71ª. Somos portadores da imagem de Cristo ressuscitado – 03/02/1982

1. Das palavras de Cristo sobre a futura ressurreição dos mortos, referidas por todos os três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), passamos para a antropologia paulina da ressurreição. Analisamos a primeira Epístola aos Coríntios no capítulo 15, versículos 42-49.

Na ressurreição, o corpo humano manifesta-se —segundo as palavras do Apóstolo— “incorruptível, glorioso, cheio de força e espiritual”. A ressurreição não é, portanto, só uma manifestação da vida que vence a morte —uma espécie de regresso final à árvore da Vida, da qual o homem se afastou no momento do pecado original— mas é também revelação dos últimos destinos do homem em toda a plenitude da sua natureza psicossomática e da sua subjetividade pessoal. Paulo de Tarso —que, seguindo as pegadas dos outros Apóstolos, experimentou no encontro com Cristo ressuscitado o estado do Seu corpo glorioso— baseando-se nesta experiência, anuncia na Epístola aos Romanos “a redenção do corpoi e na Epístola aos Coríntiosii o consumar-se desta redenção na futura ressurreição.

2. O método literário, aplicado aqui por Paulo, corresponde perfeitamente ao seu estilo. Este serve-se de antíteses, que ao mesmo tempo aproximam aquilo que contrapõem e, desse modo, são úteis para nos fazerem compreender o pensamento paulino acerca da ressurreição: seja na sua dimensão “cósmica”, seja no que diz respeito à característica da mesma estrutura interna do homem, “terrestre” e “celestial”. O Apóstolo, de fato, ao contrapor Adão e Cristo (ressuscitado) —ou seja, o primeiro Adão e o último Adão— mostra, em certo sentido, os dois pólos, entre os quais, no mistério da criação e da redenção, foi situado o homem no cosmos; poder-se-ia também dizer que o homem foi “colocado em tensão” entre estes dois pólos na perspectiva dos eternos destinos, relativos, do princípio até ao fim, à sua mesma natureza humana. Quando Paulo escreve “O primeiro homem, tirado da terra, é terreno, o segundo veio do céu”iii, tem no espírito não só Adão-homem mas também Cristo como homem. Entre estes dois pólos —entre o primeiro e o último Adão— desenvolve-se o processo que ele exprime nas seguintes palavras: “Assim como reproduzimos em nós a imagem do terreno, procuremos reproduzir também a imagem do celestial”iv.

3. Este “homem celestial” —o homem da ressurreição, cujo protótipo é Cristo ressuscitado— não é tanto antítese e negação do “homem na terra” (cujo protótipo é o “primeiro Adão”), mas sobretudo é a sua consumação e a sua confirmação. É a consumação e a confirmação do que corresponde à constituição psicossomática da humanidade, no âmbito dos destinos eternos, isto é, no pensamento e no plano d’Aquele que desde o princípio criou o homem à Sua imagem e semelhança. A humanidade do “primeiro Adão”, “homem de terra”, leva em si, diria, uma particular potencialidade (que é capacidade e prontidão) para acolher tudo o que se tornou o “segundo Adão”, o Homem celestial, ou seja, Cristo: o que Ele se tornou na sua ressurreição. Aquela humanidade de que são participantes todos os homens, filhos do primeiro Adão e, que, juntamente com a herança do pecado —sendo carnal— ao mesmo tempo é “corruptível”, e leva em si a potencialidade da “incorruptibilidade”.

Aquela humanidade, que em toda a sua constituição psicossomática se manifesta “ignóbil”, leva em si o interior desejo da glória, isto é, a tendência e a capacidade para se tornar “gloriosa”, à imagem de Cristo ressuscitado. Por fim, a mesma humanidade, que o Apóstolo —conformemente à experiência de todos os homens— diz que é “débil” e tem “corpo animal”, leva em si a aspiração a tornar-se “cheia de força” e “espiritual”.

4. Falamos aqui da natureza humana na sua integridade, isto é, da humanidade na sua constituição psicossomática. Paulo, pelo contrário, fala do “corpo”. Todavia, podemos admitir, com base no contexto imediato e no remoto, que não se trata, para ele, só do corpo, mas do homem inteiro na sua corporeidade, portanto também da sua complexidade ontológica. De fato, não há qualquer dúvida de que, se precisamente em todo o mundo visível (cosmos), aquele único corpo que é o corpo humano, leva em si a “potencialidade da ressurreição”, isto é, a aspiração e a capacidade de se tornar definitivamente “incorruptível, glorioso, cheio de força e espiritual”, isto acontece porque, persistindo desde o princípio na unidade psicossomática do ser pessoal, ele pode colher e reproduzir nesta “terrena” imagem e semelhança de Deus, também a imagem “celeste” do último Adão, Cristo. A antropologia paulina da ressurreição é cósmica e universal ao mesmo tempo: cada homem leva em si a imagem de Adão e cada um é também chamado a levar em si a imagem de Cristo, a imagem do Ressurgido. Esta imagem é a realidade do “outro mundo”, a realidade escatológica (São Paulo escreve: “levaremos”); mas, entretanto, ela é já de certo modo uma realidade deste mundo, dado que foi revelada nele mediante a ressurreição de Cristo. É uma realidade enxertada no homem “deste mundo”, realidade que nele se está desenvolvendo até à consumação final.

5. Todas as antíteses que se seguem no texto de Paulo ajudam a construir um válido esboço da antropologia da ressurreição. Este esboço é, ao mesmo tempo, mais pormenorizado do que o resultante do texto dos Evangelhos sinóticosv, mas, por outro lado, é, em certo sentido, mais unilateral. As palavras de Cristo, referidas pelos sinóticos, abrem diante de nós a perspectiva da perfeição escatológica do corpo, submetido plenamente à profundidade divinizante da visão de Deus “face a face”, em que encontrarão a sua inexaurível fonte tanto a perene “virgindade” (unida ao significado esponsal do corpo) quanto a perene “intersubjetividade” de todos os homens, que se tornarão (como varões e mulheres) participantes da ressurreição. O esboço paulino da perfeição escatológica do corpo glorificado parece ficar antes no âmbito da mesma estrutura interior do homem-pessoa. A sua interpretação da futura ressurreição pareceria ligar-se ao “dualismo” corpo-espírito que gera a fonte do interior “sistema de forças” no homem.

6. Este “sistema de forças” sofrerá na ressurreição mudança radical. As palavras de Paulo, que o sugerem de modo explícito, não podem, todavia, entender-se e interpretar-se no espírito da antropologia dualista1, como procuraremos mostrar no seguimento da nossa análise. De fato, convir-nos-á dedicar ainda uma reflexão à antropologia da ressurreição, vista à luz da primeira Epístola aos Coríntios.

1 “Paul ne tient absolument pas compte de la dichotomic grecque âme et corps… L’Apótre recourt à une sorte de trichotomic où la totalité de l’homme est corps, âme et esprit… Tous ces termes sont mouvants et la division elle-même n’a pas de frontière fixe. Il y a insistance sur le fait que le corps et l’âme sont capables d’être ‘pneumatiques’, spirituels” (B. Rigaux, Dieu l’a ressuscité. Exégèse et théologie biblique, Gembloux 1973, Duculet, pp. 406-408).

iRm 8, 23.

ii1Cor 15, 42-49.

iii1Cor 15, 47.

iv1Cor 15, 49.

vMt 22, 30; Mc 12, 25; Lc 20, 34-35.