58ª. A função positiva da pureza de coração – 01/04/1981

1. Antes de concluir o ciclo de considerações sobre as palavras pronunciadas por Jesus Cristo no Sermão da Montanha, é necessário recordar essas palavras uma vez mais e retomar sumariamente o fio das idéias, de que estas constituíram a base. Eis o teor das palavras de Jesus: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela, no seu coração”i. São palavras sintéticas, que exigem aprofundada reflexão, de modo análogo às palavras em que Cristo se referiu ao “princípio”. Aos fariseus, que —apoiando-se na lei de Moisés que admitia o chamado ato de repúdio— lhe tinham perguntado: “É permitido ao homem repudiar a sua mulher por qualquer motivo?”, Ele respondeu: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher? … Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, e unir-se-á a sua mulher e serão os dois uma só carne… Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem”ii. Também estas palavras requereram uma reflexão aprofundada, para extrair toda a riqueza nelas encerrada. Uma reflexão deste gênero consentiu-nos apresentar a autêntica teologia do corpo.

2. Seguindo a referência que fez Cristo ao “princípio”, dedicamos uma série de reflexões aos relativos textos do Livro do Gênesis, que tratam precisamente daquele “princípio”. Das análises feitas surgiu não só uma imagem da situação do homem —varão e mulher— no estado de inocência original, mas também a base teológica da verdade do homem e a sua particular vocação que brota do eterno mistério da pessoa: imagem de Deus, encarnada no fato visível e corpóreo da masculinidade ou feminilidade da pessoa humana. Esta verdade encontra-se na base da resposta dada por Cristo em relação com o caráter do matrimônio, e em particular com a sua indissolubilidade. É verdade sobre o homem, verdade que faz penetrar as raízes no estado de inocência original, verdade que é necessário, portanto, entender-se no contexto daquela situação anterior ao pecado, tal como procuramos fazer no ciclo precedente das nossas reflexões.

3. Ao mesmo tempo, é preciso todavia considerar, entender e interpretar a mesma verdade fundamental sobre o homem, o seu ser de varão e de mulher, no prisma de outra situação: isto é, daquela que se formou mediante a ruptura da primeira aliança com o Criador, ou seja, mediante o pecado original. Convém ver tal verdade sobre o homem —varão e mulher— no contexto da sua pecaminosidade hereditária. E é precisamente aqui que nos encontramos com o enunciado de Cristo no Sermão da Montanha. É óbvio que na Sagrada Escritura da Antiga e da Nova Aliança há muitas narrações, frases e palavras, que vêm confirmar a mesma verdade, isto é, a de trazer o homem “histórico” em si a herança do pecado original; apesar disto, as palavras de Cristo, pronunciadas no Sermão da Montanha, parecem ter —com toda a sua concisa enunciação— uma eloqüência particularmente densa. Demonstram-no as análises feitas precedentemente, que foram desvelando pouco a pouco o que está encerrado naquelas palavras. Para clarificar as afirmações relativas à concupiscência, é necessário tomar o significado bíblico da concupiscência mesma —da tríplice concupiscência— e principalmente da concupiscência da carne. Então, pouco a pouco, chega-se a compreender porque define Jesus aquela concupiscência (precisamente: o “olhar desejando”) como “adultério cometido no coração”. Efetuando as análises respectivas, procuramos ao mesmo tempo compreender que significado tinham as palavras de Cristo para os seus imediatos ouvintes, educados na tradição do Antigo Testamento, isto é, na tradição dos textos legislativos, como também proféticos e “sapienciais”; e, além disso, que significado podem ter as palavras para o homem de todas as outras épocas, e em particular para o homem contemporâneo, considerando os seus vários condicionamentos culturais. Estamos persuadidos, de fato, que estas palavras, no seu conteúdo essencial, se referem ao homem de todo o lugar e de todos os tempos. Nisto está também o seu valor sintético: a cada um anunciam elas a verdade que é para ele válida e substancial.

4. Qual é esta verdade? Indubitavelmente, é uma verdade de caráter ético e, portanto, afinal, de uma verdade de caráter normativo, assim como normativa é a verdade contida no mandamento: “Não cometerás adultério”. A interpretação deste mandamento, dado por Cristo, indica o mal que é necessário evitar e vencer —precisamente o mal da concupiscência da carne— e ao mesmo tempo indica o bem a que a vitória sobre os desejos abre caminho. Este bem é a “pureza de coração”, de que fala Cristo no mesmo contexto do Sermão da Montanha. Do ponto de vista bíblico, a “pureza de coração” significa a liberdade de todo o gênero de pecado ou de culpa e não só dos pecados que dizem respeito à “concupiscência da carne”. Todavia, aqui ocupamo-nos de modo particular de um dos aspectos daquela “pureza”, o qual constitui o contrário do adultério “cometido no coração”. Se aquela “pureza de coração“, de que tratamos, se entende segundo o pensamento de São Paulo, como “vida segundo o Espírito”, então o contexto paulino oferece-nos uma imagem completa do conteúdo encerrado nas palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha. Contêm uma verdade de natureza ética, põem de sobreaviso contra o mal e indicam o bem moral do comportamento humano, aliás, levam os ouvintes a evitar o mal da concupiscência e a adquirir a pureza de coração. Estas palavras têm portanto significado normativo e, também, indicador. Dirigindo para o bem da “pureza de coração”, indicam ao mesmo tempo, os valores a que o coração humano pode e deve aspirar.

