isto é, até à sua mesma profundidade ontológica, obra de Deus. E Cristo, falando da continência “por amor do Reino dos Céus”, tem diante de si esta realidade. Não sem razão fala dela (segundo Mateus) no contexto mais imediato, em que faz precisamente referência “ao princípio”, isto é, ao princípio divino do matrimônio na constituição mesma do homem.

Sobre o fundo das palavras de Cristo pode-se afirmar que não só o matrimônio nos ajuda a entender a continência por amor do Reino dos Céus, mas também a mesma continência lança particular luz sobre o matrimônio visto no mistério da Criação e da Redenção.

iMt 19, 10-12.

iiMt 19, 10.

iii Cf. Lc 20, 35.

iv Cf. Cl 1, 24.

vMt 19, 11.

viGn 2, 18.