5. Daqui a pergunta: que verdade, válida para todo o homem, está contida nas palavras de Cristo? Devemos responder que está nelas encerrada não só uma verdade ética, mas também a verdade essencial sobre o homem, a verdade antropológica. Por isso, exatamente, remontamos a estas palavras ao formular aqui a teologia do corpo, em estreita relação e, por assim dizer, na perspectiva das palavras precedentes, em que se referira Cristo ao “princípio”. Pode-se afirmar que, com a sua expressiva eloqüência evangélica, à consciência do homem da concupiscência é, em certo modo, recordado o homem da inocência original. Mas as palavras de Cristo são realistas. Não procuram obrigar o coração humano a voltar ao estado de inocência original, que o homem já deixou atrás de si no momento em que cometeu o pecado original; pelo contrário, indicam-lhe o caminho para uma pureza de coração, que lhe é possível e acessível também no estado da pecaminosidade hereditária. É, esta, a pureza do “homem da concupiscência”, que todavia está inspirado pela palavra do Evangelho e aberto à “vida segundo o Espírito” (em conformidade com as palavras de São Paulo), é esta a pureza do homem da concupiscência, que está envolvido inteiramente pela “redenção do corpo”, realizada por Cristo. Precisamente por isto encontramos nas palavras do Sermão da Montanha a referência ao “coração”, isto é, ao homem interior. O homem interior deve abrir-se à vida segundo o Espírito, para que a pureza evangélica de coração seja por ele participada: para que ele reencontre e realize o valor do corpo, libertado dos vínculos da concupiscência mediante a redenção.

O significado normativo das palavras de Cristo está profundamente radicado no seu significado antropológico, na dimensão da interioridade humana.

6. Segundo a doutrina evangélica, desenvolvida de modo tão maravilhoso nas Epístolas paulinas, a pureza não é só abster-se da impudicíciaiii, ou seja, temperança, mas, ao mesmo tempo, abre também o caminho para uma descoberta cada vez mais perfeita da dignidade do corpo humano; o que está organicamente ligado com a liberdade do dom da pessoa na autenticidade integral da sua subjetividade pessoal, masculina ou feminina. Deste modo, a pureza, no sentido de temperança, desenvolve-se no coração do homem que a cultiva e tende a descobrir e a afirmar o sentido esponsal do corpo na sua verdade integral. Esta mesma verdade deve ser conhecida interiormente; deve, de certo modo, ser “sentida com o coração”, para que as relações recíprocas do homem e da mulher —e mesmo o simples olhar— readquiram aquele conteúdo autenticamente esponsal dos seus significados. E é precisamente este conteúdo que no Evangelho é indicado pela “pureza de coração”.

7. Se na experiência interior do homem (isto é, do homem da concupiscência) a “temperança” se desenha, por assim dizer, como função negativa, a análise das palavras de Cristo, pronunciadas no Sermão da Montanha e relacionadas com os textos de São Paulo, consente-nos deslocar tal significado para a função positiva da pureza de coração. Na pureza consumada o homem goza dos frutos da vitória alcançada sobre a concupiscência, vitória a que se refere São Paulo ao exortar a que “se mantenha o próprio corpo com santidade e respeito”iv. Mais, exatamente numa pureza assim consumada manifesta-se em parte a eficácia do dom do Espírito Santo, de que o corpo humano “é templo”v. Este dom é sobretudo o da piedade (donum pietatis), que restitui à experiência do corpo —especialmente quando se trata da esfera das relações recíprocas do homem e da mulher— toda a sua simplicidade, a sua limpidez e também a sua alegria interior. Este é, como se vê, um clima espiritual, bem diverso da “paixão e concupiscência”, sobre que escreve Paulo (e que, por outro lado, conhecemos devido às precedentes análises; basta recordar o Eclesiástico 26, 13.15-18). Uma coisa é, de fato, a satisfação das paixões, outra a alegria que o homem encontra em possuir-se mais plenamente a si mesmo, podendo deste modo tornar-se, ainda mais plenamente, um verdadeiro dom para outra pessoa.

As palavras pronunciadas por Cristo no Sermão da Montanha dirigem o coração humano precisamente para tal alegria. A elas é necessário confiarmo-nos a nós mesmos, confiarmos os nossos pensamentos e as próprias ações, para encontrar a alegria e a oferecer aos outros.

iMt 5, 27-28.

iiMt 19, 3-6.

iii Cf. 1Ts 4, 3.

iv1Ts 4, 4.

v Cf. 1Cor 6, 19.